Com profundidade analítica e talento literário, Steven Pinker defende a razão, a ciência e o humanismo, os ideais de que precisamos para enfrentar os nossos problemas e dar continuidade ao nosso progresso. Em O novo Iluminismo, uma original avaliação da condição humana no terceiro milênio, o cientista cognitivo Steven Pinker nos incita a rechaçar manchetes alarmistas e profecias apocalípticas, que vicejam nos dias atuais e influenciam nossa visão de mundo. Com 75 gráficos impressionantes, ele demostra que a vida, a saúde, a prosperidade, a segurança, a paz, o conhecimento e a felicidade estão em ascensão, não apenas no Ocidente, mas em todo o mundo. Para Pinker, esse progresso é uma herança...
Editora: Companhia das Letras; 1ª edição (6 setembro 2018) Páginas: 664 páginas ISBN-13: 664 páginas ASIN: 8535931449
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Steven Pinker é professor de psicologia na Universidade de Harvard. Finalista do Pulitzer por duas vezes e vencedor de muitos prêmios por sua pesquisa, ensino e publicações, o autor também é membro da National Academy of Sciences. Seus livros incluem Tábula rasa, Do que é feito o pensamento, Os anjos bons da nossa natureza, Guia de escrita e O novo Iluminismo.
Leia trecho do livro
Os que são governados pela razão não desejam para si nada que também não desejem para o resto da humanidade.
Baruch Espinosa
Tudo o que não é proibido pelas leis da natureza é alcançável, dado o conhecimento certo.
David Deutsch
PARTE I
ILUMINISMO
O discernimento do século XVIII, seu entendimento dos fatos óbvios do sofrimento humano e das demandas óbvias da natureza humana, atuaram como um banho de limpeza moral no mundo.
Alfred North Whitehead
Nas várias décadas em que lecionei sobre linguagem, mente e natureza humana, já me fizeram algumas perguntas bem estranhas. Qual é a melhor língua? Mariscos e ostras têm consciência? Quando poderei transferir minha mente para a internet? A obesidade é uma forma de violência?
A pergunta mais instigante que já tive de responder, porém, veio no final de uma palestra na qual discorri sobre a ideia tão comum entre os cientistas de que a vida mental consiste em padrões de atividade nos tecidos do cérebro. Uma estudante na plateia levantou a mão e perguntou:
“Por que eu devo viver?”
A candura daquela estudante deixou claro que ela não era suicida nem estava sendo sarcástica; tinha uma curiosidade genuína sobre como encontrar sentido e propósito considerando que a nossa melhor ciência solapa as crenças religiosas tradicionais em uma alma imortal. Minha premissa é sempre de que não existe pergunta idiota e, para surpresa da estudante, da plateia e sobretudo minha, consegui formular uma resposta razoavelmente digna de crédito. O que me recordo de ter dito — embelezado, claro, pelas distorções da memória e pelo esprit de l’escalier* — foi mais ou menos o seguinte:
* A tendência de só nos lembrarmos de dar uma resposta espirituosa depois que já não estamos mais na conversa. (N. T.)
No próprio ato de fazer essa pergunta você está buscando razões para suas convicções, portanto está comprometida com a razão como o meio para descobrir e justificar o que é importante para você. E há tantas razões para viver!
Como um ser senciente, você tem o potencial para se desenvolver. Pode refinar sua faculdade de raciocínio aprendendo e debatendo. Pode procurar explicações sobre o mundo natural na ciência e revelações sobre a natureza humana nas artes e humanidades. Pode explorar ao máximo a sua capacidade de prazer e satisfação, sendo isso o que permitiu aos seus ancestrais prosperar e, assim, possibilitar que você viesse a existir. Pode apreciar a beleza e a riqueza do mundo natural e cultural. Como herdeira de bilhões de anos em que a vida se perpetuou, você pode, por sua vez, perpetuar a vida. Você foi dotada do sentimento de solidariedade — definido aqui como a capacidade de gostar, amar, respeitar, ajudar e demonstrar bondade — e pode desfrutar o dom da benevolência mútua com amigos, parentes e colegas.
