Leia trecho do livro Admirável Mundo Novo de Aldous Leonard Huxley

Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, é um romance distópico clássico indispensável para quem busca reflexões sobre autoritarismo, manipulação genética e ficção especulativa. Publicado em 1932, a obra se passa em uma sociedade rigidamente controlada por princípios científicos, onde a tecnologia reprodutiva, o condicionamento psicológico e a alienação cultural são a base do controle social. Bernard Marx, um psicólogo que se sente deslocado em meio à sua casta, visita uma “reserva histórica” onde encontra uma sociedade com costumes similares aos do leitor. A partir daí, ele desafia o sistema.

Com previsões que se tornaram realidade, como a reprodução assistida e a manipulação psicológica, o romance figura ao lado de 1984, de Orwell, e Fahrenheit 451, de Bradbury, como uma das críticas mais relevantes aos regimes totalitários. Huxley, nascido em 1894, também escreveu sátiras e ensaios influenciados pela mística oriental e experiências com mescalina, registradas em As portas da percepção (1954). Huxley faleceu em 1963.

Prefácio

TODOS OS MORALISTAS ESTÃO DE ACORDO em que o remorso crônico é um sentimento dos mais indesejáveis. Se uma pessoa procedeu mal, arrependa-se, faça as reparações que puder e trate de comportar-se melhor na próxima vez. Não deve, de modo nenhum, pôr-se a remoer suas más ações. Espojar-se na lama não é a melhor maneira de ficar limpo.

A arte possui também sua moralidade, e muitas das regras desta são iguais, ou pelo menos análogas, às da ética comum. O remorso, por exemplo, é tão indesejável com relação à nossa arte de má qualidade quanto com relação ao nosso mau comportamento. A má qualidade deve ser identificada, reconhecida e, se possível, evitada no futuro. Esmiuçar as deficiências literárias de vinte anos atrás, tentar remendar uma obra defeituosa para levá-la à perfeição que não teve em sua primeira forma, passar a nossa meia-idade procurando remediar os pecados artísticos cometidos e legados por aquela outra pessoa que éramos na juventude — tudo isso, certamente, é vão e infrutífero. Eis por que este novo Admirável mundo novo sai igual ao antigo. Seus defeitos como obra de arte são consideráveis; mas, para corrigi-los, eu teria de reescrever o livro — e, ao reescrevê-lo, como uma outra pessoa, mais velha, provavelmente eliminaria não apenas as falhas da narrativa, mas também os méritos que pudesse ter tido originariamente. Assim, resistindo à tentação de chafurdar no remorso artístico, prefiro deixar o bom e o mau como estão e pensar em outra coisa.

Entretanto, parece-me que vale a pena mencionar pelo menos o defeito mais grave do romance, que é o seguinte: o Selvagem é posto diante de duas alternativas apenas, uma vida de insanidade na Utopia ou a vida de um primitivo numa aldeia de índios, vida esta mais humana em alguns aspectos, mas, em outros, pouco menos estranha e anormal. Na época em que foi escrito o livro, eu achava divertida e muito possivelmente verdadeira a ideia de que os seres humanos são dotados de livre-arbítrio para escolher entre a insanidade, de um lado, e a demência, de outro. Contudo, o Selvagem muitas vezes fala mais racionalmente do que, a rigor, o justificaria sua formação entre os praticantes de uma religião que é um misto de culto da fertilidade e de ferocidade de Penitentes. Nem mesmo o conhecimento de Shakespeare poderia justificar, na verdade, tais manifestações. E no fim, por certo, ele é levado a recuar da sanidade mental; o penitentismo nativo reafirma sua autoridade e o Selvagem acaba no autoflagelo maníaco e no desespero suicida. “E esses morrem sempre infelizes” — para satisfação do divertido e pirrônico esteta que era o autor da fábula.

Hoje não sinto o menor desejo de demonstrar que a sanidade é impossível. Pelo contrário, embora continue não menos tristemente certo que a sanidade é um fenômeno bastante raro, estou convencido de que ela pode ser alcançada, e gostaria de vê-la mais difundida. Por ter dito isso em diversos livros recentes e, acima de tudo, por ter compilado uma antologia do que disseram os sãos de espírito acerca da sanidade e de todos os meios pelos quais ela pode ser obtida, ouvi de um eminente crítico acadêmico a observação de que sou um triste sintoma do fracasso de uma classe intelectual em tempo de crise. A inferência é, suponho, que o professor e seus colegas são alegres sintomas de êxito. Os benfeitores da humanidade merecem as honras e a comemoração devidas. Construamos um Panteão para os professores. Deveria localizar-se entre as ruínas de uma das cidades destruídas da Europa ou do Japão, e acima da entrada eu inscreveria, em letras de seis ou sete pés de altura, estas simples palavras: CONSAGRADO À MEMÓRIA DOS EDUCADORES DO MUNDO. SI MONUMENTUM REQUIRIS CIRCUMSPICE.

Mas, voltando ao futuro… Se eu reescrevesse o livro agora, ofereceria uma terceira alternativa ao Selvagem. Entre as duas pontas do seu dilema, a utópica e a primitiva, estaria a possibilidade de alcançar a sanidade de espírito — possibilidade já realizada, até certo ponto, numa comunidade de exilados e refugiados do Admirável Mundo Novo, estabelecidos dentro dos limites da Reserva. Nessa comunidade, a economia seria descentralista e georgista, e a política, kropotkiniana e cooperativista. A ciência e a tecnologia seriam usadas como se, a exemplo do sábado, tivessem sido feitas para o homem, e não (como no presente e ainda mais no Admirável Mundo Novo) como se o homem tivesse de ser adaptado e escravizado a elas. A religião seria a procura consciente e inteligente do Objetivo Final do homem, a busca do conhecimento unitivo do Tao imanente ou Logos, da Divindade transcendente ou Brama. E a filosofia de vida predominante seria uma espécie de Utilitarismo Superior, em que o princípio da Maior Felicidade ocuparia posição secundária em relação ao do Objetivo Final — e a primeira pergunta a ser formulada e respondida em qualquer contingência da vida seria: “De que modo este pensamento ou ato ajudará ou impedirá a consecução, por mim e pelo maior número possível de outros indivíduos, do Objetivo Final do homem?”

