Livro ‘Bestiário’ por Júlio Cortázar

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Publicado pela primeira vez em 1951, Bestiário é a primeira obra em que Julio Cortázar afirma se sentir “seguro do que queria dizer”. Apesar de ter alcançado renome mundial depois da publicação de seu romance O jogo da amarelinha, os contos são a coluna vertebral da vasta obra de Cortázar. As histórias que compõem este volume falam de objetos e acontecimentos cotidianos, passam para a dimensão do pesadelo ou da revelação de modo natural e imperceptível. Em cada conto, surpresa e inquietação são acrescentadas ao indescritível prazer de lê-los. Nascido em agosto de 1914, em Bruxelas, na Bélgica, Cortázar teve uma produção literária intensa e escreveu outras obras-primas como História de cronópios e de famas, Último round, A volta ao dia em 80 mundos, Todos os fogos o fogo e O jogo da amarelinha. Já publicado no Brasil, Bestiário estava há muitos anos fora de catálogo e sai agora com nova tradução, de Ari Roitman.

Editora:‎ Civilização Brasileira; 4ª edição (13 junho 2013); Páginas: 144 páginas; ISBN-10:‎ 8520010679; ISBN-13: 978-8520010679

Leia trecho do livro

A Paco,
que gostava dos meus contos

CASA TOMADA

Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje que as casas antigas sucumbem à mais vantajosa liquidação de seus materiais), guardava as recordações de nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e toda a infância.

Habituamo-nos, Irene e eu, a permanecer nela sozinhos, o que era uma loucura, pois nessa casa podiam viver oito pessoas sem se molestarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete, e pelas onze eu deixava a Irene as últimas peças por repassar e ia à cozinha. Almoçávamos ao meio-dia; sempre pontuais; então não ficava nada por fazer além de uns poucos pratos sujos. Era para nós agradável almoçar pensando na casa ampla e silenciosa; e em como nos bastávamos para mantê-la limpa. As vezes chegamos a pensar que foi ela que não nos deixou casar. Irene recusou dois pretendentes sem motivo maior, eu vi morrer Maria Ester antes que chegássemos a nos comprometer. Entramos nos quarenta anos com a inexprimível idéia de que o nosso, simples  e silencioso matrimônio de irmãos, era o fim necessário da genealogia fundada por nossos bisavós em nossa casa. Morreríamos ali algum dia, vagos e distantes primos ficariam com a casa, e a demoliriam para enriquecerem com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos, inflexivelmente, antes que fosse demasiado tarde.

Irene era uma moça nascida para não fazer mal a ninguém. Fora sua atividade matinal, passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto. Acho que as mulheres tricotam quando encontram nesse trabalho o grande pretexto para não fazer nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, camisolas para o inverno, meias para mim, cachenês e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia rapidamente, porque alguma coisa não lhe agradava; era engraçado ver, na cestinha, o montão de lã encrespada, recusando-se a perder a forma de algumas horas antes. Aos sábados, eu ia ao centro para lhe comprar lã; Irene tinha confiança no meu gosto, aprovava as cores e nunca precisei devolver uma só moada. Aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar inutilmente se havia novidades em literatura francesa. Desde 1939 nada de importante chegava à Argentina.

É da casa, porém, que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem tricotar. Uma pessoa pode reler um livro, mas quando um pulôver está pronto não é possível repeti-lo sem provocar admiração. Um dia encontrei a última gaveta da cômoda de cânfora cheia de echarpes brancas, verdes, lilases. Estavam com naftalina, empilhadas como em uma loja; não tive coragem de perguntar a Irene o que pensava fazer com elas. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava a renda dos campos, e o dinheiro aumentava. Mas Irene só se entretinha tricotando, mostrava uma destreza maravilhosa, e eu passava as horas vendo suas mãos como ouriços prateados, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão, onde constantemente se agitavam os novelos. Era uma beleza.

Lembro-me bem da divisão da casa. A sala de jantar, uma peça com gobelinos, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá frente para a Rodríguez Pena. Um único corredor, com sua maciça porta de carvalho, separava essa parte da ala dianteira, onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos de dormir e o living central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um saguão de azulejos, e a porta principal dava para o living. De maneira que a gente entrava por esse saguão, abria a porta e já estava no living; tinha, dos lados, as portas dos nossos quartos e, à frente, o corredor que levava à parte mais afastada; seguindo pelo corredor, ultrapassava-se a porta de carvalho e, mais adiante, começava o outro lado da casa, ou então se podia virar à esquerda, justamente antes da porta, e seguir por um corredor mais estreito, que levava à cozinha e ao banheiro. Quando a porta estava aberta, dava para ver que a casa era muito grande; caso contrário, tinha-se a impressão de um desses apartamentos que se constroem agora, onde uma pessoa mal pode se mexer. Irene e eu vivíamos sempre nesta parte da casa, quase nunca íamos além da porta de carvalho, salvo para fazer a limpeza, pois é incrível como junta poeira nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa, mas isso ela deve a seus habitante se não a outra coisa. Há demasiada poeira no ar, mal sopra uma lufada de vento e já se acha pó nos mármores dos consolos e entre os buracos das toalhas de macramé; dá trabalho tirá-lo completamente só com o espanador, voa e se suspende no ar, um momento depois se deposita de novo nos móveis e no piano.