E, como a razão lhe diz que nada disso é exclusividade sua, você tem a responsabilidade de dar a outros o que espera para si. Você pode proporcionar bem-estar a outros seres sencientes aprimorando a vida, a saúde, o conhecimento, a liberdade, a abundância, a segurança, a beleza e a paz. A história mostra que, quando nos solidarizamos uns com os outros e aplicamos a nossa engenhosidade para melhorar a condição humana, o progresso torna-se possível, e você pode contribuir para a continuidade desse progresso.
Explicar o sentido da vida não costuma fazer parte das atribuições de um professor de ciência cognitiva, e não me atreveria a tentar responder a pergunta daquela estudante se a resposta dependesse dos meus conhecimentos técnicos herméticos ou da minha duvidosa sabedoria pessoal. Mas eu sabia que estava canalizando um conjunto de crenças e valores que haviam tomado forma mais de dois séculos antes e que agora são mais relevantes do que nunca: os ideais do Iluminismo. O princípio iluminista de que podemos aplicar a razão e a solidariedade para aprimorar o desenvolvimento humano pode parecer óbvio, banal, antiquado. Escrevi este livro porque me dei conta de que não é o caso. Mais do que nunca, os ideais da razão, da ciência, do humanismo e do progresso necessitam de uma defesa entusiasmada. Não damos o devido valor às suas benesses: recém-nascidos que viverão por mais de oito décadas, mercados abarrotados de alimentos, água limpa que surge com um movimento dos dedos, dejetos que desaparecem com outro, comprimidos que debelam uma infecção dolorosa, filhos que não são mandados para a guerra, filhas que podem andar na rua em segurança, críticos de poderosos que não são presos ou fuzilados, o conhecimento e a cultura mundiais disponíveis no bolso da camisa. Mas tudo isso são realizações humanas, e não direitos cósmicos inatos. Na memória de muitos leitores deste livro — e na experiência de pessoas em partes menos afortunadas do planeta —, guerra, carestia, doença, ignorância e ameaça letal são uma parte natural da existência. Sabemos que países podem regredir a essas condições primitivas, portanto é um perigo não darmos o devido valor às realizações do Iluminismo.
Ao longo dos anos, depois de ter respondido à pergunta daquela jovem, sou lembrado frequentemente da necessidade de reafirmar os ideais do Iluminismo (também chamado de humanismo, sociedade aberta, liberalismo cosmopolita ou clássico). Não apenas porque perguntas como a dela aparecem de tempos em tempos na minha caixa de mensagens. (“Caro professor Pinker, que conselho daria a alguém que leva a sério as ideias expostas em seus livros e pela ciência e vê a si mesmo como um conjunto de átomos? Uma máquina com escopo limitado de inteligência, originada por genes egoístas, habitante do espaço-tempo?”) É também porque o esquecimento da dimensão do progresso humano pode levar a sintomas piores do que a angústia existencial. Pode levar ao ceticismo com relação às instituições inspiradas no Iluminismo que asseguram esse progresso — por exemplo, a democracia liberal e as organizações de cooperação internacional — e direcionar as pessoas para alternativas atávicas.
Os ideais do Iluminismo são produtos da razão humana, mas vivem em conflito com outras facetas da nossa natureza: lealdade à tribo, acato à autoridade, pensamento mágico, atribuição de infortúnio a elementos malfazejos. A segunda década do século xxi testemunhou a ascensão de movimentos políticos segundo os quais seus países estão sendo empurrados para uma distopia infernal por facções malignas que só podem ser combatidas por um líder forte, capaz de forçar um retrocesso do país a fim de torná-lo “grande novamente”. Esses movimentos foram favorecidos por uma narrativa compartilhada por muitos de seus mais ferrenhos oponentes: a de que as instituições da modernidade fracassaram e todos os aspectos da vida estão em crise acelerada — os dois lados na macabra concordância de que destruir essas instituições farão do mundo um lugar melhor. Já mais difícil de encontrar é uma perspectiva positiva que veja os problemas do mundo contra um pano de fundo de progresso e procure usá-la como trampolim para resolvê-los.