Educado entre os primitivos, o Selvagem (nesta hipotética nova versão do livro) não seria transportado para a Utopia senão depois de ter tido a oportunidade de aprender algo em primeira mão sobre a natureza de uma sociedade composta de indivíduos em livre cooperação, dedicados à busca da sanidade de espírito. Assim alterado, Admirável mundo novo possuiria uma inteireza artística e filosófica (se é admissível usar uma palavra tão importante a propósito de uma obra de ficção) que, em sua forma atual, evidentemente lhe falta.

Mas Admirável mundo novo é um livro sobre o futuro e, sejam quais forem suas qualidades artísticas ou filosóficas, um livro desse tipo só poderá nos interessar se suas profecias derem a impressão de poderem, concebivelmente, vir a realizar-se. Do nosso atual posto de observação, quinze anos mais abaixo no plano inclinado da história moderna, até que ponto seus prognósticos parecem plausíveis? Que aconteceu no penoso intervalo para confirmar ou invalidar as predições de 1931?

Uma enorme e óbvia falha de previsão é imediatamente visível. Admirável mundo novo não contém nenhuma referência à fissão nuclear. Essa omissão é, na verdade, um tanto curiosa, pois as possibilidades da energia nuclear tinham sido tópico comum de debates durante anos antes de ser escrito o livro. Meu velho amigo Robert Nichols escrevera até uma peça de sucesso a respeito do assunto, e lembro-me de que eu próprio o mencionara de passagem num romance publicado em fins da década de 20. De modo que, como já disse, parece muito curioso que os foguetes e helicópteros do sétimo século de Nosso Ford não fossem movidos por núcleos de desintegração. O lapso pode não ser perdoável; mas é, pelo menos, fácil de explicar. O tema de Admirável mundo novo não é o avanço da ciência em si; é esse avanço na medida em que afeta os seres humanos. Os triunfos da física, da química e da engenharia são tacitamente dados como suposições. Os únicos progressos científicos descritos especificamente são os que se relacionam com a aplicação aos seres humanos dos resultados de futuras pesquisas nos terrenos da biologia, da fisiologia e da psicologia. É somente por meio das ciências da vida que se pode mudar radicalmente a qualidade desta. As ciências da matéria podem ser aplicadas de tal modo que destruam a vida ou a tornem irreversivelmente complexa e desconfortável; mas, a menos que sejam usadas como instrumentos pelos biólogos e psicólogos, não podem modificar as formas e expressões naturais da própria vida. A liberação da energia atômica assinala uma grande evolução na história humana, porém (salvo se nos explodirmos e assim pusermos ponto final à história) não a revolução final e mais profunda.

Essa revolução verdadeiramente revolucionária deverá ser realizada, não no mundo exterior, mas sim na alma e na carne dos seres humanos. Vivendo, como viveu, num período revolucionário, o Marquês de Sade fez uso, com muita naturalidade, dessa teoria das revoluções para racionalizar seu tipo peculiar de insanidade. Robespierre realizara a espécie de revolução mais superficial, a política. Penetrando um pouco mais, Babeuf tentara a revolução econômica. Sade considerava-se o apóstolo da revolução verdadeiramente revolucionária, que iria além da mera política e economia — a revolução dos indivíduos, homens, mulheres e crianças, cujos corpos se tornariam, de então em diante, a propriedade sexual comum, e cujas mentes deveriam ser expurgadas de todas as decências naturais, de todas as inibições laboriosamente adquiridas da civilização tradicional. Entre a doutrina de Sade e a revolução verdadeiramente revolucionária não há, por certo, nenhuma relação necessária ou inevitável: Sade era um lunático, e a meta mais ou menos consciente de sua revolução eram a destruição e o caos universal. Os homens que governam o Admirável Mundo Novo podem não ser sãos de espírito (no sentido “absoluto” da expressão), mas não são loucos. Sua meta não é a anarquia, e sim a estabilidade social. É para alcançar essa estabilidade que eles realizam, por meios científicos, a revolução última, pessoal, verdadeiramente revolucionária.

Enquanto isso, porém, estamos na primeira fase do que talvez seja a penúltima revolução. Sua fase seguinte poderá ser a guerra atômica, e nesse caso não precisamos nos preocupar com profecias sobre o futuro. Mas é concebível que tenhamos bastante bom senso, se não para pôr fim a todas as lutas, pelo menos para nos portarmos de maneira tão racional como o fizeram nossos antepassados do século XVIII. Os horrores inimagináveis da Guerra dos Trinta Anos constituíram-se realmente numa lição para os homens, e por mais de cem anos os políticos e generais da Europa resistiram conscientemente à tentação de empregar seus recursos militares até os limites da destrutividade ou (na maioria dos conflitos) de continuar a combater até que o inimigo fosse inteiramente aniquilado. Eram agressores, sem dúvida, ávidos de lucro e de glória; mas eram também conservadores, decididos a manter, a todo custo, intato o seu mundo como um mecanismo em condições de funcionamento. Nos últimos trinta anos, não tem havido conservadores, apenas radicais nacionalistas da direita e radicais nacionalistas da esquerda. O último estadista conservador foi o quinto Marquês de Lansdowne; e, quando ele escreveu uma carta ao The Times sugerindo que a Primeira Guerra Mundial deveria ser concluída por meio de um acordo, como o tinham sido, em sua maioria, as guerras do século XVIII, o diretor daquele jornal historicamente conservador recusou-se a publicá-la. Os radicais nacionalistas impuseram sua vontade, com as consequências que todos conhecemos — bolchevismo, fascismo, inflação, depressão, Hitler, Segunda Guerra Mundial, ruína da Europa e fome quase universal.

