Sempre é possível rever e mudar. “De vez em quando a vida nos surpreende em absoluto desgoverno. Tudo fora, alheio, exilado. Mas há outros momentos em que nos surpreende em absoluta concordância. Tudo dentro, consciente e reconciliado. A hora da essência talvez seja isso. O turno da vida em que a liturgia das horas nos põe num caminho só: o que nos faz chegar a nós mesmos.” – Padre Fábio de Melo. A hora da essência relata a conversa de duas mulheres, uma delas em vias de morrer. Através da conversa entre as duas, Padre Fábio de Melo propõe uma análise sobre a vida, o que podemos fazer para viver melhor e como é viver a essência – não deixando para cuidar da vida só às vésperas de morrer. Uma das mulheres descobre um câncer incurável, é hospitalizada e, no hospital, conhece uma enfermeira com quem conversa sobre a sua vida. Ainda antes de morrer, essa mesma mulher toma atitudes para recuperar o que havia deixado para trás ou perdido.
Editora: Planeta; 1ª edição (9 abril 2021); Páginas: 264 páginas; ISBN-13: 978-6555353068; ASIN: B08YFGMRDB
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Biografia do autor: Padre Fábio de Melo é mineiro da cidade de Formiga, graduado em Filosofia e Teologia, pós-graduado em Educação e mestre em Teologia Sistemática. Ele se dedica ao trabalho de evangelização pela arte em diversas áreas de atuação: como padre, professor universitário, escritor, cantor e compositor. É autor de vários livros, entre eles: Tempo de Esperas, Orfandades, É sagrado viver, Quem me roubou de mim?, Por onde for o teu passo, que lá esteja o teu coração e Hora da essência, todos lançados pela Editora Planeta.
Leia trecho do livro
Morrer requer liturgia. Da verdade. Viver o rito que é posto diante de nós. Caem as escamas, vedam-se os caminhos, não sobrando mais respiro para as caricaturas que criamos de nós mesmos. A morte exige nudez. Impõe ao ser essencial a retirada das roupagens que lhe foram impostas por tudo aquilo que lhe soprou falsidade. Morrer requer coerência. Fazer o caminho de volta, redescobrir o sabor do manancial da verdade, estar em si, inteiramente reconciliado com as escolhas que o tornaram quem é.
Mas a morte não é um fato isolado, desvinculado da rotina que arregimentamos, o epílogo que se consuma com o último respiro. Não, ela é um pão que esquartejamos diariamente, enquanto vivemos. Mastigamos a morte, mas sem perceber. Todo dia é dia de morrer, realizar o rito litúrgico que repatria o que de nós se perdeu. A vida nos pede holocaustos diários. Expor à lâmina o ódio que nos habita, a tristeza que nos fragiliza, os fracassos que nos envergonham. Sacrificar o que não nos edifica é renovar o pacto com a vida, é estancar a sangria que nos sequestra a vitalidade. E depois do sacrifício a celebração, comemorar cada segundo do que avaliamos belo, justo e verdadeiro.
O resultado de quem sacrifica e celebra é a vida na essência. Nada pode ser mais realizador. Não espere a morte para conquistar tão nobre riqueza.
Para Ana Claudia Quintana Arantes, especialista em nos colocar na essência.
Prefácio
Mais uma manhã de domingo. Amo a vida dentro de um domingo que acaba sempre por me encantar com momentos que podem ser considerados portais de novas etapas de vida.
Assim foi o dia do convite para estar aqui, fazendo o cerimonial deste livro:
“Amiga amada, estou escrevendo um livro sobre uma mulher que está morrendo. E eu queria te convidar para escrever um texto sobre ele. Você aceita?”
Como se houvesse alguma chance de escolher uma resposta diferente do sim, ele repousou seus olhos calmos sobre os meus, incrédulos. Felizes aqueles que escutam perguntas que já trazem em si mesmas a resposta, basta retirar o ponto de interrogação.
Você aceita. Eu aceitei.
A entrada no que você tem agora nas mãos vai ser uma das viagens mais inesquecíveis que fará nesta vida. Pense bem em quem você é. Olhe bem nos seus olhos antes de começar. Você não vai sentir saudades de quem era assim que conhecer quem vai se tornar depois de testemunhar o encontro dessas duas mulheres e seus mundos infinitos de ser. Encontro com o interior de si mesmas, encontro com os seus corações e com a vida que se revela quando se reconhecem.
