Sete minutos no paraíso – Livro de Victoria Gomes

Sete minutos no paraíso - Livro de Victoria Gomes

Trecho do livro

Capítulo um

Sarah

Péssimo dia para o universo resolver conspirar contra mim.

Eu poderia facilmente lidar com o terror que foi o último mês. Nunca fui avessa a mudanças bruscas, planos de última hora e giros de trezentos e sessenta graus na minha vida. Pelo contrário, sou bastante afeiçoada a eles. Gosto da adrenalina, da incerteza. Mergulhar no escuro sem ter ideia de onde estou me me-tendo é sempre o ponto alto dos meus dias. Se der certo, ótimo; se der errado, fica o aprendizado. Então, quando meu chefe me comunicou (isso mesmo, não foi uma pergunta, foi um aviso) que eu estava sendo transferida para Melbourne no final de outubro, por seis meses, para trabalhar em uma reportagem sobre vozes femininas em times de futebol australiano, não fiquei desesperada. Fiquei… confusa.

Primeiro que, considerando que a temporada de jogos profissionais femininos acontece entre fevereiro e março, em novembro as seletivas estão a toda e é uma das épocas mais agitadas do ano; pareceu uma péssima hora para fazer qualquer coisa que não acompanhar os jogos. Segundo que fui avisada com duas semanas de antecedência e, a menos que o relógio tivesse começado a girar para trás, não havia a menor chance de eu conseguir organizar minha vida inteira em míseros quinze dias para sair do Canadá e literalmente ir para o outro lado do mundo, no meio de cangurus e insetos assassinos.

Mas não questionei. De jeito nenhum eu questionaria. Ralei minha bunda para conseguir espaço em uma profissão tão dominada por homens e não abriria a boca para questionar minha primeira oportunidade como correspondente internacional aos vinte e nove anos, depois de ter passado os últimos oito trabalhando muito para construir uma boa reputação. Quem sabe não é essa a oportunidade para que eu consiga me consolidar de vez? Tudo que preciso fazer é entregar uma reportagem de alta qualidade técnica e que toque o coração do público. Isso eu sei fazer muito bem.

Arrumei minha mala, entrei no avião e sessenta horas, três escalas que duraram mais que o tempo de voo e uma bagatela de quase três mil dólares em passagem depois, aqui estou eu. Pronta, bela e suando como uma bastarda, na Austrália, porque me esqueci deste pequeno detalhe: é quase verão aqui.

Na pressa, sem pensar direito, empacotei o que tinha no meu armário. Considerando que morei em Vancouver pelos últimos quase dez anos da minha vida, aqui estou eu, com não mais do que meia dúzia de peças de roupa que posso de fato usar porque as temperaturas lá raramente passam de vinte e poucos graus e eu, um ser iluminado e inteligente, não gastei dois minutos do meu tempo para colocar os neurônios para funcionar e pensar que estava vindo para outro hemisfério.

Mas tudo bem. Tudo bem! Esse não é o problema.

Meu (agora ex) namorado que perdeu a cabeça porque me atrevi a não recusar a viagem logo de cara já que obviamente eu deveria ter ficado lá com ele brincando de casinha também não é o problema. O fato de ele não parar de me ligar há semanas, alternando entre estar furioso e implorar para voltar, também não é o problema. Passei a ignorar, drama encerrado.

O problema não é o sotaque das pessoas desse lugar ser tão absurdo que sequer parece que estão falando a mesma língua que eu.

Definitivamente o problema também não é o meu sapato ter escolhido hoje, entre todos os dias, para apertar meu pé e dar bolha em cada pedaço de pele exposto, justo quando é a minha vez de ir buscar café para todo mundo no escritório e preciso andar o quarteirão inteiro mancando.

Não.

O problema é essa cidade maldita ter escolhido esse exato segundo para derrubar na minha cabeça um temporal inesperado. Justo agora, quando estou parada na porta do café mais próximo ao prédio onde trabalho, encarando a porta fechada com uma plaquinha preta escrita à mão “volto em cinco minutos”.