Recordarei sempre nitidamente porque foi simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando em seu quarto, eram oito da noite e, de repente, eu me lembrei de levar a chaleira do mate ao fogo. Fui pelo corredor até chegar à porta de carvalho, que estava entreaberta, e dava a volta ao cotovelo que levava à cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som vinha impreciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre tapete ou um abafado murmúrio de conversação. E o ouvi, também, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que vinha daquelas peças até a porta. Atirei-me contra a porta antes que fosse demasiado tarde, fechei-a violentamente, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava do nosso lado e, além disso, passei nessa porta o grande ferrolho para maior segurança.

Fui então à cozinha, fervi a água da chaleira e, quando voltei com a bandeja do mate, disse a Irene:

— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Deixou cair o tricô e me olhou com os seus graves olhos cansados.

— Você tem certeza?

Disse que sim.

— Então — disse, recolhendo as agulhas — teremos que viver neste lado.

Eu cevava o mate com muito cuidado, mas ela demorou um instante em recomeçar o trabalho. Lembro-me de que tricotava um colete cinzento; achava bonito esse colete.

Os primeiros dias nos pareceram penosos porque ambos tínhamos deixado muitas coisas que amávamos na parte tomada. Meus livros de leitura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene sentia falta de umas toalhas, um par de chinelas que a abrigavam muito no inverno. Eu lamentava o meu cachimbo de zimbro e acho que Irene pensou em uma garrafa de Hesperidina de muitos anos. Com freqüência (mas isto só aconteceu nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.

— Não está aqui.

E era mais uma das coisas de tudo o que tínhamos perdido no outro lado da casa.

Mas também tivemos vantagens. A limpeza ficou tão simplificada que mesmo nos levantando muito tarde, às nove e meia por exemplo, não eram onze e já estávamos de braços cruzados. Irene se acostumou-a ir comigo à cozinha e me ajudava a preparar o almoço. Pensamos bem, e decidimos isto enquanto eu fazia o almoço, Irene prepararia pratos frios para a noite. Alegramo-nos porque sempre se torna incômodo ter que abandonar os quartos ao entardecer e se pôr a cozinhar. Agora nos bastavam a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.

Irene estava contente porque lhe sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco desorientado por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, comecei a examinar a coleção de selos de papai, e isso me serviu para matar o tempo. Nós nos divertíamos muito, cada qual em suas coisas, quase sempre reunidos no quarto de Irene, que era mais confortável. Às vezes Irene dizia:

Olhe só este ponto que inventei. Não se parece com um trevo?

Um instante depois era eu que lhe punha diante dos olhos um quadradinho de papel para que visse o valor de algum selo de Eupen e Malmédy. Passávamos bem, e pouco a pouco começávamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta, eu acordava imediatamente. Nunca pude mehabituar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irenedizia que meus sonhos eram grandes sacudidelas que, às vezes, faziam cair o cobertor. Nossos quartos tinham um living separando-os, mas, de noite, se escutava qualquer coisa nacasa. Nós nos ouvíamos respirar, tossir, pressentíamos o gesto que conduz ao interruptor do abajur, as mútuas e frequentes insônias.

Fora disso, tudo estava silencioso na casa. De dia, eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um crepitar de folhas viradas de álbum filatélico. A porta de carvalho, creio tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, próximos à parte tomada, ficávamos falando em voz mais alta, ou Irene cantava canções de ninar. Em uma cozinha há demasiado ruído de louça e vidros para que outros sons a invadam. Muito poucas vezes permitíamos ali o silêncio, mas, quando voltávamos aos quartos e ao living, então a casa ficava silenciosa e, à meia-luz, até pisávamos mais vagarosamente para não nos incomodar. Acho que era por isso que, de noite, quando Irene começava a sonharem voz alta, eu a acordava imediatamente.

É quase repetir a mesma coisa, exceto nas conseqüências. De noite sinto sede, e antes de nos deitar disse a Irene que ia à cozinha buscar um copo com água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi ruído na cozinha, talvez no banheiro, porque o cotovelo do corredor diminuía o som. Minha maneira brusca de parar chamou a atenção de Irene, que veio para o meu lado sem dizer palavra. Ficamos ouvindo os ruídos, notando claramente que eram deste lado da porta de carvalho, na cozinha e no banheiro, ou mesmo no corredor, onde começava o cotovelo quase ao nosso lado.

Nem sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta, sem olhar para trás. Os ruídos ficavam mais fortes, mas sempre abafados, às nossas costas. Fechei de um golpe a porta e ficamos no saguão. Não se ouvia nada agora.

— Tomaram esta parte — disse Irene. O tricô descia de suas mãos e os fios iam até a porta e se perdiam por debaixo dela. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, ela largou o tricô sem ao menos olhá-lo.

— Você teve tempo de trazer alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.

— Não, nada.

Estávamos com o que tínhamos no corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no guarda-roupa do meu quarto. Agora era tarde.

Como me sobrava o relógio de pulso, vi que eram onze horas da noite. Cingi com meu braço a cintura de Irene (eu acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de nos afastarmos senti tristeza, fechei bem a porta de entrada e joguei a chave no bueiro. Não fosse algum pobre-diabo resolver roubar e entrasse na casa, a essa hora e com a casa tomada.