Supondo, pois, que seremos capazes de aprender tão bem com Hiroshima como nossos antepassados aprenderam com Magdeburgo, podemos esperar um período não de paz, na verdade, mas sim de guerra limitada e apenas parcialmente destrutiva. Durante esse período, pode-se presumir que a energia nuclear será utilizada para fins industriais. O resultado, como é bastante óbvio, será uma série de mudanças econômicas e sociais sem precedentes na sua rapidez e totalidade. Todos os padrões de vida humana existentes serão rompidos, e terão de ser improvisados novos padrões em conformidade com o fato não humano da força atômica. O cientista nuclear, Procrusto em roupagem moderna, preparará a cama em que a humanidade deverá deitar-se; e se a humanidade não se ajustar, tanto pior para ela. Terão de haver algumas ampliações e algumas amputações — o mesmo tipo de ampliações e amputações que vem ocorrendo desde que a ciência aplicada realmente se pôs em marcha; mas, desta vez, serão bem mais drásticos do que no passado. Essas operações nada indolores serão dirigidas por governos totalitários altamente centralizados. Isso é inevitável, porquanto o futuro imediato deverá parecer-se ao passado imediato, em que as mudanças tecnológicas rápidas, verificadas numa economia de produção em massa e entre uma população predominantemente destituída de posses, sempre tenderam a provocar a confusão econômica e social. Para enfrentar a confusão, o poder tem sido centralizado e o controle governamental, ampliado. É provável que todos os governos do mundo venham a ser quase que completamente totalitários mesmo antes da utilização da energia nuclear; que o serão durante e após essa utilização, parece quase certo. Só um movimento popular em grande escala pela descentralização e iniciativa local poderá deter a atual tendência para o estatismo. Atualmente, não existe nenhum sinal de que venha a ocorrer tal movimento.

Não há, por certo, nenhuma razão para que os novos totalitarismos se assemelhem aos antigos. O governo pelos cassetetes e pelotões de fuzilamento, pela carestia artificial, pelas prisões e deportações em massa, não é simplesmente desumano (ninguém se importa muito com isso hoje em dia); é, de maneira demonstrável, ineficiente — e numa época de tecnologia avançada a ineficiência é o pecado contra o Espírito Santo. Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos de um Poder Executivo todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão. Fazer com que eles a amem é a tarefa confiada, nos Estados totalitários de hoje, aos ministérios de propaganda, diretores de jornais e professores. Seus métodos, porém, são ainda primitivos e pouco científicos. A afirmação jactanciosa dos antigos jesuítas de que, se lhes fosse dado educar a criança, se responsabilizariam pelas opiniões religiosas do homem, não era mais do que o produto da racionalização de um desejo. E o pedagogo moderno é, com toda probabilidade, bem menos eficiente no condicionamento dos reflexos de seus alunos do que o eram os reverendos que educaram Voltaire. Os maiores triunfos da propaganda têm sido obtidos, não por atos positivos, mas pela abstenção. Grande é a verdade, mas ainda maior, do ponto de vista prático, é o silêncio em torno da verdade. Pela simples abstenção de mencionar certos assuntos, pela interposição do que o sr. Churchill denomina uma “cortina de ferro” entre as massas e os fatos ou argumentos que os chefes políticos locais consideram indesejáveis, os propagandistas totalitários têm influenciado a opinião com muito mais eficácia do que poderiam tê-lo feito pelas mais eloquentes invectivas, pelas mais convincentes refutações lógicas. Mas o silêncio não basta. Se se quiser evitar a perseguição, a liquidação e outros sintomas de atrito social, os aspectos positivos da propaganda deverão ser tão eficazes como os negativos. Os mais importantes Projetos Manhattan do futuro serão vastas pesquisas, sob patrocínio governamental, em torno do que os políticos e os cientistas participantes chamarão “o problema da felicidade” — em outras palavras, o problema de fazer com que as pessoas amem sua servidão. Sem segurança econômica, o amor à servidão simplesmente não pode existir; para maior brevidade, suponho que o todo-poderoso executivo e seus administradores conseguirão resolver o problema da segurança permanente. Mas a segurança tende a tornar-se em muito pouco tempo uma coisa aceita como normal. Sua realização constitui uma revolução meramente superficial, externa. O amor à servidão não pode ser instituído senão como fruto de uma profunda revolução pessoal nas mentes e nos corpos humanos. Para efetuar essa revolução precisamos, entre outras coisas, das descobertas e invenções enumeradas a seguir. Primeiro, uma técnica de sugestão consideravelmente aperfeiçoada — pelo condicionamento infantil e, mais tarde, com o auxílio de drogas, como a escopolamina. Segundo, uma ciência das diferenças humanas completamente desenvolvida, que permita aos administradores encaminhar qualquer indivíduo ao seu devido lugar na hierarquia social e econômica. (As pessoas mal-adaptadas à sua posição tendem a alimentar pensamentos perigosos sobre o sistema social e a contagiar os outros com seus descontentamentos.) Terceiro (uma vez que a realidade, por mais utópica que seja, é algo de que as pessoas precisam tirar férias com bastante frequência), um substituto para o álcool e os outros narcóticos, que seja ao mesmo tempo menos nocivo e mais prazeroso que o gim ou a heroína. E quarto (mas este seria um projeto a longo prazo, que demandaria gerações de controle totalitário para ser levado a bom termo), um sistema infalível de eugenia, destinado a padronizar o produto humano, facilitando assim a tarefa dos administradores. Em Admirável mundo novo essa padronização do produto humano foi levada a extremos fantásticos, embora, talvez, não impossíveis. Técnica e ideologicamente, ainda estamos muito longe dos bebês enfrascados e dos grupos Bokanovsky de semialeijões. Mas, pelo ano 600 d.F., quem sabe o que não estará acontecendo? Entrementes, as outras características desse mundo mais feliz e mais estável — os equivalentes do soma e da hipnopedia e o sistema científico de castas — não estão, provavelmente, a mais de três ou quatro gerações de nós. E a promiscuidade sexual de Admirável mundo novo também não parece tão distante. Já existem cidades norte-americanas em que o número de divórcios é igual ao de casamentos. Dentro de poucos anos, sem dúvida, licenças para casamento serão vendidas como as licenças para a posse de cães, válidas por um período de doze meses, sem nenhuma lei que proíba a troca de cães ou a posse de mais de um cão de cada vez. À medida que diminui a liberdade política e econômica, a liberdade sexual tende a aumentar como compensação. E o ditador (a não ser que precise de massa de manobra e de famílias para colonizar territórios despovoados ou conquistados) agirá prudentemente estimulando essa liberdade. Em conjunção com a liberdade de sonhar sob a influência das drogas, do cinema e do rádio, ela ajudará a reconciliar os súditos com a servidão que é o seu destino.