Se você ainda não está convencido de que os ideais do humanismo iluminista precisam de uma vigorosa defesa, considere o diagnóstico de Shiraz Maher, um analista dos movimentos islamitas radicais: “O Ocidente se envergonha de seus valores, não assume a defesa do liberalismo clássico. Não temos segurança a seu respeito. Eles nos constrangem”. Compare isso com o Estado Islâmico, que “sabe exatamente o que defende”, e essa segurança é “incrivelmente sedutora” — e Maher deve saber disso muito bem, pois já foi diretor regional do grupo jihadista Hizb ut-Tahrir.¹
Ao refletir sobre os ideais liberais em 1960, não muito tempo depois de passarem pelo seu maior teste, o economista Friedrich Hayek observou: “Para que verdades antigas conservem seu lugar nas mentes dos homens, elas precisam ser reafirmadas na linguagem e nos conceitos das sucessivas gerações” (sem perceber, ele provou seu argumento com a expressão “mentes dos homens”). “O que, em dada época, foram suas expressões mais eloquentes torna-se pouco a pouco tão desgastado pelo uso que deixa de possuir um significado claro. As ideias básicas podem ser tão válidas quanto sempre foram, mas as palavras, mesmo quando se referem a problemas que continuam conosco, já não transmitem a mesma convicção.”²
Este livro é minha tentativa de reafirmar os ideais do Iluminismo de acordo com a linguagem e os conceitos do século xxi. Primeiro, armarei uma estrutura para compreendermos a condição humana alicerçada na ciência moderna: quem somos, de onde viemos, quais são nossos desafios e como podemos enfrentá-los. A maior parte do livro é dedicada a defender esses ideais de um modo característico do século xxi: com dados. Essa análise do projeto iluminista baseada em evidências revela que não se trata de uma esperança ingênua. O Iluminismo deu certo — talvez seja a maior história (quase nunca contada) de todos os tempos. E, como o seu triunfo é tão pouco alardeado, os ideais fundamentais da razão, da ciência e do humanismo também são pouco valorizados. Longe de ser um consenso insípido, esses ideais são tratados com indiferença, com ceticismo e às vezes com desprezo por intelectuais do nosso tempo. Procurarei mostrar que, na verdade, quando avaliados adequadamente, os ideais do Iluminismo são empolgantes, inspiradores, nobres — uma razão para viver.
I. Ouse entender!
O que é iluminismo? Em um ensaio com esse título escrito em 1784, Immanuel Kant respondeu que é “a saída do ser humano da menoridade de que ele próprio é culpado”, de sua submissão “preguiçosa e covarde” aos “dogmas e fórmulas” da autoridade religiosa ou política.¹ Seu lema, ele proclamou, é “ouse entender!”, e sua exigência fundamental é a liberdade de pensamento e expressão. “Uma época não pode firmar um pacto que impeça épocas posteriores de ampliar sua visão, aprimorar seu conhecimento e reabilitar-se de seus erros. Isso seria um crime contra a natureza humana, cujo destino apropriado reside precisamente nesse progresso.”²
Uma afirmação dessa mesma ideia no século XXI pode ser vista na defesa do iluminismo pelo físico David Deutsch em seu livro The Beginning of Infinity. Deutsch afirma que, se ousarmos entender, o progresso será possível em todas as esferas: a científica, a política e a moral:
O otimismo (no sentido que defendi) é a teoria de que todas as falhas — todos os males — decorrem da insuficiência de conhecimento. […] Problemas são inevitáveis, pois nosso conhecimento sempre estará infinitamente longe de ser completo. Alguns problemas são difíceis, mas é um erro confundir problemas difíceis com problemas sem probabilidade de solução. Problemas são solucionáveis, e cada mal específico é um problema que pode ser resolvido. Uma civilização otimista é receptiva à inovação em vez de temerosa, e se baseia em tradições que incluem críticas. Suas instituições aperfeiçoam-se continuamente, e o conhecimento mais importante que incorporam é o conhecimento de como detectar e eliminar erros.³
O que é o Iluminismo? Não existe uma resposta oficial, pois a época mencionada no ensaio de Kant nunca foi demarcada por cerimônias de abertura e encerramento, como os Jogos Olímpicos, e tampouco possuiu princípios estipulados em um juramento ou credo. Convencionalmente, situamos o Iluminismo nos dois últimos terços do século XVIII, embora tenha brotado da Revolução Científica e da Idade da Razão no século XVII e extravasado para o apogeu do liberalismo clássico na primeira metade do século XIX. Os pensadores do Iluminismo, provocados por contestações da ciência e da exploração à sabedoria convencional, informados sobre o banho de sangue das guerras religiosas recentes e apoiados na facilidade de movimentação de ideias e pessoas, buscaram uma nova compreensão da condição humana. Foi uma era exuberante em ideias, algumas contraditórias, mas todas ligadas por quatro temas: razão, ciência, humanismo e progresso.