CARTA A UMA SENHORITA EM PARIS

Andrée, eu não queria vir morar em seu apartamento da Rua Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos, mas porque me desagrada entrar em uma ordem fechada, já construída até nas mais finas malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da lavanda, o adejar de um cisne com pós, o dueto de violino e viola no quarteto de Rará. Para mim é difícil entrar em um ambiente onde alguém que vive confortavelmente dispôs tudo como uma reiteração visível de sua alma, aqui os livros (de um lado em espanhol, do outro em francês e inglês), ali os almofadões verdes, neste exato lugar da mesinha o cinzeiro de cristal que parece a metade de uma bolha de sabão, e sempre um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia de amigo morto, ritual de bandejas com chá e pinças de açúcar… Ah, querida Andrée, como é difícil opor-se, embora aceitando-a com inteira submissão do próprio ser, à minuciosa ordem que uma mulher instaura em sua agradável residência. Como é condenável pegar uma tacinha de metal e pô-la na outra extremidade da mesa, pô-la ali simplesmente porque alguém trouxe seus dicionários de inglês e é deste lado, ao alcance da mão, que deverão estar. Mexer nessa tacinha vale por um horrível vermelho inesperado em meio a uma modulação de Ozenfant, como se de repente as cordas de todos os contrabaixos rebentassem ao mesmo tempo com a mesma espantosa chicotada no instante mais suave de uma sinfonia de Mozart. Mexer nessa tacinha altera o jogo de relações de toda a casa, de um objeto com outro, de cada momento de sua alma com a alma inteira da casa e sua distante moradora. E eu não posso aproximar os dedos de um livro, ajustar de leve o cone de luz de um lampião, abrir a tampa da caixa de música, sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de pardais.

Você sabe por que vim a sua casa, a seu tranqüilo salão festejado de sol. Tudo parece tão natural, como sempre que não se sabe a verdade. Você foi a Paris, eu fiquei com o apartamento da Rua Suipacha, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência, até que setembro a traga de novo a Buenos Aires e me atire a alguma outra casa onde talvez… Mas não lhe escrevo por isso, escrevo esta carta por causa dos coelhinhos, me parece justo informá-la; e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove.

Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levavam a parte nenhuma, que aquela quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das malas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei sua criada que viria me instalar aqui, e subi de elevador. Precisamente entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho. Nunca lhe contara antes, não pense.porém, que por deslealdade, mas naturalmente agente não vai ficar explicando aos outros que, de quando em quando, vomita um coelhinho. Como isso sempre me tem sucedido estando só, escondia ofato como se escondem tantos detalhes do que acontece (ou a gente faz acontecer) na intimidade total. Não me censure, Andrée, não me censure. De quando em quando me acontece vomitar um coelhinho. Não é razão para não viver em qualquer casa, não é razão para que a gente deva se envergonhar e estar isolado e andar se calando.

Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é rápido e higiênico, transcorre em um brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago preso pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco e completamente um coelhinho. Ponho-o na palma da mão, levanto sua penugem com uma carícia dos dedos, o coelho parece satisfeito de haver nascido e bole e esfrega o focinho na minha pele, movimentando-o com essa trituração silenciosa e do focinho de um coelho contra a pele de uma mão. Procura comer, e então eu (falo de quando isto acontecia em minha casa de campo) o levo comigo à varanda e ponho-o no grande vaso onde cresce o trevo que plantei para esse fim. O coelhinho levanta bem suas orelhas, envolve-o trevo novo com um veloz molinete do focinho, e eu sei que posso deixá-lo e ir embora, continuar por algum tempo uma vida não diferente da de tantos que compram seus coelhos nas granjas.

Entre o primeiro e o segundo andar, Andrée, como um aviso do que seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era surpresa? Não, medo da própria surpresa, talvez), porque antes de deixar minha casa, só dois dias antes, tinha vomitado um coelhinho e estava livre por um mês, cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido completamente o problema dos coelhinhos. Plantava trevo na varanda da minha outra casa, vomitava um coelhinho, punha-o no trevo e, ao fim de um mês, quando suspeitava que de um momento para outro… então dava o coelho já crescido à Sra. de Molina, que imaginava um hobby meu e não dizia nada. Já em outro vaso vinha crescendo um trevo novo e oportuno, eu esperava despreocupado a manhã em que a cosquinha de uma penugem subindo-me fechava a garganta, e o novo coelhinho repetia desde aquele momento a vida e os costumes do anterior. Os costumes, Andrée, são formas concretas do ritmo, são a quota de ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão horrível vomitar coelhinhos, uma vez que isso havia entrado no ciclo invariável, no método.Você há de querer saber por que todo esse trabalho, por que todo esse trevo e a Sra. de Molina. Teria sido preferível matar imediatamente o coelhinho e … Ah, você teria que vomitar um que fosse, pegá-los com dois dedos e colocá-lo na mão aberta, ainda aderido a você pelo próprio ato, pela aura inefável de sua proximidade recém-partida. Um mês distancia tanto; um mês é tanto, pêlos compridos, saltos, olhos selvagens, diferença absoluta. Andrée, um mês é um coelho, faz de verdade um coelho; mas o minuto inicial, quando o floco morno e buliçoso encobre uma presença inconfundível… Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Iduméia: tão da gente que a gente mesmo… e depois tão não a gente, tão isolado e distante em seu raso mundo branco tamanho carta.