Tudo considerado, a Utopia parece estar muito mais perto de nós do que qualquer pessoa, apenas quinze anos atrás, poderia imaginar. Nessa época, eu a projetei para daqui a seiscentos anos. Hoje parece perfeitamente possível que o horror esteja entre nós dentro de um único século. Isto é, se nos abstivermos de nos explodirmos antes disso. Na verdade, a menos que prefiramos a descentralização e o emprego da ciência aplicada, não como o fim a que os seres humanos deverão servir de meios, mas como o meio de produzir uma raça de indivíduos livres, teremos apenas duas alternativas: ou diversos totalitarismos nacionais militarizados, tendo como raiz o terror da bomba atômica e como consequência a destruição da civilização (ou, no caso de guerras restritas, a perpetuação do militarismo); ou então um totalitarismo supranacional suscitado pelo caos social resultante do progresso tecnológico, e em particular da energia atômica, totalitarismo esse que se transformará, ante a necessidade de eficiência e estabilidade, na tirania assistencial da Utopia. É escolher.

Capítulo I

UM EDIFÍCIO CINZENTO E ATARRACADO, DE trinta e quatro andares apenas. Acima da entrada principal, as palavras CENTRO DE INCUBAÇÃO E CONDICIONAMENTO DE LONDRES CENTRAL e, num escudo, o lema do Estado Mundial: COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE. A enorme sala do andar térreo dava para o norte. Apesar do verão que reinava para além das vidraças, apesar do calor tropical da própria sala, a luz tênue que entrava pelas janelas era fria e crua, buscando, faminta, algum manequim coberto de roupas, algum vulto acadêmico pálido e arrepiado, mas só encontrando o vidro, o níquel e a porcelana de brilho glacial de um laboratório. À algidez hibernal respondia a algidez hibernal. As blusas dos trabalhadores eram brancas, suas mãos estavam revestidas de luvas de borracha pálida, de tonalidade cadavérica. A luz era gelada, morta, espectral. Somente dos cilindros amarelos dos microscópios vinha um pouco de substância rica e viva, que se esparramava como manteiga ao longo dos tubos reluzentes. — E esta — disse o Diretor, abrindo a porta — é a Sala de Fecundação. No momento em que o Diretor de Incubação e Condicionamento entrou na sala, trezentos Fecundadores, curvados sobre os seus instrumentos, estavam mergulhados naquele silêncio em que se ousa apenas respirar, naquele cantarolar ou assobiar inconsciente que traduz a mais profunda concentração. Uma turma de estudantes recém-chegados, muito jovens, rosados e inexperientes, seguia com certo nervosismo, com uma humildade um tanto abjeta, os passos do Diretor. Todos traziam cadernos de notas, em que, cada vez que o grande homem falava, rabiscavam desesperadamente. Eles bebiam ali seu saber na própria fonte. Era um privilégio raro. O D.I.C. de Londres Central sempre fazia questão de conduzir pessoalmente seus novos alunos na visita aos vários serviços e dependências. — Só para dar a vocês uma ideia de conjunto — explicava-lhes. Porque era preciso, naturalmente, que tivessem alguma ideia de conjunto para poderem fazer seu trabalho inteligentemente — mas uma ideia o mais resumida possível, para que se tornassem membros úteis e felizes da sociedade. Porque os detalhes, como se sabe, conduzem à virtude e à felicidade; as generalidades são males intelectualmente necessários. Não são os filósofos, mas sim os colecionadores de selos e os marceneiros amadores que constituem a espinha dorsal da sociedade. — Amanhã — acrescentava, sorrindo-lhes com uma jovialidade levemente ameaçadora — os senhores entrarão no trabalho sério. Não terão tempo para generalidades. Enquanto isso… Enquanto isso, era um privilégio. Da própria fonte para o caderno de notas. Os rapazes rabiscavam febrilmente. Alto e um tanto magro, mas ereto, o Diretor adiantou-se sala adentro. Tinha o queixo alongado e os dentes fortes, um pouco proeminentes, que seus lábios grossos, de curva acentuada, mal conseguiam encobrir quando não estava falando. Velho? Jovem? Trinta anos? Cinquenta? Cinquenta e cinco? Era difícil dizer. Aliás, não vinha ao caso; nesse ano da estabilidade, 632 d.F., a ninguém ocorreria perguntar. — Vou começar pelo começo — disse o D.I.C., e os estudantes mais aplicados anotaram sua intenção no caderno: Começar pelo começo. — Isto — agitou a mão — são as incubadoras. — E, abrindo uma porta de proteção térmica, mostrou-lhes porta-tubos empilhados uns sobre os outros e cheios de tubos de ensaio numerados. — A provisão de óvulos para a semana. Mantidos à temperatura do sangue; ao passo que os gametas masculinos — e abriu outra porta — devem ser guardados a 35o, em vez de 37o. A temperatura normal do sangue esterilizado. Carneiros envoltos em termogênio não procriam cordeiros. Sempre apoiado nas incubadoras, forneceu-lhes, enquanto os lápis corriam ilegivelmente de um lado a outro das páginas, uma breve descrição do moderno processo de fecundação; falou primeiro, naturalmente, da sua introdução cirúrgica — “a operação suportada voluntariamente para o bem da Sociedade, sem esquecer que proporciona uma gratificação de seis meses de ordenado”; continuou com uma exposição sumária da técnica de conservação do ovário, seccionado no estado vivo e em pleno desenvolvimento; passou a considerações sobre a temperatura, a salinidade e a viscosidade ideais; fez alusão ao líquido em que se conservavam os óvulos desprendidos e maduros; e, levando os alunos às mesas de trabalho, mostrou-lhes até como se retirava esse líquido dos tubos de ensaio; como o fazia cair gota a gota sobre as lâminas de vidro, especialmente aquecidas, para preparações microscópicas; como