O tema primordial é a razão. A razão é inegociável. Se você começar a discutir por que devemos viver (ou qualquer outra questão), se exigir que suas respostas, independentemente de quais forem elas, sejam sensatas ou justificadas ou verdadeiras e, portanto, que outras pessoas tenham de acreditar nelas também, estará comprometido com a razão e com a avaliação das suas crenças segundo critérios objetivos. Se existiu algo que os pensadores do Iluminismo tiveram em comum foi a exigência de que se aplicasse vigorosamente o critério da razão para entender o mundo, em vez de recorrer a geradores de ilusão como a fé, o dogma, a revelação, a autoridade, o carisma, o misticismo, o profetismo, as visões, as intuições ou a análise interpretativa de textos sagrados.
Foi a razão que levou a maioria dos pensadores iluministas a repudiar a crença em um Deus antropomórfico e atento aos assuntos humanos. A aplicação da razão revelou que os relatos de milagres eram duvidosos, que os autores de livros sagrados tinham lá as suas falhas demasiado humanas, que os eventos naturais aconteciam sem levar em conta o bem-estar das pessoas e que diferentes culturas acreditavam em deidades mutuamente incompatíveis, nenhuma das quais com probabilidade menor de ser obra da imaginação. (Como escreveu Montesquieu, “se os triângulos tivessem um deus, atribuiriam a ele três lados”.) Entretanto, nem todos os pensadores iluministas eram ateus. Alguns eram deístas (em contraste com os teístas): para eles, Deus pôs o universo em movimento e então deixou de interferir, permitindo que se desenvolvesse de acordo com as leis da natureza. Outros eram panteístas que usavam “Deus” como sinônimo de leis da natureza. Mas poucos apelavam para o Deus legislador e milagroso das Escrituras.
Muitos autores atuais confundem a defesa iluminista da razão com a afirmação implausível de que os seres humanos são agentes perfeitamente racionais. Nada poderia estar mais distante da realidade histórica. Pensadores como Kant, Baruch Espinosa, Thomas Hobbes, David Hume e Adam Smith foram psicólogos inquisitivos e mais do que conscientes das nossas paixões e fraquezas irracionais. Asseveravam que só expondo as fontes comuns de insensatez poderíamos ter esperança de superá-las. A aplicação deliberada da razão era necessária justamente porque nossos hábitos comuns de pensamento não eram muito razoáveis.
Isso leva ao segundo ideal, a ciência, o refinamento da razão com o objetivo de entender o mundo. A Revolução Científica foi revolucionária de um modo que é difícil avaliar hoje, pois suas descobertas agora nos parecem nada mais do que naturais. O historiador David Wootton lembra-nos do que um inglês instruído sabia em 1600, às vésperas da Revolução Industrial:
Ele acredita que bruxas podem invocar tempestades para afundar navios no mar. […] Acredita em lobisomens, ainda que por acaso essas criaturas não existam na Inglaterra — sabe que existem na Bélgica. […] Acredita que Circe de fato transformou em porcos a tripulação de Odisseu. Acredita que camundongos surgem por geração espontânea em montes de palha. Acredita em magos contemporâneos. […] Ele já viu um chifre de unicórnio, mas não um unicórnio.
Ele acredita que o corpo de uma pessoa assassinada sangrará na presença do assassino. Acredita na existência de um unguento que, se for aplicado na adaga que causou um ferimento, curará o ferimento. Acredita que a forma, a cor e a textura de uma planta podem dar uma pista de suas propriedades medicinais, pois Deus projetou a natureza para que fosse interpretada pelos homens. Acredita ser possível transformar metal sem valor em ouro, embora duvide que alguém saiba como fazê-lo. Acredita que a natureza abomina o vácuo. Acredita que o arco-íris é um sinal de Deus e que cometas pressagiam males. Acredita que sonhos predizem o futuro se soubermos como interpretá-los. Acredita, obviamente, que a Terra é imóvel e que o Sol e as estrelas fazem um giro em torno dela a cada 24 horas.
