Leia trecho do livro Baumgartner de Paul Auster

Baumgartner: uma história sobre amor, luto e memória

No último romance de Paul Auster, Sy Baumgartner é um professor de filosofia de 71 anos, à beira da aposentadoria, que vive imerso no vazio deixado pela esposa, Anna, morta há quase uma década em um acidente no mar. Lutando para superar a ausência, Baumgartner revive o passado através de lembranças que oscilam entre a juventude nos anos 1960, quando os dois se conheceram em Nova York, e os 40 anos de um relacionamento marcado por paixão e cumplicidade.

Auster, com sua habilidade literária, conduz o leitor por essas memórias, que revelam não apenas o amor, mas também os conflitos internos de Baumgartner e o legado de seu pai, um alfaiate polonês com um passado revolucionário.Baumgartner” é uma profunda exploração da alma humana, repleta de mistérios, perdas e resiliência. Com esse livro, Auster reafirma seu lugar entre os grandes nomes da literatura contemporânea, antes de sua morte em 2024, aos 77 anos, após uma luta contra o câncer.

Capitulo 1

Baumgartner estava sentado em sua mesa de trabalho no aposento do segundo andar a que ele por vezes se referia como seu escritório, seu cogitorium ou seu cantinho. Caneta na mão, estava no meio de uma frase do terceiro capítulo de sua monografia sobre os pseudônimos de Kierkegaard quando lhe ocorreu que o livro do qual necessitava extrair uma citação para terminar a frase tinha ficado na sala de visita do andar de baixo, onde o deixara antes de ir dormir na noite anterior. Ao descer para pegar o livro, também lhe ocorreu que havia prometido chamar sua irmã às dez horas daquela manhã e, como já eram quase dez, decidiu que iria até a cozinha fazer a chamada antes de recuperar o livro na sala de visita. Entretanto, ao entrar na cozinha, parou subitamente devido a um cheiro forte e penetrante. Deu-se conta de que alguma coisa estava queimando e, quando avançou na direção do fogão, viu que uma das bocas da frente tinha permanecido acesa e que a chama baixa e persistente corroía o fundo de uma pequena panela de alumínio que usara três horas antes para cozinhar os dois ovos que comera no café da manhã. Apagou o fogo e depois, sem pensar duas vezes, isto é, sem se dar ao trabalho de apanhar uma luva de cozinha ou uma toalha, queimou a mão ao erguer a panelinha destruída e fumegante. Baumgartner gritou de dor. Uma fração de segundo mais tarde deixou cair a panela, que bateu no chão com um agudo tilintar metálico, e ainda urrando de dor correu para a pia, abriu a torneira de água fria, pôs a mão direita debaixo da bica e a manteve lá por três ou quatro minutos enquanto o jorro frio escorria por sua pele.

Com a esperança de ter evitado bolhas potenciais nos dedos e na palma da mão, Baumgartner cuidadosamente os secou com um pano de prato, parou por um momento a fim de flexionar os dedos, aplicou suavemente o pano sobre a mão mais algumas vezes e depois se perguntou o que estava fazendo na cozinha. Antes que pudesse se lembrar de que devia telefonar para a irmã, o telefone tocou. Levantou o fone do gancho e resmungou um cauteloso alô. Devia ser ela, imaginou, finalmente lembrando por que estava ali e, já tendo passado das dez, que deixara de ligar para sua rabugenta irmã mais nova, que sem dúvida começaria a conversa o repreendendo por mais uma vez e como sempre não ter ligado para ela. Mas, quando a pessoa começou a falar, ele verificou que não se tratava de Naomi e sim de um homem, um homem desconhecido, com uma voz nada familiar, que gaguejava uma espécie de desculpa por estar atrasado. Atrasado para quê?, perguntou Baumgartner. Para ler seu registro, disse o homem. Eu devia estar aí às nove, não se lembra? Não, Baumgartner não se lembrava, era incapaz de recordar um único momento nos últimos dias e semanas em que tivesse combinado que o funcionário da companhia de eletricidade leria o registro às nove horas. Por isso, disse ao sujeito que não se preocupasse porque estaria em casa de manhã e de tarde; no entanto, o funcionário da companhia elétrica, que tinha uma voz jovem e parecia inexperiente, desejoso de agradar, insistiu em dizer que não tinha tempo para explicar exatamente por que não aparecera na hora marcada, mas que havia uma boa razão para aquilo, uma razão que escapava a seu controle, e que iria lá tão logo pudesse. Muito bem, disse Baumgartner, nos vemos então. Desligou o telefone e olhou para a mão direita, que havia começado a latejar devido à queimadura. Porém, ao examinar a palma e os dedos, não viu nenhuma bolha nem sinal de que a pele estivesse se soltando, apenas uma vermelhidão geral. Podia ser pior, ele pensou, dá para aguentar isso — e depois, dirigindo-se a si próprio, concluiu: Seu idiota, dessa vez você teve sorte.