Decidi, contudo, matar o coelhinho mal nascesse. Eu viveria quatro meses em sua casa: quatro talvez, com sorte, três  — colheradas de álcool no focinho.  (Você sabe que a misericórdia permite matar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de beber uma colherada de álcool? Sua carne então sabe melhor, dizem, embora eu… Três ou quatro colheradas de álcool, em seguida o banheiro ou um pacote se somando ao lixo.

Ao passar pelo terceiro andar o coelhinho se mexia em minha mão aberta. Sara esperava em cima, para me ajudar a entrar com as malas… Como lhe explicar que um capricho, uma casa que vende animais? Embrulhei o coelhinho no meu lenço, coloquei-o no bolsinho do sobretudo, deixando-o desabotoado para não espremê-Io. Mal se mexia. Sua miúda consciência devia estar revelando fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um dique final, e que é também um céu baixo, branco, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno. Sara não viu nada, fascinava-a o muito duro problema de ajustar o seu sentido de ordem a minha mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência diante de suas elaboradas explicações, em que abunda a expressão ”por exemplo”. Tão logo pude, me fechei no banheiro; matá-lo agora. Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era Branquíssimo e acho que mais lindo que os outros. Não me olhava, apenas bulia e estava contente, oque era o mais horrível modo de me olhar. Encerrei-o no pequeno armário vazio e voltei-me para desfazer as malas, desorientado mas não infeliz, não culpado, não ensaboando as mãos para tirar delas uma última convulsão.

Compreendi que não podia matá-Io. Mas nessa mesma noite vomitei um coelhinho negro. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinzento.

Você deve amar o belo armário do seu quarto, com aquela grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera da minha roupa. Guardo-os ali agora. Ali dentro. Verdade que parece impossível; nem Sara acreditaria. Porque Sara não desconfia de nada, e o fato de que não desconfie de nada se deve a minha horrível tarefa, uma tarefa que consome meus dias e minhas noites num só golpe de rastelo e vai me queimando por dentro e endurecendo como aquela estrela-do-mar que você pôs sobre a banheira e que a cada banho parece encher o corpo da gente de sal e açoites do sol e grandes rumores da profundidade.

De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com aporta fechada, o armário é uma noite diurna só para eles, e lá eles dormem sua noite com sossegada obediência. Levo comigo as chaves do quarto ao sair para o trabalho. Sara deve pensar que ponho em dúvida a honradez dela e me olha desconfiada, noto todas as manhãs que está para me dizer alguma coisa, mas por fim se cala, e eu fico muito contente… (Quando arruma o quarto, das nove às dez,  faço ruído na sala, ponho um disco de Benny Carter que toma todo o ambiente, e como Sara é também amiga de saelas e pasodobles, o armário parece silencioso e talvez esteja mesmo, porque para os coelhinhos agora é noite e hora de descanso.)

O dia deles principia nessa hora que vem depois do jantar, quando Sara leva a bandeja com um miúdo tilintar de pinças de açúcar, me deseja boa noite — sim, deseja, Andrée, o mais triste é que me deseja boa-noite
— e se fecha em seu quarto e imediatamente estou só, só com o maldito armário, só com meu dever e minha tristeza.

Deixo-os sair, se lançarem ágeis ao assalto do salão, cheirando lépidos o trevo que meus bolsos ocultavam e agora faz no tapete efêmeras rendas que eles alteram, removem, acabam num instante. Comem bem, calados, corretos, até esse instante nada tenho a dizer, só os olho do sofá, com um livro inútil na mão — eu que queria ler todos os seus Giraudoux, Andrée, e a história argentina de López que você tem na prateleira mais baixa —; e comem o trevo.

São dez. Quase todos brancos. Levantam a morna cabeça para as lâmpadas do salão, os três sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. Olham seu triplo sol e estão contentes. Por isso, pulam pelo tapete, pelas cadeiras, dez suaves manchas se movimentam como uma constelação móvel, de um lado para outro, embora eu quisesse vê-los quietos, vê-los a meus pés e quietos — um pouco o sonho de todo deus, Andrée, o sonho jamais realizado dos deuses —, não assim, se insinuando atrás do retrato de Miguel de Unamuno, à volta do grande jarro verde-claro, pela negra cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito, e eu me perguntando onde andarão os dois que faltam, e se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a Presidência de Rivadavia que eu queria ler na história de López.

Não sei como resisto, Andrée. Você recorda que vim descansar em sua casa. Não tenho culpa se de quando em quando vomito um coelhinho, se esta mudança me alterou também por dentro — não é nominalismo, não é magia, é apenas que as coisas não podem mudar assim de repente, às vezes as coisas mudam brutalmente e quando agente esperava a bofetada à direita. Assim, Andrée, ou de outra maneira, mas sempre assim.

Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas escrevo na noite deles. De dia dormem. Que alívio este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas Royal, vice-presidentes e mimeógrafos! Que alívio, que paz, que horror, Andrée! Agora me chamam ao telefone, são os amigos que se inquietam com minhas noites recolhidas, é Luís que me convida a caminhar ou Jorge que reservou entradas para um concerto. Quase não me atrevo a lhes dizer que não, invento prolongadas e ineficazes histórias de má saúde, de traduções atrasadas, de evasão. E quando retorno e subo de elevador — aquela passagem, entre o primeiro e o segundo  andar — renovo  noite  anoite irremediavelmente a vã esperança de que não seja verdade.