Um século e um terço mais tarde, um descendente instruído desse inglês não acreditaria em nada disso. Foi uma libertação não só da ignorância, mas também do terror. O sociólogo Robert Scott observa que na Idade Média “a crença de que uma força externa controlava o cotidiano contribuía para uma espécie de paranoia coletiva”:
Tempestades, trovões, relâmpagos, vendavais, eclipses do Sol ou da Lua, frentes frias, ondas de calor, secas e terremotos eram considerados símbolos e sinais da desaprovação divina. Como resultado, “os bichos-papões” do medo habitavam todas as esferas da vida. O mar tornava-se um reino satânico, e as florestas eram povoadas de feras predadoras, ogros, bruxas, demônios e os muito reais ladrões e assassinos. […] Quando escurecia, o mundo se enchia de presságios dos mais diversos perigos: cometas, meteoros, estrelas cadentes, eclipses lunares, uivos de animais selvagens.
Para os pensadores iluministas, a libertação da ignorância e da superstição mostrou o quanto a nossa sabedoria convencional pode ser equivocada e como os métodos da ciência — ceticismo, falibilismo, debate aberto e verificação empírica — são um paradigma de como alcançar o conhecimento confiável.
Esse conhecimento inclui compreender a nós mesmos. A necessidade de uma “ciência do homem” foi um tema que uniu pensadores iluministas que discordavam sobre muitas outras coisas; entre eles estavam Montesquieu, Hume, Smith, Kant, Nicolas de Condorcet, Denis Diderot, Jean-Baptiste d’Alembert, Jean-Jacques Rousseau e Giambattista Vico. Sua crença na existência de uma natureza humana universal possível de ser estudada cientificamente fez deles praticantes precoces de ciências que só viriam a ser nomeadas séculos mais tarde.9 Eles foram neurocientistas cognitivos que tentaram explicar o pensamento, a emoção e a psicopatologia com base em mecanismos físicos do cérebro. Foram psicólogos evolucionários que procuraram caracterizar a vida em estado de natureza e identificar os instintos animais “infundidos em nosso peito”. Foram psicólogos sociais que escreveram sobre os sentimentos morais que nos atraem mutuamente, as paixões egoístas que nos dividem e as imperfeições da cegueira que atrapalham os nossos melhores planos. E foram antropólogos culturais que vasculharam relatos de viajantes e exploradores em busca de dados sobre elementos humanos universais e sobre a diversidade de costumes e práticas entre as culturas do mundo.
A ideia de uma natureza humana universal leva-nos a um terceiro tema, o humanismo. Os pensadores da Idade da Razão e do Iluminismo perceberam a necessidade urgente de um alicerce secular para a moralidade, pois viviam perseguidos pela memória histórica de séculos de carnificina religiosa: as Cruzadas, a Inquisição, as caças às bruxas, as guerras religiosas europeias. Esse alicerce foi assentado sobre o que hoje chamamos de humanismo, que privilegia o bem-estar dos homens, mulheres e crianças individualmente, acima da glória da tribo, raça, nação ou religião. Os indivíduos, e não os grupos, é que são sencientes — que sentem prazer e dor, satisfação e angústia. O que mobilizava a nossa preocupação moral, diziam os iluministas, era a capacidade universal de uma pessoa para sofrer e se desenvolver, fosse isso entendido como o objetivo de proporcionar a maior felicidade para o maior número, fosse como um imperativo categórico de tratar as pessoas como fins em vez de meios.
Felizmente, a natureza humana nos prepara para atender a esse chamado de mobilização. Isso acontece porque somos dotados do sentimento de solidariedade, que eles também chamavam de benevolência, piedade e compaixão. Como somos dotados da capacidade de nos solidarizarmos uns com outros, nada pode impedir que o círculo de solidariedade se expanda da família e da tribo para englobar toda a humanidade, sobretudo porque a razão nos incita a perceber que não pode existir nada do qual apenas nós mesmos ou qualquer um dos círculos a que pertencemos sejamos merecedores. Somos forçados ao cosmopolitismo, a aceitar que somos cidadãos do mundo.