Ocorreu-lhe que deveria telefonar para Naomi naquele instante antes que ela tomasse a iniciativa, mas, ao levantar o fone do gancho para discar o número, a campainha da porta tocou. Um longo suspiro escapou dos pulmões de Baumgartner. Com o tom de discagem ainda vibrando em sua mão, repôs o fone no gancho e começou a se encaminhar para a porta da frente, chutando com raiva a panela com o fundo carbonizado para o lado ao sair da cozinha.

Seu humor melhorou ao abrir a porta e ver que era a mulher da empresa de entrega de encomendas, Molly, uma visitante frequente que, com o correr do tempo, adquirira o status de… o quê? Não de fato uma amiga, e sim de uma conhecida, pois costumava vir à sua porta duas ou três vezes por semana durante os últimos cinco anos. A verdade é que o solitário Baumgartner, cuja esposa morrera há quase uma década, sentia alguma coisa por aquela mulher corpulenta de trinta e tantos anos cujo sobrenome nem sabia, pois, mesmo ela sendo negra e sua esposa branca, sempre que ele a via alguma coisa no olhar de Molly o fazia pensar na falecida Anna. Isso nunca deixava de acontecer, mas exatamente do que se tratava ele era incapaz de dizer. Talvez uma sensação de vivacidade, embora fosse bem mais que isso, ou quem sabe algo passível de ser descrito como uma vigilância radiosa ou, se não isso, simplesmente o poder de uma personalidade iluminada: o entusiasmo humano em todo seu vibrante esplendor emanando de dentro numa dança complexa e entrelaçada de sentimento e reflexão — talvez alguma coisa assim, se isso fizesse algum sentido; mas, como quer que chamemos a coisa que Anna tinha, Molly também a possuía. Por esse motivo, Baumgartner passara a encomendar livros de que não necessitava e que, sem jamais abri-los, doaria à biblioteca pública local, uma vez que seu único objetivo era passar um minuto ou dois na companhia de Molly todas as vezes que ela tocava a campainha a fim de entregar um dos volumes.

Bom dia, professor, ela disse, oferecendo-lhe seu sorriso iluminado como se fosse uma bênção. Outro livro para o senhor.

Obrigado, Molly, disse Baumgartner, sorrindo de volta quando ela entregou o fino embrulho em papel pardo. Como vai você?

Cedo ainda para dizer, cedo demais, mas até agora os pontos positivos são maiores que os negativos. Difícil se sentir triste numa manhã tão linda quanto a de hoje.

Primeiro dia bom da primavera — o melhor dia do ano. Tratemos de aproveitar enquanto dura, Molly. Nunca se sabe o que vai acontecer.

Verdade da boa, retrucou Molly. Deu uma risadinha de cumplicidade e depois, antes que ele pudesse pensar em algum comentário inteligente ou engraçado que prolongasse a conversa, ela deu um aceno de adeus e caminhou de volta para o furgão.

Essa era outra das muitas coisas que Baumgartner gostava em Molly. Ela sempre ria ao ouvir suas observações insípidas, até mesmo as mais tolas, as mais bobocas.

Caminhou de volta para a cozinha e pôs o livro ainda fechado no topo da pilha de embrulhos idênticos que ficava espremida num canto perto da mesa. A torre crescera tanto recentemente que dava a impressão de que a adição de um ou dois daqueles retângulos de um marrom-pálido derrubaria a coisa toda. Baumgartner fez uma anotação mental de que mais tarde deveria desembalar os livros e transferi-los desnudos para a caixa menos cheia das muitas que, na varanda fechada dos fundos, tinham sido postas junto de outros livros indesejados, para serem doados à biblioteca pública. Sim, sim, Baumgartner disse a si mesmo, sei que prometi fazer isso na última vez em que Molly esteve aqui, e também na vez anterior, mas agora é pra valer.