Adivinha só? Eu já estou aqui há dez.

Encharcada, perdida e tendo certeza de que o mundo inteiro está contra mim, apoio a cabeça no vidro e solto um gemido resmungado, meio choroso. Apenas para um segundo depois ser completamente assolada por uma crise de riso. Rio, desesperada, sentindo o peso das mudanças recentes finalmente cair sobre mim na forma de histeria pura, o absurdo da situação me envolvendo. Um mês atrás, eu estava em um relacionamento estável, com um emprego estável, em um país que conhecia do avesso, perto da minha família, amigos, e agora estou aqui, sem nem saber onde conseguir um copo de café. Sozinha. Na chuva.

— Meu Deus, Sarah — digo para mim mesma, batendo a testa no vidro, o corpo inteiro tremendo pelo riso destrambelhado. — O que você está fazendo da vida?

Estou pronta para declarar derrota, arrancar os sapatos e andar descalça até o próximo café que encontrar. Volta e meia vejo alguém andando descalço por aqui mesmo, ninguém vai estranhar. Sem me dar ao trabalho de me recompor, tiro a testa da vidraça, faço uma careta para a marca molhada que ficou ali e me viro para voltar à minha peregrinação.

É quando eu o vejo e dou um pulo no lugar.

— Jesus, você me assustou! — reclamo, levando a mão ao peito. Então, aponto para a porta. — Estão fechados.

Recostado de lado na parede, não mais do que três ou quatro passos de distância de mim à direita, o homem está de braços cruzados, os olhos apertados na minha direção. Há um sorriso divertido nos seus lábios, que combina muito bem com o ar confuso que o cerca. Ele também pegou chuva pelo visto. O cabelo úmido e braços recobertos por gotículas de água denunciam.

Sem dizer nada, ele se inclina na minha direção, a mão indo à maçaneta. Com os olhos em um tom de azul inesperadamente quente ainda presos a mim, ele a gira e a empurra. O sininho pendurado no batente tilinta, e a porta se abre sem oferecer qualquer resistência.

Olho para o salão vazio, iluminado somente pela luz que vem de fora, do dia que agora volta a ser perfeitamente ensolarado, a chuva magicamente parando de cair, de forma tão abrupta quanto começou.

O que diabos…?

Volto minha atenção para ele, sendo atingida com tudo pelo sorriso aberto e divertido. É quando percebo que ele é grande. Tão perto de mim, seu corpo facilmente cobre o meu, e eu não sou exatamente pequena. Ombros largos e braços grandes presos dentro de uma T-shirt preta.

Ele indica com a cabeça, os olhos brilhando malícia enquanto escrutinam meu rosto.

— Vai entrar?

*

Acomodo-me em uma banqueta posicionada em frente ao que parece ser o balcão de atendimento de um café muito charmoso. O lugar é pequeno, talvez acomode vinte e tantas pessoas nas mesas quadradas de madeira espalhadas pelo salão. Assisto-o despreocupadamente circular o local, ligando luzes e iniciando o sistema no iPad posicionado no balcão, sem qualquer pressa.

Uma risada baixa atrai minha atenção, e desvio o olhar de uma foto de família pendurada na parede para voltar a encará-lo. O homem está com os cotovelos apoiados no balcão, os olhos divertidos presos a mim. Arqueio uma sobrancelha, inquisitiva.

— Quando você chegou na cidade? — pergunta, tombando a cabeça de leve para o lado.

— Como sabe que não sou daqui? — questiono, apertando meus olhos para ele, que aponta com o queixo na minha direção.

Desço o olhar para o meu corpo e solto um gemido frustrado. A roupa ensopada está grudada em mim, e não quero nem ver o estado do meu cabelo depois da chuva inesperada. Adeus, chapinha.