Faço o que posso para que não destrocem suas coisas. Roeram um pouco os livros da prateleira mais baixa, você os encontrará dissimulados para que Sara não note. Você gostava muito do lampião com o ventre de porcelana cheio de borboletas e antigos cavaleiros? O trincado mal se percebe, trabalhei toda noite com uma cola especial que me venderam em uma casa inglesa —  você sabe que as casas inglesas têm as melhores colas 
— e agora fico ao lado dele para que nenhum dos coelhos o alcance outra vez com as patas (é quase belo ver como gostam de se pôr em pé, lembrança do humano distante, talvez imitação de seu deus deambulando e os olhando carrancudo; além disso você terá percebido —  em sua infância, talvez — que se pode deixar um coelhinho em penitência contra a parede, de pé, as patinhas apoiadas e muito quieto horas a fio).

As cinco da manhã (dormi um pouco, estendido no sofá verde, e acordando a cada corrida aveludada, a cada tilintar) eu os ponho no armário e faço a limpeza. Por isso Sara encontra tudo em ordem, embora às vezes eu tenha notado nela algum espanto contido, um estar olhando um objeto, uma leve descoloração do tapete, e de novo o desejo de me perguntar alguma coisa, mas eu, assobiando as variações sinfônicas de Franck, faço que nem é comigo. Para que lhe contar, Andrée, as minúcias desventuradas desse amanhecer surdo e vegetal, em que caminho entredormido levantando cabos de trevo, folhas soltas, pêlos brancos, aos encontrões nos móveis, louco de sono, e meu Gide que se atrasa, Troyat que não traduzi, e minhas respostas a uma senhora distante que já estará se perguntando se…? Para que continuar com tudo isto, para que continuar esta carta que escrevo entre telefones e entrevistas.

Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e não virão mais. Faz quinze dias segurei na palma da mão um último coelhinho, depois nada, são só aqueles dez que estão comigo, sua diurna noite e agora crescendo, agora feios e nascendo o pêlo comprido, agora adolescentes e cheios de necessidades e caprichos, saltando sobre o busto de Antínoo (é Antínoo, de fato, aquele rapaz que olha cegamente?) ou se perdendo no living onde seus movimentos criam ruídos ressonantes, tanto que dali devo tirá-los, com medo de que Sara os ouça e apareça horripilada, talvez de camisola — porque Sara deve ser assim, com camisola — e então… Somente dez, pense você nessa pequena alegria que sinto, em meio a tudo isso, a crescente calma com que ultrapasso de volta os rígidos tetos do primeiro e do segundo andar.

Interrompi esta carta porque devia participar de um trabalho de comissões. E a continuo aqui em sua casa, Andrée, sob uma silenciosa grisalha de amanhecer. É mesmo o dia seguinte, Andrée? Um pedaço em branco da página será para você o intervalo, apenas a ponte que une a minha letra de ontem à minha letra de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo tudo terminou, onde você vê a ponte livre eu ouço quebrar-se a cintura furiosa da água, para mim este lado do papel, este lado da minha carta não continua a calma com que eu vinha lhe escrevendo, quando eu a deixei para participar de um trabalho de comissões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem onze coelhinhos; talvez agora mesmo, mas não, não agora — No elevador, logo, ou ao entrar; não importa mais onde, se o quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam.

Agora chega, escrevi isto porque me interessa provar-lhe que não fui tão culpado na destruição inevitável de sua casa. Deixarei esta carta à sua espera, seria sórdido que o Correio a entregasse a você em alguma clara manhã de Paris. Na noite passada virei os livros da segunda estante; eles já os alcançavam, ficando de pé ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes — não por fome, têm todo o trevo que compro e armazeno para eles nas gavetas da escrivaninha. Rasgaram as cortinas, os forros das poltronas, a moldura do auto-retrato de Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e também gritaram, estiveram dando voltas sob a luz do lustre, em círculo e como que me adorando, e então gritavam, gritavam como eu não acredito que os coelhos gritem.

Quis em vão tirar os pêlos que enfeiam o tapete, aparar as beiras da fazenda roída, encerrá-los de novo no armário. O dia sobe, talvez Sara se levante logo. É quase estranho que Sara não me importe. É quase estranho que não me importe de vê-los saltarem busca de brinquedos. Não tive tanta culpa, você verá quando chegar que muitos dos destroços estão bem reparados com a cola que comprei em uma casa inglesa, eu fiz o que pude para lhe evitar um desgosto… Quanto a mim, do dez ao onze há como um vazio insuperável. Você vê: dez estava bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas se podem construir. Mas não com onze, porque dizer onze é certamente dizer doze, Andrée, doze que será treze. Então há o amanhecer e uma fria solidão na qual cabem a alegria, as recordações, você e talvez tanta coisa mais. Há esta sacada sobre Suipacha cheia de aurora, os primeiros sons da cidade. Não acredito que lhes seja difícil juntar onze coelhinhos salpicados sobre os paralelepípedos, talvez nem os notem, atarefados com o outro corpo que convém levar logo, antes que passem os primeiros colegiais.