Olhou para o relógio de pulso e viu que eram dez e quinze. Ficando tarde, pensou, mas talvez não tarde demais para ligar para Naomi e evitar o pior antes que ela começasse a brindá-lo com insultos e xingamentos. Já ia tirar o fone do gancho quando o diabo do aparelho tocou de novo. Outra vez presumiu que era a irmã, outra vez se enganou.

Uma vozinha trêmula respondeu a seu abafado alô com uma pergunta quase inaudível: Sr. Baumgartner? As palavras foram pronunciadas por alguém tão jovem e tão claramente agoniado que Baumgartner se sentiu invadido por uma sensação de alarme, como se todos os órgãos em seu corpo de repente estivessem funcionando no dobro da velocidade normal. Quando perguntou quem era, a voz disse Rosita, e subitamente ele soube que alguma coisa devia ter acontecido com a sra. Flores, a primeira mulher que viera limpar a casa alguns dias depois do enterro de Anna e, desde então, vinha duas vezes por semana passar um pano úmido no chão e o aspirador de pó nos tapetes, cuidar da roupa suja e executar as numerosas outras tarefas domésticas, o que o havia impedido de viver em meio à sujeira e à desordem nos últimos nove anos e meio. A boa, firme, introvertida e quase silenciosa sra. Flores, com seu marido operário de obras e três filhos, dois rapazes e a mais nova, Rosita, uma garota magricela de doze anos que sempre vinha à sua casa no Dia das Bruxas para pegar seu saquinho de balas.

O que é que houve, Rosita?, perguntou Baumgartner. Aconteceu alguma coisa com sua mãe?

Não, respondeu Rosita, com minha mãe não. Com papai.

Baumgartner esperou alguns momentos para que as lágrimas retidas da menina jorrassem num choro curto e sufocado: como ela estava tentando se controlar e não cair de todo no pranto, sua respiração havia se transformado numa série de soluços trêmulos. Baumgartner entendeu que, como a sra. Flores devia vir naquela tarde e estávamos em meio às férias de primavera, Rosita não tinha ido à escola e fora instruída a informá-lo da emergência enquanto a mãe enfrentava o que quer que tivesse acontecido com o marido.

Depois que os arquejos e as lágrimas sufocadas tinham se reduzido um pouco, Baumgartner fez a pergunta seguinte. Juntando os fragmentos do relato de tudo que a menina tinha ouvido da mãe, que por sua vez ouvira de outra pessoa, ele entendeu que, naquela manhã, o sr. Flores fazia uma restauração numa cozinha e, ao serrar algumas tábuas no porão do cliente, numa operação que executara centenas senão milhares de vezes no passado, tinha de algum modo decepado dois dedos da mão direita.

Baumgartner viu os dois dedos amputados caindo em cima de uma pilha de serragem no chão. Viu o sangue jorrando dos cotocos sem pele. Ouviu o sr. Flores gritar.

Finalmente disse: Não se preocupe, Rosita. Sei que parece horroroso. Mas os médicos podem dar um jeito nisso. Podem repor os dedos do seu pai no lugar e, quando você voltar à escola no outono, ele vai estar em plena forma.

Verdade?

Sim, é verdade. Prometo.

Como a garota estava sozinha em casa e ficara paralisada num estado de puro pânico desde que a mãe saiu para o hospital, Baumgartner continuou a falar com ela por dez minutos. Lá para o fim da conversa, conseguiu extrair de Rosita algo parecido com uma risada e, quando por fim desligaram, aquela pequena desculpa para um riso foi o que ficou com ele, pois tinha quase certeza absoluta de que seria a coisa mais importante que faria naquele dia.

No entanto, Baumgartner ficou chocado. Puxou uma cadeira e se sentou, fixando o olhar numa velha mancha de xícara de café ao repassar a cena mentalmente. Angel Flores, carpinteiro veterano de quarenta e oito anos, ao fazer alguma coisa que vinha fazendo repetidamente ao longo de muitos anos, de repente e sem nenhuma justificativa perdeu o controle e, devido a um instante de desatenção, se feriu gravemente. Por quê? O que causou a perda de concentração e afastou seus pensamentos da tarefa em curso, coisa simples quando a pessoa está concentrada e perigosa quando não está? Será que algum companheiro o distraiu ao descer pela escada naquele momento? Será que um pensamento vadio inadvertidamente penetrou em sua mente? Uma mosca pousou em seu nariz? Sentiu uma súbita dor no estômago? Bebeu demais na noite anterior ou brigou com a mulher antes de sair de casa ou… De repente ocorreu-lhe que talvez o sr. Flores decepava os dedos no momento exato em que ele, Baumgartner, queimava a mão na panelinha. Cada qual causando a própria infelicidade, mesmo que a de um fosse muitíssimo maior que a do outro. E, contudo, em cada caso…