Ana, ainda que com duas letras a menos do original hebraico (Hanna), segue como a graciosa, a cheia de graça.
Graça é dádiva.
Sofia, do grego literal (Sophia), sabedoria ou o “Verbo” em sua santidade feminina.
Atenta, Ana será vista por Sofia. A graça sendo contemplada pela sabedoria. A sabedoria revelando-se graciosamente. Um encontro único que transformará a vida delas e de todos os que estiverem presentes nesse momento eternizado aqui, no livro-tesouro que já está aberto sob seus olhos.
Graciosidade necessária de quem cuida entregando-se para a coragem de aprender mais de si a partir da experiência humana absolutamente impossível de ser evitada. A morte. A vida que explode e transborda livre por meio dessa consciência.
Eu costumo dizer que diante da morte não é possível viver a partir de teorias. A verdade não é uma teoria; a verdade é uma experiência. Em alguma linha deste livro você vai ler a frase: “A palavra não flui sem antes ter passado pelo batismo da vivência”.
Nesse encontro de palavras, pare. Feche os olhos, inspire fundo, mergulhe.
Por algum milagre que não sei quando aconteceu de fato, alguém um dia decidiu que valia a pena me ouvir falar sobre a morte e o quanto ela traz a palavra “vida” impregnada de força e amor ao longo de cada uma de suas entrelinhas de realidade. Como Fernando Pessoa muito já refletiu, a pior forma de solidão é a lucidez incomunicável.
E as pessoas que morrem podem precisar viver assim solitárias até que encontrem alguém que as ouça, alguém que as presencie.
Dizem que na vida, entre todas as escolhas de um extremo a outro, o mais sensato parece ser o caminho do meio. Então, entre a sabedoria e a graça, escolha o meio delas.
Tire férias de sua solidão. E, durante a leitura, fique com Ana e Sofia de mãos dadas para não errar o passo desta vida. Então vai chegar outra frase que será o sinal de sua capacidade de entrega a essa fatalidade que é viver: “Continue, por favor”.
Ana Claudia Quintana Arantes
médica e autora do best-seller
A morte é um dia que vale a pena viver
Não me engano. Até para morrer a vida nos pede competência. Requer coragem olhar o fim, saber-se adentrando o compasso das últimas horas, o derradeiro trajeto a ser cumprido. É doloroso sorver o cálice que não receberá nova porção. Acompanhar a própria morte é ver o vinho se acabando, a taça translúcida a revelar o miúdo da quantidade, o líquido escasseando, a reunião de gotas a sujar o fundo de onde sai a elegante haste de estanho, e o saber que não descansa, o comunicado que a mente faz ao corpo, que a taça não será novamente preenchida.
Estou só. A solidão aguça ainda mais a minha insegurança. As paredes do quarto me protegem do externo do mundo, mas de nada valem. O que me desprotege não mora do lado de fora. O que me ofende nasce sob a pele que me veste. O inimigo se alojou, fez um ninho em minha mente. Arregimenta minhas forças, coloca-as num movimento contrário ao sopro que poderia me reinaugurar.
Morrerei só. Será minha sina. Entre nomes recém-chegados, rostos que não albergam memórias. Em nenhum deles posso encontrar um fio que possa ser puxado, uma ponta do novelo que seja capaz de desatar as histórias de que necessito recordar e contar.
Sim, morrer só tem sentido quando estamos entre reminiscências, ancorados em saudades, aconchegados por histórias que desarticulem o esquecimento, que provoquem o movimento das palavras que alçam o que da memória não se apagou, e que, pela força do tempo, vai se esconder nos labirintos da alma.
Estou distante de todos os que poderiam dar alento ao que sofro. Filha única, perdi meus pais quando ainda era jovem. Casei-me com o primeiro namorado que tive, e fui feliz até o dia em que ele não me quis mais. Disse que o amor tinha terminado. Fez o comunicado, arrumou as malas e se foi.