DISTANTE

Diário de Alina Reyes

12 de janeiro

Na noite aconteceu outra vez, eu tão cansada de pulseiras e miçangas, de pink champagne e da cara de Renato de Viñies, oh aquela cara de foca balbuciante, de retrato de Dorian Gray na melhor das hipóteses. Deitei-me com gosto de bombom de menta, de Boogie do Banco Vermelho, de mamãe bocejante e cinzenta (como ela fica quando volta das festas, cinzenta e adormecida, enormíssimo peixe e tão pouco ela).

E Nora que diz dormir com luz, com barulho, entre os apressados relatórios de sua irmã meio despida. Como são felizes, eu apago as luzes e as mãos, me dispo aos gritos do lufa-lufa diário, quero dormir e sou um horrível sino ressoando, uma onda, a corrente que o Rex arrasta a noite toda sobre as alfenas. Now I lay me down to sleep… Tenho que repetir versos, ou o sistema de buscar palavras com a, de pois com a e e, com as cinco vogais, com quatro. Com duas e uma consoante (asa, olá), com três consoantes e uma vogal (três, gris) e outra vez versos, a lua desceu à forja com sua armação de nardos, o menino a olha olha, o menino a está olhando. Com três e três alternadas, cabala, laguna, animal; Aramis, lufada, reparo.

Assim passo horas: de quatro, de três e duas, e mais tarde palíndromos. Os fáceis, salta Lenin el atlas; amigo no gima; os mais difíceis e formosos, áta-le, demoníaco Cain, o me delata; Anás usó tu auto, Susana. * Ou os maravilhosos anagramas: Salvador Dalí, Avida Dollars; Alina Reyes, es Ia reina y... Tão belo, este, porque abre um caminho, porque conclui. Porque a rainha e …

Não, horrível. Horrível porque abre caminho a esta que não é a rainha, e que outra vez odeio de noite. A essa que é Alina Reyes, não a rainha do anagrama; que será qualquer coisa, mendiga em Budapeste, freqüentadora de prostíbulo em Jujuy ou criada em Quetzaltenango, em qualquer lugar distante e não rainha. Mas Alina Reyes, e, por isso, ontem de noite aconteceu outra vez, senti-la e o ódio.

20 de janeiro

Às vezes sei que tem frio, que sofre, que batem nela. Posso apenas odiá-la muito, detestar as mãos que a atiram ao solo e também a ela, a ela ainda mais agora que estou dançando com Luis Maria,


*Mantidos no original, para preservar a possibilidade de leitura da direita para a esquerda. (N. do T.)


beijando-o ou apenas perto de Luis Maria. Porque a mim, à distante, não a querem. É a parte que não querem e como vai me dilacerar por dentro sentir que batem em mim ou a neve entra nos meus sapatos quando Luis María dança comigo e sua mão na minha cintura vai subindo como um calor de meio-dia, um sabor forte de laranja ou bambus chicoteados, e batem nela e é impossível resistir e então preciso dizer a Luis Maria que não estou bem, que é a umidade, umidade entre essa neve que não sinto, que não sinto e está entrando nos meus sapatos.

25 de janeiro

Claro, Nora veio me ver e houve uma cena. “Filhinha,é a última vez que lhe peço que me acompanhe ao piano. Fizemos um papelão.” Que sabia eu de papelões, acompanhei-a como pude, me lembro que a ouvia em surdina. Vatre âme est un paysage chaisi… Mas olhava minhas mãos entre as teclas e parecia que tocavam bem, acompanhavam Nora honestamente. Luis Maria também olhou minhas mãos, o pobrezinho, eu acho que era porque não se animava a olhar meu rosto. Devo ficar tão estranha. Pobre Norinha, que outra a acompanhe. (Isto parece cada vez mais um castigo, agora só me conheço lá quando vou ser feliz, quando sou feliz, quando Nora canta Fauré eu me conheço lá e não resta senão o ódio.)

Noite

As vezes é ternura, uma súbita e necessária ternura para com aquela que não é rainha e anda por aí. Gostaria de lhe mandar um telegrama, lembranças, saber que seus filhos estão bem ou que não tem filhos — porque eu acredito que lá não tenho filhos — e necessita consolo, compaixão, caramelos. Na noite passada adormeci urdindo telegramas, pontos de encontro. Chegarei quinta-feira pt. Espere-me ponte. Que ponte? Idéia que volta como volta Budapeste, acreditar na mendiga de Budapeste, onde haverá tanta ponte e neve que goteja. Então me endireitei rígida na cama e quase uivo, quase corro a acordar mamãe, a insistir para que acordasse. Tudo isso só por pensar. Ainda não é fácil dizê-lo. Tudo isso só por pensar que eu poderia ir agora mesmo a Budapeste, se realmente eu o quisesse. Ou a Jujuy, ou a Quetzaltenango. (Busquei estes nomes páginas atrás.) Não resolvem, seria igual dizer Três Arroios, Kobe, Florida n.° 400. Só resta Budapeste porque ali é o frio, ali batem em mim e me afrontam. Ali (eu sonhei, não é mais que um sonho, mas como adere e se insinua até a vigília) há alguém que se chama Rod — ou Erod, ou Rodo — e ele bate em mim e eu o amo, não sei se o amo mas me deixo bater, isso volta todo o dia, então é certo que o amo.