Uma sensibilidade humanística impeliu os pensadores iluministas a condenar não só a violência religiosa, mas também as crueldades seculares de sua época, entre elas a escravidão, o despotismo, as execuções por ofensas triviais, como pequenos furtos e caça ilegal, e as punições sádicas, como açoitamento, amputação, empalação, estripação, o despedaçamento na roda, a incineração na fogueira. O Iluminismo às vezes é chamado de Revolução Humanitária por ter levado à abolição de práticas bárbaras que por milênios haviam sido comuns em várias civilizações.
Se a abolição da escravidão e de castigos cruéis não for progresso, nada será, o que nos leva ao quarto ideal do Iluminismo. Com nossa compreensão do mundo desenvolvida pela ciência e nosso círculo de solidariedade expandido pela razão e pelo cosmopolitismo, a humanidade pôde progredir nas esferas intelectual e moral. Não precisa resignar-se aos sofrimentos e irracionalidades do presente, nem tentar fazer o relógio voltar a uma era dourada perdida.
Não devemos confundir a crença iluminista no progresso com a romântica crença oitocentista em forças, leis, dialéticas, lutas, desdobramentos, destinos, idades do homem e poderes evolucionários místicos que impeliriam a humanidade sempre para cima, em direção à utopia. Como indica o comentário de Kant sobre “aprimorar o conhecimento e reabilitar-se dos erros”, a crença iluminista era mais prosaica, uma combinação de razão e humanismo. Se nos mantivermos informados sobre como andam as nossas leis e maneiras, descobrirmos modos de melhorá-las, experimentarmos esses modos e conservarmos aqueles que aumentem o bem-estar das pessoas, poderemos gradualmente tornar o mundo um lugar melhor. A própria ciência evolui passo a passo nesse ciclo de teoria e experimentação, e seu avanço incessante, sobreposto a reveses e retrocessos localizados, nos mostra como o progresso é possível.
O ideal do progresso também não deve ser confundido com o movimento do século XX que visava à reengenharia da sociedade segundo conveniências de tecnocratas e planejadores, tendência essa que James Scott chama de alto modernismo autoritário. Esse movimento negava a existência da natureza humana, com suas tumultuantes necessidades de beleza, natureza, tradição e intimidade social. Os modernistas partiam do pressuposto de uma “toalha de mesa limpa” e criavam projetos de renovação urbana que substituíam bairros vibrantes por vias expressas, arranha-céus, enormes praças varridas pelo vento e arquitetura brutalista. “A humanidade renascerá e viverá em uma relação ordenada com o todo”, eles supunham. Embora essas tendências às vezes fossem associadas à palavra “progresso”, o uso do termo era irônico: “progresso” não guiado pelo humanismo não é progresso.
Em vez de tentar moldar a natureza humana, a esperança de progresso do Iluminismo concentrava-se em instituições humanas. Sistemas criados pelo homem, como governos, leis, escolas, mercados e organismos internacionais, são um alvo natural para a aplicação da razão em prol do melhoramento da nossa espécie.
Nesse modo de pensar, o governo não é uma autorização divina para reinar, um sinônimo de “sociedade” ou um avatar da alma nacional, religiosa ou racial. É uma invenção humana, aceita tacitamente em um contrato social, criada para ampliar o bem-estar dos cidadãos, coordenando seu comportamento e dissuadindo as pessoas de certos atos egoístas que podem ser tentadores em termos individuais, mas pioram a situação de todos. Como determina o mais famoso produto do Iluminismo, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, os governos são instituídos pelo povo para assegurar o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade, e derivam seus poderes do consentimento dos governados.
Entre os poderes do governo está a aplicação de punições, e autores como Montesquieu, Cesare Beccaria e os fundadores americanos repensaram a licença do governo para causar dano aos seus cidadãos. Argumentaram que a punição ao crime não é um mandato para implementar a justiça cósmica, e sim parte de uma estrutura de incentivo que dissuade de atos antissociais sem causar um sofrimento maior do que aquele que desencoraja. A razão pela qual o castigo deve ser adequado ao crime não é, por exemplo, equilibrar alguma balança mística da justiça, e sim assegurar que um transgressor se detenha diante de uma infração menor em vez de passar para outra mais danosa. Punições cruéis, sejam ou não “merecidas” em certo sentido, não são mais eficazes para evitar danos do que punições moderadas porém mais garantidas; elas dessensibilizam os espectadores e brutalizam a sociedade que as implementa.