A campainha da porta soou, interrompendo o fluxo dos pensamentos errantes de Baumgartner. Merda, ele disse, ao se levantar lentamente da cadeira e arrastar os pés até a frente da casa. Um homem não pode nem pensar aqui nesta casa.

Ao abrir a porta, Baumgartner se viu encarando o leitor de registros, um sujeito alto e forte de uns vinte e tantos ou trinta e poucos anos, vestindo a camisa azul obrigatória da companhia elétrica com o logo estampado no bolso esquerdo e, abaixo dele, num vívido bordado em linhas amarelas, o nome do funcionário: Ed. Tanto quanto Baumgartner podia dizer, o olhar de Ed era ao mesmo tempo esperançoso e angustiado. Estranha combinação, ele pensou, e, quando Ed ofereceu um sorriso hesitante como forma de saudação, o efeito foi ainda mais confuso — como se o sujeito estivesse esperando que a porta fosse batida na sua cara. Para acalmar suas ansiedades, Baumgartner o convidou a entrar.

Obrigado, sr. Boom Garden, disse o homem ao entrar. Muito obrigado mesmo.

Mais divertido que ofendido com a deturpação de seu nome, Baumgartner disse: Por que não nos chamamos pelo primeiro nome? Como já sei o seu — Ed —, por que não deixamos de lado esse negócio de senhor e você não me chama de Sy?

Sai?, perguntou Ed. Que tipo de nome é esse?

É isso aí, só S e Y. Abreviação de Seymour, o nome ridículo que meus pais me deram quando nasci. Sy não é nenhuma maravilha, concordo, mas é melhor que Seymour.

Quer dizer que você também, disse o leitor de registros.

Eu também o quê?, perguntou Baumgartner.

Carrega um nome de que não gosta.

O que há de errado com Ed?

Nada. É o sobrenome que me chateia.

Ah, é mesmo? Qual é esse sobrenome?

Papadopoulos.

Não há nada de errado com ele. Um belo sobrenome grego.

Talvez para alguém que viva na Grécia. Mas faz o pessoal aqui nos Estados Unidos rir. Os garotos riam de mim na escola e, quando eu era lançador de beisebol na segunda liga uns anos atrás, o público ria quando meu nome era anunciado nos alto-falantes. Causa em qualquer um aquele troço… um complexo.

Se incomoda tanto a você, por que não muda?

Não posso. Ia partir o coração do meu pai.

Baumgartner estava ficando entediado. Se não desse um basta naquelas irrelevâncias sinuosas, Ed Papadopoulos dentro em breve contaria toda a história da vida do pai ou desfiaria reminiscências sobre sua ascensão e queda nas ligas inferiores de beisebol. Por isso, Sy, abreviação de Seymour, abruptamente mudou de assunto e perguntou a Ed se ele gostaria de dar uma olhada no registro situado no porão. Ficou então sabendo que aquele era seu dia de estreia no trabalho e o registro no porão seria o primeiro a ser feito por ele como empregado formal da companhia. Isso explicava a razão de não ter aparecido na hora marcada — não por culpa dele, é bom dizer, mas porque um grupo de leitores de registro veteranos lhe pregou uma peça naquela manhã, a primeira manhã no emprego!, esvaziando o tanque de gasolina de sua caminhonete. Tinham deixado apenas combustível suficiente para que ele dirigisse por menos de um quilômetro, fazendo o veículo parar numa rua movimentada bem na hora do rush, o que havia provocado aquele atraso embaraçoso. Disse que sentia muito, que estava tremendamente aborrecido por criar um inconveniente. Teria chegado a tempo se ao menos houvesse tido o bom senso de verificar o marcador de gasolina antes de começar a jornada de trabalho, mas aqueles brincalhões idiotas tinham que lhe pregar uma peça só porque era o novato, e levaria uma baita duma bronca do supervisor por causa daquilo. Mais um deslize desses e ficaria na marca do pênalti. Mais dois, e provavelmente seria posto na rua.

Continua…


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