os óvulos que ele continha eram inspecionados com vista em possíveis caracteres anormais, contados e transferidos para um recipiente poroso; como (e levou-os a observar a operação) esse recipiente era mergulhado em um caldo tépido contendo espermatozoides que nele nadavam livremente — “na concentração mínima de cem mil por centímetro cúbico”, insistiu —; e como, depois de dez minutos, o vaso era retirado do líquido e seu conteúdo, novamente examinado; como, se ainda restassem óvulos não fecundados, era ele mergulhado uma segunda vez e, se necessário, uma terceira; como os óvulos fecundados voltavam às incubadoras, onde eram conservados os Alfas e os Betas até seu acondicionamento definitivo em bocais, enquanto os Gamas, os Deltas e os Ípsilons eram retirados ao fim de apenas trinta e seis horas para serem submetidos ao Processo Bokanovsky. — Ao Processo Bokanovsky — repetiu o Diretor, e os estudantes sublinharam essas palavras em seus cadernos. Um ovo, um embrião, um adulto — é o normal. Mas um ovo bokanovskizado tem a propriedade de germinar, proliferar, dividir-se: de oito a noventa e seis germes, e cada um destes se tornará um embrião perfeitamente formado, e cada embrião, um adulto completo. Assim se consegue fazer crescer noventa e seis seres humanos em lugar de um só, como no passado. Progresso. — A bokanovskização — disse o D.I.C., para concluir — consiste essencialmente numa série de interrupções do desenvolvimento. Nós detemos o crescimento normal e, paradoxalmente, o ovo reage germinando em múltiplos brotos. Reage germinando. Os lápis entraram em atividade. Ele apontou. Sobre uma esteira muito lenta, um porta-tubos cheio de tubos de ensaio penetrava numa grande caixa metálica e outro surgia. Ouvia-se um leve rumor de máquinas. Os tubos levavam oito minutos para atravessar a caixa de ponta a ponta, explicou, ou seja, oito minutos de exposição direta aos raios X, o que é quase o máximo que um ovo pode suportar. Um pequeno número morria; outros, os menos suscetíveis, dividiam-se em dois; a maioria proliferava em quatro brotos; alguns, em oito; todos eram reenviados às incubadoras, onde os brotos começavam a desenvolver-se; então, passados dois dias, eram submetidos subitamente ao frio; ao frio e à interrupção de crescimento. Os brotos dividiam-se, por sua vez, em dois, em quatro, em oito. Depois, tendo germinado, eram submetidos a uma dose quase letal de álcool; em consequência, proliferavam de novo, e, tendo germinado, ficavam então a desenvolver-se em paz, brotos de brotos de brotos — toda nova interrupção seria geralmente fatal. A essa altura, o ovo primitivo tinha fortes probabilidades de se transformar em um número qualquer de embriões, de oito a noventa e seis — o que é, hão de convir, um aperfeiçoamento prodigioso em relação à natureza. Gêmeos idênticos — mas não em insignificantes grupos de dois ou três, como nos velhos tempos da reprodução vivípara, quando um ovo se dividia às vezes, acidentalmente, e sim em dúzias, em dezenas, de uma só vez. — Dezenas — repetiu o Diretor, e fez um gesto largo com o braço, como se distribuísse liberalidades a uma multidão. — Dezenas. Um dos estudantes, todavia, cometeu a tolice de perguntar em que consistia a vantagem. — Meu bom rapaz! — O Diretor virou-se vivamente para ele. — Não vê, pois? Não vê? — Ergueu a mão; sua atitude era solene. — O Processo Bokanovsky é um dos principais instrumentos da estabilidade social! Um dos principais instrumentos da estabilidade social. Homens e mulheres padronizados, em grupos uniformes. Todo o pessoal de uma pequena usina constituído pelos produtos de um único ovo bokanovskizado. — Noventa e seis gêmeos idênticos fazendo funcionar noventa e seis máquinas idênticas! — sua voz estava quase trêmula de entusiasmo. — Sabe-se seguramente para onde se vai. Pela primeira vez na história. — Citou o lema planetário: — “Comunidade, identidade, estabilidade”. — Grandes palavras. — Se pudéssemos bokanovskizar indefinidamente, todo o problema estaria resolvido. Resolvido por meio de Gamas típicos, Deltas invariáveis, Ípsilons uniformes. Milhões de gêmeos idênticos. O princípio da produção em série aplicado enfim à biologia. — Mas ai de nós! — o Diretor sacudiu a cabeça. — Não podemos bokanovskizar indefinidamente. Noventa e seis, tal parecia ser o limite; setenta e dois, uma boa média. Fabricar com o mesmo ovário e os gametas do mesmo macho o maior número possível de grupos de gêmeos idênticos — era o que se podia fazer de melhor (um melhor que, infelizmente, não passava de um menos mau). E até isso era difícil. — Porque, na natureza, são necessários trinta anos para que duzentos óvulos cheguem à maturidade. Mas o nosso problema é estabilizar a população neste momento, aqui e agora. Produzir gêmeos com o conta-gotas no decurso de um quarto de século, para que serviria isso? Evidentemente, não serviria para nada. Mas a técnica de Podsnap tinha acelerado imensamente o processo de maturação. Era possível obter pelo menos cento e cinquenta óvulos maduros no espaço de dois anos. Que se fecunde e se bokanovskize — em outras palavras, que se multiplique esse número por setenta e dois, e se obterão onze mil irmãos e irmãs em cento e cinquenta grupos de gêmeos idênticos, todos quase da mesma idade, com uma diferença máxima de dois anos. — E, em casos excepcionais, podemos obter de um único ovário mais de quinze mil indivíduos adultos. Fazendo sinal a um jovem louro de tez rosada que por ali passava nesse momento, chamou: — Sr. Foster! — o jovem aproximou-se. — Poderia indicar-nos o número máximo obtido de um único ovário, sr. Foster? — Dezesseis mil e doze, neste