O Iluminismo também trouxe a primeira análise racional da prosperidade. Seu ponto de partida não foi a maneira como a riqueza é distribuída, e sim a questão primordial de como a riqueza surge. Baseado em influências francesas, holandesas e escocesas, Smith observou que é impossível criar produtos em abundância com um agricultor ou artesão trabalhando sozinho. Isso depende de uma rede de especialistas, que aprenderam, cada qual, a produzir a sua mercadoria com a maior eficiência possível, e que combinam e trocam os frutos de seu engenho, sua habilidade e seu trabalho. Em um exemplo famoso, Smith calculou que um fabricante de alfinetes, labutando só, poderia produzir no máximo uma peça por dia, ao passo que em uma oficina onde “um homem puxa o fio, outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto o afia, um quinto o aplaina na ponta para receber a cabeça”, eles produziriam quase 5 mil unidades.
A especialização só funciona em um mercado que permite aos especialistas trocar seus bens e serviços, e Smith explicou que a atividade econômica era uma forma de cooperação mutuamente benéfica (um jogo de soma positiva, no jargão atual): cada um recebe em troca algo que é mais valioso para si do que aquilo que cedeu. Por meio dessa permuta voluntária, as pessoas beneficiam outras beneficiando a si mesmas; como ele escreveu, “não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, e sim da consideração de cada qual pelo seu próprio interesse. Em vez de apelarmos à sua humanidade, dirigimo-nos ao seu autointeresse”. Smith não quis dizer que as pessoas são de um egoísmo implacável, nem que deveriam ser; ele foi um dos mais perspicazes analistas da solidariedade humana em toda a história. Apenas afirmou que, em um mercado, a tendência de um indivíduo a cuidar de sua família e de si mesmo pode atuar em benefício de todos.
A troca pode tornar toda uma sociedade não apenas mais rica, como também mais cordial, pois em um mercado eficaz é mais barato comprar do que roubar as coisas, e as outras pessoas lhe têm mais serventia vivas do que mortas. (Como sugeriria séculos mais tarde o economista Ludwig von Mises: “Se o alfaiate entrar em guerra com o padeiro, dali por diante terá de fazer seu próprio pão”.) Muitos pensadores iluministas, incluindo Montesquieu, Kant, Voltaire, Diderot e o abade de Saint-Pierre, defenderam o ideal do doux commerce, o comércio gentil. Os fundadores dos Estados Unidos — George Washington, James Madison e especialmente Alexander Hamilton — projetaram as instituições da jovem nação de modo a favorecer esse modelo.
Isso nos leva a outro ideal do Iluminismo, a paz. A guerra era tão comum na história que era natural vê-la como parte permanente da condição humana e pensar que a paz só poderia vir em uma era messiânica. Hoje, porém, não se interpreta a guerra como uma punição divina a ser suportada e deplorada, nem como uma competição gloriosa a ser vencida e celebrada, e sim como um problema prático a ser mitigado e, um dia, resolvido. Em À paz perpétua, Kant enumerou medidas para desencorajar os líderes a arrastar seus países para a guerra.20 Além do comércio internacional, ele recomendou a república representativa (que nós chamaríamos de democracia), a transparência mútua, normas contrárias a conquistas e interferências internas, liberdade para viajar e imigrar, e uma federação de Estados que decida judicialmente as eventuais disputas entre si.
Apesar de toda a presciência de fundadores nacionais, legisladores e philosophes, este não é um livro sobre iluminismolatria. Os pensadores iluministas foram homens e mulheres de sua época, o século XVIII. Alguns eram racistas, machistas, antissemitas, escravistas ou duelistas. Algumas das questões que os preocupavam são quase incompreensíveis para nós, e eles tiveram muitas ideias tolas junto com as brilhantes. Mais a propósito, eles nasceram muito cedo para apreciar algumas bases na nossa compreensão moderna da realidade.
Eles, aliás, teriam sido os primeiros a admitir isso. Se você enaltece a razão, então o que importa é a integridade dos pensamentos, e não a personalidade dos pensadores. E se você está comprometido com o progresso, não poderá dizer que já pensou em tudo. Não é nenhum demérito para os pensadores iluministas identificarmos algumas ideias cruciais a respeito da condição humana e da natureza do progresso que nós conhecemos e eles não. Essas ideias, proponho, são: entropia, evolução e informação.