Mais tarde

Mentira. Sonhei Rod ou o fiz com uma imagem qualquer de sonho, já usada e tão simples. Não há Rod, hão de me castigar lá, mas quem sabe se é um homem, uma mãe furiosa, uma solidão. Ir para me buscar. Dizer a Luis Maria: “Vamos nos casar, me leva a Budapeste, a uma ponte onde há neve e alguém.” Eu digo: e se estou lá? (Porque eu penso em tudo com a secreta vantagem de não querer acreditar a fundo. E se estou lá?) Bem, se estou… Mas só louca, só… Que lua-de-mel!

28 de janeiro

Pensei uma coisa curiosa. Faz três dias que não chega nada da distante. Talvez agora não batam nela, ou terá conseguido proteção. Mandar-lhe um telegrama, umas meias… Pensei uma coisa curiosa. Chegava à horrível cidade e era de tarde, tarde esverdeada e aquosa como não são nunca as tardes se a gente não as ajuda imaginando. Pelo lado da dobrina Stana, na Perspectiva Skorda, cavalos eriçados de estalagmites e esbirros rígidos, pães fumegante se flocos de vento ensoberbecendo as janelas. Andar pela Dobrina com passo de turista, o mapa no bolsinho do meu vestido azul (com esse frio e fui deixar o casaco de pele no Burglos), até uma praça junto ao rio, quase em cima do rio trovejante de gelos quebrados e barcaças e algum martim-pescador que lá se chamará sbunáia tjéno ou algo pior.

Depois da praça imaginei que vinha a ponte. Pensei e não quis continuar. Era a tarde do concerto de Eisa Piaggio de Tarelli no Odeón, me vesti sem vontade adivinhando que depois a insônia estaria me esperando. Este pensar de noite, tão de noite… Quem sabe se não me perderia. A gente inventa nomes ao viajar pensando, recorda-os num instante:

Dobrina Stana, sbunáia tjéno, Burglos. Mas não sei o nome da praça, é um pouco como se de verdade tivesse chegado a uma praça de Budapeste e estivesse perdida por não saber o seu nome; ali onde um nome é uma praça.

Já vou, mamãe. Chegaremos a tempo a seu Bach e a seu Brahms. É um caminho tão simples. Sem praça, sem Burglos. Nós aqui, Eisa Piaggio lá. Que tristeza ter me interrompido, saber que estou em uma praça (mas isto não é mais verdade, só, o penso e isso é menos que nada). E que no fim da praça começa a ponte.

Noite

Começa, continua. Entre o final do concerto e o primeiro bis achei seu nome e o caminho. A Praça Vladas, a Ponte dos Mercados. Pela Praça Vladas segui até o nascimento da ponte, um pouco andando e querendo às vezes parar em casas ou vitrinas, em meninos abrigadíssimos e monumentos com altos heróis de embranquecidas capas, Tadeo Alanko e Vladislas Néroy, bebedores de tócai e cimbalistas. Eu via aplaudir Eisa Piaggio entre um Chopin e outro Chopin, pobrezinha, e de minha poltrona se saía diretamente à praça, com a entrada de ponte entre vastíssimas colunas. Mas isto eu pensava, atenção, o mesmo que fazer anagramas com es la reina y … em vez de Alina Reyes, ou imaginar mamãe na casa dos Suárez e não a meu lado. É bom não cair no meu gosto: isso é coisa minha, nada mais que ter vontade, a vontade real. Real porque Alina, ora vamos — Não a outra coisa, não o sentir que ela tem frio ou que a maltratam. Isto eu desejo e o continuo por gosto, para saber aonde vai, para saber se Luis Maria me leva a Budapeste, se nos casamos e lhe peço que me leve a Budapeste. É mais fácil sair a procura resta ponte, sair a minha procura e me encontrar como agora, porque já andei a metade da ponte entre gritos e aplausos, entre Albéniz! e mais aplausos e A Polonaise!, como se isto tivesse sentido entre a neve perigosa que me empurra com o vento pelas costas, mãos de toalha de esponja me levando pela cintura até o meio da ponte.

(É mais cômodo falar no presente. Isto era às oito, quando Elsa Piaggio tocava o terceiro bis, acho que Julián Aguirre ou Carlos Guastavino, alguma coisa com grama e passarinhos.) Mas fiquei canalha com o tempo, não lhe tenho mais respeito. Lembro-me que um dia pensei: “Lá me batem, lá a neve entra nos meus sapatos e eu sei disto na hora, quando lá está me acontecendo eu fico sabendo na mesma hora. Mas por que na mesma hora? Talvez chegue tarde, talvez não tenha acontecido ainda. Talvez baterão nela daqui a catorze anos, ou já é uma cruz e um número no cemitério de Santa Úrsula.” E me parecia bonito, possível, tão idiota. Porque atrás disso a gente sempre cai no tempo igual. Se agora ela estivesse realmente entrando na ponte, sei que o sentiria agora mesmo e daqui. Lembro-me de que parei para olhar o rio que estava como maionese encrespada, batendo contra os pilares, enfurecidíssmo e soando e chicoteando. (Isto eu pensava.) Valia a pena assomar ao parapeito da ponte e sentir nas orelhas a quebra do gelo ali embaixo. Valia a pena ficar, um pouco pela vista, um pouco pelo medo que me vinha de dentro – ou era o desabrigo, a nevada violenta e o meu casaco de pele no hotel. E depois porque eu sou modesta, sou uma moça sem vaidades, mas quero saber de outra a que tenha acontecido a mesma coisa, que viaje à Hungria em pleno Odeón. Isso faz qualquer um sentir frio, cara, aqui ou na França. Mamãe, porém, me puxava pela manga, quase já não havia gente na platéia. Escrevo até aqui, sem vontade de continuar me lembrando do que pensei. Vai me fazer mal se continuo me lembrando. Mas é verdade, verdade; pensei uma coisa curiosa.