Centro — respondeu o sr. Foster, sem hesitação. Falava muito depressa, tinha os olhos azuis e vivos, e sentia um prazer evidente em citar algarismos. — Dezesseis mil e doze; em cento e oitenta e nove grupos de idênticos. Mas, sem dúvida, já se conseguiu coisa muito melhor — continuou com desembaraço — em alguns centros tropicais. Cingapura tem produzido frequentemente mais de dezesseis mil e quinhentos; e Mombasa já atingiu a marca dos dezessete mil. Mas acontece que eles são injustamente privilegiados. É preciso ver como um ovário de negra reage ao extrato de pituitária! É de causar assombro, quando se está habituado a trabalhar com material europeu. Apesar disso — acrescentou, rindo (mas havia um brilho combativo em seus olhos, e o queixo erguido era um desafio) —, apesar disso, nós temos a intenção de ultrapassá-los, se houver possibilidade. Estou trabalhando neste momento com um ovário maravilhoso de Delta-Menos. Tem apenas dezoito meses. Mais de doze mil e setecentas crianças já, decantadas ou em embrião. E ele ainda vai longe. Um dia havemos de vencer! — É desse espírito que eu gosto! — exclamou o Diretor, com uma palmadinha no ombro do sr. Foster. — Venha conosco e transmita a estes rapazes o seu saber de especialista. O sr. Foster sorriu modestamente. — Com muito prazer. Eles o seguiram. Na Sala de Enfrascamento, tudo era agitação harmoniosa e atividade ordenada. Placas de peritônio de porca, todas cortadas nas dimensões exatas, chegavam continuamente, em pequenos elevadores, do Depósito de Órgãos no subsolo. Bzzz e depois clique! — as portas do elevador abriam-se amplamente. O Forrador de Bocais tinha só de estender a mão, pegar a placa, introduzi-la, acomodá-la e, antes que o bocal assim guarnecido tivesse tempo de se distanciar ao longo da esteira sem fim — bzzz, clique! —, outra placa de peritônio subia rapidamente das profundezas subterrâneas, pronta para ser introduzida em outro bocal, que seguia o anterior nessa lenta e interminável procissão sobre a esteira. Depois dos Forradores vinham os Matriculadores. A procissão avançava; um a um, os ovos eram transferidos dos seus tubos de ensaio para os recipientes maiores; com destreza, a guarnição de peritônio sofria uma incisão, a mórula era posta no seu lugar, a solução salina era transvasada… e já o bocal seguia adiante, passando então a vez aos Rotuladores. A hereditariedade, a data da fecundação, o Grupo Bokanovsky, todos os detalhes eram transferidos do tubo de ensaio para o bocal. Não mais anônima, mas com nome, identificada, a procissão recomeçava lentamente sua marcha; lentamente, através de uma abertura na parede, por onde passava à Sala de Predestinação Social. — Oitenta e oito metros cúbicos de fichas de papelão — disse o sr. Foster com manifesto prazer, quando entravam. — Contendo todas as informações necessárias — acrescentou o Diretor. — Postas em dia todas as manhãs. — E coordenadas todas as tardes. — Com base nas quais se fazem os cálculos. — Tantos indivíduos, de tal e tal qualidade — disse o sr. Foster. — Distribuídos em tais e tais quantidades. — O Índice de Decantação ideal a qualquer momento. — As perdas imprevistas prontamente compensadas. — Prontamente — repetiu o sr. Foster. — Se os senhores soubessem quantas horas extra tive de fazer depois do último terremoto no Japão! Riu, bem-humorado, e meneou a cabeça. — Os Predestinadores mandam seus números aos Fecundadores. — Que enviam a eles os embriões pedidos. — E os bocais chegam aqui para serem predestinados detalhadamente. — Depois disso, descem ao Depósito dos Embriões. — Para onde nós vamos agora. E, abrindo uma porta, o sr. Foster se pôs à frente deles, conduzindo-os ao subsolo por uma escada. A temperatura continuava tropical. Desceram a uma penumbra cada vez mais densa. Duas portas e um corredor com duas voltas protegiam o subsolo contra qualquer infiltração de luz diurna. — Os embriões são como filmes fotográficos — disse o sr. Foster jocosamente, empurrando a segunda porta. — Só suportam a luz vermelha. Com efeito, a penumbra quente e abafada, na qual os estudantes o seguiram então, era visível e rubra, como as pálpebras fechadas numa tarde de verão. Os flancos arredondados dos bocais que se alinhavam ao infinito, fileira após fileira, prateleira sobre prateleira, rebrilhavam como incontáveis rubis, e entre os rubis se moviam os espectros de homens e mulheres com olhos vermelhos, e com todos os sintomas de lupo. Um zumbido, um ruído de máquinas agitava levemente o ar. — Dê-lhes alguns números, sr. Foster — disse o Diretor, já cansado de falar. O sr. Foster sentia-se imensamente feliz de poder fazê-lo. — Duzentos e vinte metros de comprimento, duzentos de largura, dez de altura — apontou para cima. Como galinhas bebendo, os estudantes levantaram os olhos para o teto distante. Três andares de porta-bocais: ao nível do solo, primeira galeria, segunda galeria. O arcabouço metálico das galerias superpostas, delgado como teia de aranha, estendia-se em todas as direções até se perder na penumbra. Perto dele, três fantasmas vermelhos estavam ativamente ocupados em descarregar garrafões, que retiravam de uma escada móvel. Era a escada rolante que vinha da Sala de Predestinação Social. Cada bocal podia ser colocado em um dentre quinze porta-garrafas, e cada um destes, embora não se percebesse, era uma esteira que avançava à razão de trinta e três centímetros e um terço por hora. Duzentos e sessenta e sete dias, à razão de oito metros por dia. Dois mil, cento e trinta e seis metros ao todo. Uma volta ao nível do solo, mais uma na primeira galeria, a metade de outra na segunda, e na ducentésima