— Quatro estações em um dia. Qualquer um que more em Melbourne por mais do que algumas semanas sabe que o clima nessa cidade é imprevisível. Depois de um tempo, você para de se importar com a chuva. Nunca dura muito. — Volto a encará-lo, vendo-o dar de ombros e abrir um sorriso sacana. — Mas foi o sotaque que te denunciou. Canadá? — arrisca.

— Vancouver — confirmo. — Cheguei há três semanas, mas estou trabalhando tanto que mal vi a cara da rua ainda. A máquina de café ao seu lado começa a fazer barulho, dando sinal de vida.

Lembrando-me dos meus tempos de escola em que eu trabalhava meio período em um restaurante, sei que vai levar mais uns bons dez minutos para começar a esquentar e estar pronta para uso. Estou a ponto de me levantar e dizer que vou procurar outro lugar para comprar café ou vou acabar perdendo a reunião inteira, mas ele me distrai.

— Inaceitável — declara, balançando a cabeça em reprovação. — Você não pode atravessar o mundo para ficar trancada dentro de um escritório. Isso deve ser até um crime. O que vai contar para os seus filhos? Sobre a tinta nova que usaram para pintar a parede enquanto você olha para a tela enorme do seu computador?

Pisco rapidamente, soltando uma risada quase involuntária para o seu discurso tão passional, o cenho franzido em curiosidade.

— Primeiro, eu nunca disse que trabalhava em um escritório — aponto, erguendo um dedo. Ele toma seu tempo para lentamente escanear meu corpo novamente, arqueando uma sobrancelha em uma expressão de “é mesmo?” um segundo depois de terminar de avaliar minha roupa social. Bufo, revirando os olhos. — E eu não pretendo ter filhos, então não precisa se preocupar com as histórias entediantes que a próxima geração vai ouvir.

Ele pausa por um segundo, umedecendo os lábios, os cotovelos apoiados no balcão.

— Você não quer entediar seu namorado também — diz baixinho, a voz sugestiva carregada pela pergunta não feita.

Não consigo evitar o sorriso aberto, surpresa e nem um pouco ofendida pelo flerte descarado em pleno horário comercial.

— Nenhum namorado para entediar também — respondo. Ele não faz qualquer esforço para esconder a satisfação que pinta seu rosto enquanto desencosta do balcão, movendo a cabeça discretamente em positivo e indo checar a máquina de café. — E eu não diria que entreter um homem está no topo da minha lista de prioridades de qualquer forma — completo.

O sorriso dele se amplia ainda mais, os olhos vindo até mim com um brilho divertido.

— Eu não me atreveria a insinuar isso — garante com um menear sutil de cabeça. — Ainda assim, continuo firme no que acredito: é primavera! Você precisa se divertir.

Umedeço os lábios, oferecendo-o um repuxar de lábios.

— E qual a sua sugestão? Que eu ignore que preciso trabalhar e só apareça às… — Giro o celular na minha mão, acendendo a tela para conferir a hora. — Onze e meia porque estava ocupada demais na praia? — disparo, agora o olhando com mais cuidado e notando alguns grãos de areia presos por entre os pelos do antebraço.

Ele joga as duas sobrancelhas para o alto, encarando-me incrédulo. Nos lábios, contudo, tem um sorriso divertido.

— Não tem uma história de que canadenses são as pessoas mais educadas do mundo? Continue assim e vão cancelar seu passaporte.

É minha vez de rir, sentindo um pouco da tensão dos últimos dias deixar meu corpo. Não posso negar que ele tem razão. Deve mesmo ser um crime viajar para outro país e não ter tempo nem de dar uma espiadinha nos pontos turísticos porque estou tão sobrecarregada de trabalho que mal consigo respirar. Nem dormir, aliás. Estou tão cansada que mal consigo pensar em linha reta. É por isso que preciso que esse café fique pronto para ontem, antes que eu caia dura aqui mesmo e só acorde semana que vem.

Ele se abaixa, abrindo a portinha da geladeira escondida na parede atrás de si, e coloca um prato com uma fatia de brownie e um garfo minúsculo na minha frente.


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