30 de janeiro

Pobre Luis Maria, que burrice se casar comigo. Não sabe o que está pondo em cima dos ombros. Ou embaixo, como diz Nora, que posa de intelectual emancipada.

31 de janeiro

Iremos lá. Concordou com tanta coisa que quase grito. Senti medo, achei que ele entra muito facilmente neste jogo. E não sabe de nada, é como o peãozinho da dama que termina a partida sem saber. Peãozinho Luis Maria, ao lado de sua rainha. De la rema y 

7 de fevereiro

Para se curar. Não escreverei o final do que tinha pensado no concerto. Na noite passada eu a senti sofrer outra vez. Sei que lá estarão batendo de novo em mim. Não posso evitar de sabê-lo, mas chega de palavras. Se me houvesse limitado a registrar isso por gosto, por desabafo… Era pior, um desejo de conhecer ao ir relendo; de encontrar chaves em cada palavra atirada ao papel depois dessas noites. Como quando pensei a praça, o rio quebrado e os ruídos, e depois… Mas não o escrevo, não o escreverei jamais.

Ir lá e me convencer de que o celibato me fazia mal, nada mais que isso, ter vinte e sete anos e sem homem. Agora será meu cachorrinho, meu bobinho, chega de pensar, e agora ser, ser afinal e para o bem.

E apesar disso, já que terminarei este diário, porque a gente ou se casa ou escreve um diário, as duas coisas não andam juntas — Já agora não me agrada deixá-lo sem dizer isto com alegria de esperança, com esperança de alegria. Vamos lá, mas não há de ser como o pensei na noite do concerto. (Escrevo-o, e chega de diário para o meu bem.) Eu a encontrarei na ponte e nos olharemos. Na noite do concerto eu sentia nas orelhas a quebra do gelo ali embaixo. E será a vitória da rainha sobre essa aderência maligna, usurpação indevida e surda. Entregar-se-á se realmente sou eu, se somará à minha zona iluminada, mais bela e verdadeira; apenas por ir a seu lado e apoiar uma mão no seu ombro.

Alina Reyes de Aráoz e seu esposo chegaram a Budapeste a 6 de abril e se hospedaram no Ritz. Isso foi dois meses antes do seu divórcio. Na tarde do segundo dia Alina saiu para conhecer a cidade e o degelo. Como gostava de caminhar sozinha —  era rápida e curiosa — andou por vinte lados procurando vagamente alguma coisa, mas sem se determinar muito, deixando que o desejo escolhesse e se expressasse com bruscos arrancos que a levavam de uma vitrina a outra, mudando de calçadas e lojas.

Chegou à ponte e a atravessou até a metade, andando agora com dificuldade porque a neve batia de frente e do Danúbio cresce um vento de baixo, difícil, que prende e fustiga. Sentia como a saia se grudava nas coxas (não estava bem abrigada) e, de repente, um desejo de voltar, voltar à cidade conhecida. Na metade da ponte desolada a andrajosa mulher de cabelo negro e lasso esperava com alguma coisa firme e ávida na cara sinuosa, nas rugas das mãos meio fechadas mas já se estendendo. Alina chegou junto a ela repetindo, agora o sabia, gestos e distâncias como depois de um ensaio geral. Sem temor, libertando-se afinal — acreditava-o com um sobressalto terrível de júbilo e frio — chegou junto a ela e estendeu também as mãos, se negando a pensar, e a mulher da ponte se apertou contra seu peito e as duas se abraçaram rígidas e caladas na ponte, com o rio estilhaçado golpeando nos pilares.

Alina sentiu o fecho da bolsa que a força do abraço cravava entre os seios como uma laceração doce, suportável. Apertava a magríssima mulher sentindo-a inteira e absoluta dentro do seu abraço, com um crescer de felicidade igual a um hino, a um soltar de pombas, ao rio cantando. Fechou os olhos na fusão total, recusando as sensações de fora, a luz crepuscular; repentinamente tão cansada, mas certa de sua vitória, sem celebrá-la por tão seu e finalmente.

Pareceu-lhe, docemente, que uma das duas chorava. Devia ser ela porque sentiu molhadas as faces, e o próprio pômulo doendo como se tivesse ali levado um golpe. Também o pescoço, e logo os ombros, curvados por fadigas incalculáveis. Ao abrir os olhos (talvez gritasse agora) viu que se haviam separado. Agora, sim, gritou. De frio, porque a neve estava entrando por seus sapatos furados, porque andando a caminho da praça ia Alina Reyes lindíssima em seu vestido cinzento, o cabelo um pouco solto contra o vento, sem voltar o rosto e andando.


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