sexagésima sétima manhã, a luz do dia na Sala de Decantação. Daí em diante, a existência independente — ou assim chamada. — Mas nesse ínterim — disse o sr. Foster em conclusão — conseguimos fazer muita coisa a eles, oh!, muita, muita coisa. Seu riso era sagaz e triunfante. — Esse é o espírito que me agrada — disse novamente o Diretor. — Façamos a volta. Dê-lhes todas as explicações, sr. Foster. O sr. Foster explicou tudo de forma precisa. Falou do embrião desenvolvendo-se no seu leito de peritônio. Fez com que eles provassem o rico pseudossangue de que ele se nutria. Explicou por que ele precisava ser estimulado com placentina e tiroxina. Falou do extrato de corpo amarelo. Mostrou as canaletas pelas quais, a cada doze metros entre zero e dois mil e quarenta, ele era injetado automaticamente. Falou das doses gradativamente maiores de extrato de pituitária, administradas durante os últimos noventa e seis metros do percurso. Descreveu a circulação materna artificial instalada em cada bocal no metro cento e doze; mostrou o reservatório de pseudossangue, a bomba centrífuga que mantinha o líquido em movimento acima da placenta e o impelia através do pulmão sintético e do filtro de resíduos. Referiu-se à perigosa tendência do embrião para a anemia; às doses maciças de extrato de estômago de porco e de fígado de feto de potrilho que, por isso, era preciso fornecer-lhe. Mostrou-lhes o mecanismo simples por meio do qual, durante os dois últimos metros de cada percurso de oito, eram sacudidos simultaneamente todos os embriões para se familiarizarem com o movimento. Aludiu à gravidade do chamado “trauma da decantação” e enumerou as precauções tomadas para reduzir ao mínimo, por um adestramento apropriado do embrião no bocal, esse choque perigoso. Falou-lhes das provas de sexo efetuadas nas proximidades do metro duzentos. Explicou o sistema de rotulagem — um T maiúsculo para os machos, um círculo para as fêmeas e, para aquelas destinadas a ficarem neutras, um ponto de interrogação preto sobre fundo branco. — Porque, veja bem — disse o sr. Foster —, na imensa maioria dos casos a fecundidade é simplesmente um incômodo. Um ovário fértil em mil e duzentos, eis o que seria plenamente suficiente para nossas necessidades. Mas nós queremos ter boa possibilidade de escolha. E, naturalmente, é preciso conservar sempre uma margem de segurança enorme. Por isso deixamos que se desenvolvam normalmente até trinta por cento de embriões femininos. Os outros recebem uma dose de hormônio sexual masculino a cada vinte e quatro metros, durante o resto do percurso. Resultado: são decantados como neutros, absolutamente normais sob o ponto de vista da estrutura (salvo — viu-se obrigado a reconhecer — o fato de terem, na verdade, uma ligeira tendência para o aparecimento de barba), mas estéreis. Garantidamente estéreis. O que nos leva finalmente — continuou o sr. Foster — a deixar o domínio da simples imitação servil da natureza para entrar no mundo muito mais interessante da invenção humana. Esfregou as mãos. Porque, veja bem, não se contentavam com simplesmente incubar os embriões: isso, qualquer vaca era capaz de fazer. — Nós também predestinamos e condicionamos. Decantamos nossos bebês sob a forma de seres vivos socializados, sob a forma de Alfas ou de Ípsilons, de futuros carregadores ou de futuros… — ia dizer “futuros Administradores Mundiais”, mas, corrigindo-se, completou: — futuros Diretores de Incubação. O D.I.C. recebeu a lisonja com um sorriso. Achavam-se no metro trezentos e vinte do porta-tubos número onze. Um jovem mecânico Beta-Menos estava trabalhando com chave de parafusos e chave inglesa na bomba de pseudossangue de um bocal que passava. O zumbido do motor elétrico tornava-se frações de tom mais grave à medida que ele apertava as porcas… Mais grave, mais grave… Uma torção final, um olhar ao contador de voltas, e pronto. Deu dois passos ao longo da fileira e recomeçou a operação na bomba seguinte. — Ele está diminuindo o número de giros por segundo — explicou o sr. Foster. — O pseudossangue circula mais devagar; por conseguinte, passa pelos pulmões a intervalos mais longos; portanto, fornece menos oxigênio ao embrião. Nada como a escassez de oxigênio para manter um embrião abaixo do normal. — De novo esfregou as mãos. — Mas por que precisamos manter o embrião abaixo do normal? — perguntou um estudante ingênuo. — Que asno! — disse o Diretor, rompendo um longo silêncio. — Não lhe ocorreu que, para um embrião de Ípsilon, é preciso um meio de Ípsilon, tanto quanto uma hereditariedade de Ípsilon? Evidentemente, não lhe havia ocorrido essa ideia. Ficou encabulado. — Quanto mais baixa é a casta — disse o sr. Foster —, menos oxigênio se dá. O primeiro órgão afetado era o cérebro. Em seguida, o esqueleto. Com setenta por cento de oxigênio normal, obtinham-se anões. Com menos de setenta por cento, monstros sem olhos. — Que não têm nenhuma utilidade — concluiu o sr. Foster. Ao passo que (sua voz tornou-se confidencial e ansiosa), se se pudesse descobrir uma técnica para reduzir o período de maturação, que vitória, que benefício para a Sociedade! — Considerem o cavalo — os jovens consideraram. — Maduro aos seis anos; o elefante, aos dez. Enquanto, aos treze anos, um homem ainda não está sexualmente amadurecido, e não é adulto antes dos vinte anos. Daí, naturalmente, esse fruto do desenvolvimento retardado: a inteligência humana. — Mas nos Ípsilons — disse com muita propriedade o sr. Foster — nós não precisamos de inteligência humana. Não precisavam dela e não a obtinham. Mas, ainda que nos Ípsilons o espírito estivesse maduro aos dez anos, eram necessários