E, como as explicações não me foram dadas, obrigou-me a guardar as perguntas no peito, subjugando-me à prisão de nunca mais poder tocar no assunto. Sua partida ainda me dói o incalculável. Há partidas que nunca terminam, porque o que se ausenta com a ausência do corpo não se submete ao entendimento da razão. É um ir embora constante, parto que nunca recebe a bênção da calmaria, do sossego das contrações. Por isso, nunca deixei de perdê-lo; por isso, não é mensurável o fosso provocado por sua ausência.
Há pessoas que são múltiplas. Abrigam em si uma infinidade de outras. Perdi muitas pessoas numa só. Meu marido, meu amante, meu pai, meu filho, meu irmão, meu melhor amigo. Quantos partem naquele que parte? Quantos morrem naquele que morre? O amor é um mistério que altera a regra das quantias. Ele nos torna múltiplos, desdobra-se, modifica o antes singular, cria uma infindável série de papéis, fazendo-os viver num só.
De vez em quando, o vazio se disfarça, se acomoda, e, então, temos a breve sensação de que a vida reencontrou o seu rumo. Mas, de repente, o vazio se amplia. O sofrimento é tanto, tanto, que optamos pelos caminhos mais mesquinhos, expondo-nos às mais vergonhosas misérias humanas.
Eu precisava sobreviver. E escolhi da pior forma. Criando um obstáculo entre o marido perdido e o nosso filho. Não suportava sofrer sozinha. Queria que Gustavo — embora não recebesse a rejeição do pai, pois ele continuava absolutamente presente na vida do menino — sofresse o mesmo que eu. Eu precisava punir o meu marido. Não era justo que fosse embora sem que também perdesse. Eu não poderia ser a única a sofrer os golpes da rejeição. E, como eu não era capaz de rejeitá-lo, pois tudo em mim pedia pela sua presença, tratei de lhe oferecer a rejeição de Gustavo, barro moldável que eu tinha nas mãos. Fiz de tudo para que ele internalizasse que fomos trocados, rejeitados, esquecidos. Falei com ele, muitas vezes, como um adulto fala a outro adulto: “O seu pai arrumou outra mulher. Ele não gosta mais de mim nem de você. Ele quer ter outros filhos porque você não foi o suficiente para fazê-lo feliz”.
Deu certo. Augusto tentou de todas as formas, mas nada reverteu a rejeição do menino. As visitas a que o pai tinha direito por lei, a guarda compartilhada que o juiz estabeleceu, só foram tentadas no primeiro ano. Quando Gustavo cruzava o limiar de nossa casa, eu já me apressava a fazer o que no Direito estudei e que tem nome específico: alienação parental. Fiz consciente. Era a única forma que eu tinha de atingir o coração de Augusto, já que ele nunca fazia questão de me ver nem de me escutar.
Eu sabia que ele seria um excelente pai para o meu filho. Tinha certeza de que em pouco tempo ele seria capaz de fazer o menino gostar da nova esposa, conviver bem com a separação e até de fazê-lo interpretar que tinha sido eu a responsável pela nossa dissolução familiar. E eu não seria capaz de suportar isso. Sua excelência como pai me feriria ainda mais. Queria mesmo é que ele nunca mais cumprisse com as obrigações do sangue, quem sabe assim eu perderia a admiração, quem sabe assim eu viesse a ferir o lugar que a ele erigi em mim, derramaria fel sobre as lembranças que me colocavam diante do pai que ele sempre foi: presente, atento, atencioso, nunca deixando faltar matéria nem amor.
Logo após a separação, Augusto visitou regularmente a nossa casa, mas só ao meu filho ele emprestava o calor da alma. A mim ele se limitava a dedicar a praticidade que não lhe custava esforço emocional, os gestos que não recebiam o invólucro da delicadeza do amor. A princípio eu aceitei o vínculo da praticidade. Ele continuava tendo as chaves da casa, interferia constantemente nos andamentos das coisas. Reforma, jardinagem, seguros a serem feitos, renovados, toda a dinâmica da vida que se presta à submissão dos controles humanos. Mas, quando percebi que sua dedicação em nada me incluía, que tudo me era entregue como consequência, pois ele fazia pelo nosso filho, comecei a derramar o veneno na mente do menino. Deu certo. Depois de muitas tentativas de aproximação, Augusto resolveu não mais insistir.
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