dezoito para que o corpo ficasse em condições para o trabalho. Que longos anos de imaturidade, supérfluos e desperdiçados! Se se pudesse acelerar o desenvolvimento físico até torná-lo tão rápido, digamos, como o de uma vaca, que enorme economia para a Comunidade! — Enorme! — murmuraram os estudantes. O entusiasmo do sr. Foster era contagioso. Suas explicações tornaram-se mais técnicas; falou da coordenação anormal das glândulas endócrinas, que fazia com que os homens crescessem tão lentamente; admitiu, como explicação, uma mutação germinal. Seria possível destruir os efeitos dessa mutação? Seria possível fazer regredir o embrião de Ípsilon, por meio de uma técnica apropriada, até a normalidade dos cães e das vacas? Tal era o problema. E estava perto de ser resolvido. Pilkington, em Mombasa, produzira indivíduos que eram sexualmente maduros aos quatro anos e de porte adulto aos seis anos e meio. Um triunfo científico. Mas socialmente inúteis. Homens e mulheres de seis anos e meio eram demasiado estúpidos, mesmo para realizar o trabalho de um Ípsilon. E o processo era do tipo tudo ou nada: ou não se conseguia nenhuma modificação, ou se modificava completamente. Ainda estavam tentando encontrar o meio-termo ideal entre adultos de vinte anos e adultos de seis anos. Até então sem êxito. O sr. Foster suspirou e balançou a cabeça. Suas peregrinações através da penumbra rubra os tinham levado às proximidades do metro cento e setenta do porta-tubos número nove. A partir desse ponto, o porta-tubos desaparecia em uma canaleta e os bocais percorriam o resto de seu trajeto numa espécie de túnel, interrompido aqui e ali por aberturas de dois ou três metros de largura. — Condicionamento ao calor — disse o sr. Foster. Túneis quentes alternavam-se com túneis resfriados. O resfriamento estava ligado ao desconforto sob a forma de raios X diretos. Quando chegavam a ponto de serem decantados, os embriões tinham horror ao frio. Ficavam predestinados a emigrarem para os trópicos, a serem mineiros, tecelões de seda de acetato e operários de fundição. Mais tarde, seu espírito seria formado de maneira a confirmar as predisposições do corpo. — Nós os condicionamos de tal modo que eles se dão bem com o calor — disse o sr. Foster em conclusão. — Nossos colegas lá em cima os ensinarão a amá-lo. — E esse — interveio sentenciosamente o Diretor — é o segredo da felicidade e da virtude: amarmos o que somos obrigados a fazer. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar. Num intervalo entre dois túneis, uma enfermeira ocupava-se em sondar delicadamente, por meio de uma longa e fina seringa, o conteúdo gelatinoso de um bocal que passava. Os estudantes e seu guia detiveram-se a observá-la por alguns instantes, em silêncio. — Então, Lenina — disse o sr. Foster, quando ela finalmente retirou a seringa e se endireitou. A moça voltou-se, sobressaltada. Podia-se ver que era excepcionalmente bonita, embora a luz lhe emprestasse uma máscara de lupo e olhos roxos. — Henry! — Seu sorriso evidenciou, num clarão vermelho, uma fileira de dentes de coral. — Encantadora, encantadora — murmurou o Diretor, e, dando-lhe dois ou três tapinhas, recebeu em troca um sorriso de deferência. — Que é que você está dando a eles aí? — perguntou o sr. Foster, imprimindo à sua voz um tom muito profissional. — Oh, a tifoide e a doença do sono habituais. — Os trabalhadores dos trópicos começam a receber inoculações no metro cento e cinquenta — explicou o sr. Foster aos estudantes. — Os embriões ainda têm guelras. Imunizamos o peixe contra as moléstias do futuro homem. — Depois, voltando-se para Lenina: — Às quinze para as cinco no terraço, esta tarde, como de costume. — Encantadora — disse o Diretor mais uma vez, e, com uma palmadinha final, afastou-se atrás dos outros. No porta-tubos número dez, filas de trabalhadores das indústrias químicas da geração seguinte estavam sendo exercitadas na tolerância ao chumbo, à soda cáustica, ao alcatrão, ao cloro. O primeiro de um grupo de duzentos e cinquenta embriões de mecânicos de aviões-foguetes passava justamente diante da marca do metro mil e cem no porta-tubos número três. Um mecanismo especial mantinha os recipientes em rotação constante. — Para melhorar seu sentido de equilíbrio — explicou o sr. Foster. — Efetuar reparos no exterior de um avião-foguete em pleno voo é um trabalho penoso. Nós retardamos a circulação quando eles estão em posição normal, de modo que fiquem parcialmente privados de alimento, e dobramos o afluxo de pseudossangue quando estão de cabeça para baixo. Aprendem, assim, a associar essa posição com o bem-estar. Na verdade, eles não se sentem verdadeiramente felizes senão quando estão de cabeça para baixo. E agora — continuou — eu gostaria de lhes mostrar um condicionamento muito interessante para intelectuais Alfa-Mais. Temos um grupo grande no porta-tubos número cinco. Ao nível da Primeira Galeria — gritou para dois rapazes que tinham começado a descer para o andar térreo. — Eles se acham mais ou menos na altura do metro novecentos — explicou. — Na realidade, não se pode efetuar nenhum condicionamento intelectual útil antes que os fetos tenham perdido a cauda. Sigam-me. Mas o Diretor havia consultado o relógio. — Dez para as três — disse. — Receio que não tenhamos tempo para dedicar aos embriões intelectuais. Precisamos subir aos berçários antes que as crianças tenham terminado a sesta. O sr. Foster ficou decepcionado. — Pelo menos uma olhadela na Sala de Decantação — suplicou. — Está bem, vamos — o Diretor sorriu com indulgência. — Apenas uma olhadela.


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