Livro ‘História da Bruxaria’ por Jeffrey B. Russell

Baixar PDF 'História da Bruxaria' por Jeffrey B. Russell

Da feitiçaria antiga aos recentes movimentos neopagãos, a história da bruxaria está nas entrelinhas da própria História. As bruxas são um estereótipo duradouro e mutável na mentalidade coletiva. Sua tradição, repleta de perseguições e reviravoltas, tem uma trajetória silenciosa, mas não por isso menos verdadeira e devastadora. História da bruxaria é o mais abrangente estudo sobre o tema, e o discute de forma lúcida e estimulante, sob diferentes perspectivas. Os autores examinam a gênese, o auge e o declínio da caça às bruxas e revelam como a bruxaria sobreviveu, ressurgiu, se reciclou e atua na sociedade contemporânea.

Páginas: 280 páginas Editora: Goya; Edição: 2 (15 de abril de 2019); ISBN-10: 857657442X; ISBN-13: 978-8576574422

Clique na imagem para ler o livro

Sobre o autor: Jeffrey Burton Russell é Professor de História, Emérito, da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. Além da UCSB, lecionou História e Estudos Religiosos em Berkeley, Riverside, Harvard, Novo México e Notre Dame. Ele publicou dezessete livros e muitos artigos, a maioria deles em seu campo especial, história da teologia. Ele é mais conhecido por sua história de cinco volumes do conceito do Diabo, publicada pela Cornell University Press entre 1977 e 1988. Ele prefere ser mais conhecido por dois livros mais recentes, Inventing the Flat Earth (1991), que mostra como os anticristãos do século XIX inventaram e espalharam a falsidade de que as pessoas educadas na Idade Média acreditavam que a Terra era plana, e A History of Heaven: The Singing Silence, Princeton University Press (1997), um estudo da história e significado do céu no pensamento cristão desde os primórdios até o tempo de Dante.

Leia trecho do livro

PREFÁCIO

Na Galícia espanhola costuma-se dizer uma frase popular: yo no creo en meigas, pero hayas: “eu não creio em bruxas, mas elas existem!” Quer se acredite ou não nos poderes da bruxaria, tem que se acreditar na existência de bruxas. Conheço muitas pessoalmente. Este livro é uma edição revista de A history ofwitchcraft*, publicado pela Thames & Hudson em 1980. Inclui um novo prefácio, uma nova introdução, dois capítulos completamente novos (escritos por meu colaborador, Brooks Alexander) que atualizam a história da bruxaria moderna; uma conclusão revisada (o Capítulo 11) e uma bibliografia completamente atualizada. Em muitos sentidos, é um novo livro.

Gostaria de agradecer a todos os que trabalharam comigo no livro original, especialmente minha falecida esposa, Diana M. Russell. Ofereço com alegria um agradecimento especial a nosso editor, Jamie Camplin, cujo contínuo interesse no livro originou a nova edição. Agradeço, também, a minha esposa, Pamela C. Russell, que trabalhou comigo na área da bruxaria histórica durante muitos anos e, naturalmente, a Brooks Alexander, cujo conhecimento da bruxaria moderna tornou possível este novo livro.

JEFFREY B. RUSSELL

Como a própria bruxaria moderna, esta apresentação é uma colagem das contribuições de muitas pessoas – entre as quais a dos próprios bruxos não é a menos importante. Eu conheci, entrevistei e conversei com um grande número de bruxos ao longo dos anos e seus generosos conselhos, insights e explicações pacientes foram indispensáveis para a criação deste manuscrito. Tenho uma dívida toda especial para com Don Frew, um alto sacerdote wiccano, cuja acessibilidade incansável facilitou muito minha pesquisa. Também devo gratidão aos bruxos de mentalidade ecumênica do COG (Covenant of the Goddess), que consistentemente lutaram (algumas vezes contra a resistência de membros de sua própria comunidade), a fim de tornar sua religião mais amplamente conhecida e compreendida pelo público em geral; dentre estes, envio meus agradecimentos especiais a Anna Korn, Alison Harlow, Jennifer Gibbons, Gus DiZerega e Diana Paxson – bruxos cuja colaboração e amizade pessoal me abriram amplos caminhos de pesquisa e compreensão que, de outro modo, teriam permanecido desconhecidos para mim.

Minha esposa, Victoria, e minhas filhas, Leslie e Anastasia, foram uma profunda fonte de apoio e encorajamento durante este projeto, dando-me forças quando encontrei dificuldades e sendo uma defesa contra o desespero. Finalmente, quero agradecer ao homem de ampla visão e profundidade de conhecimento, o criador inicial deste notável trabalho, Jeffrey Russell, que nos deixou um legado definitivo sobre o assunto. Sinto-me honrado, por isso, em participar desta edição revista de seu livro.

BROOKS ALEXANDER

*Publicado no Brasil com o título História da feitiçaria (Campus, 1993). [N. do E.]

Introdução

O QUE É UMA BRUXA?

Se você perguntar a seus conhecidos o que é uma bruxa, provavelmente eles lhe dirão que bruxas não existem. Bruxas, afirmarão eles, são personagens imaginários, representados como velhas horrorosas, com verrugas no nariz, chapéus compridos e pretos em formato de cone, montadas em cabos de vassoura, que criam gatos pretos e dão gargalhadas malignas, bastante parecidas com cacarejos. A Rainha Má de A Branca de Neve de Walt Disney, o desempenho de Margaret Hamilton como a Bruxa Malvada do Oeste em O Mágico de Oz e, por trás delas, uma longa tradição artística que se estende do século XIII a Goya, fixaram essa imagem em nossas mentes. Provavelmente, nenhuma bruxa, em tempo algum, jamais teve as características desse estereótipo.

Todavia, bruxas existem realmente. De fato, a bruxaria é considerada como uma religião de pleno direito por numerosas instituições, inclusive as forças armadas e o sistema legal dos Estados Unidos. Dentre as bruxas que conhecemos, nenhuma correspondeu jamais a esse estereótipo, exceto talvez em festas à fantasia.

Outros podem dizer que “bruxa” é uma pessoa que tem poderes psíquicos. É verdade que muitas bruxas afirmam ter poderes psíquicos, mas isso não prova se de fato elas os possuem ou não, nem se a simples posse de tais poderes transformaria uma pessoa em bruxa. Existem muitos outros elementos para se caracterizar uma bruxa. Algumas pessoas podem imaginar vagamente que bruxas praticam alguma coisa parecida com vodu. Isso é sinal de que tais pessoas interpretam mal tanto a bruxaria como o vodu. O vodu é uma religião que combina o cristianismo com o paganismo africano, e seus rituais são praticados como um meio de proteção contra a bruxaria.

Há respostas mais acuradas e úteis para a pergunta que se coloca no título desta introdução: (1) bruxa é o mesmo que feiticeira: esta é a abordagem antropológica; (2) a bruxa adora o Diabo: esta é a abordagem histórica para a bruxaria europeia; (3) a bruxa reverencia deuses e deusas e pratica a magia para boas causas: este é o enfoque adotado pela maior parte dos bruxos modernos. Cada um desses pontos de vista pode ser justificado.

Livro 'História da Bruxaria' por Jeffrey B. Russell
Ilustração marginal para o livro Lechampion desdames, de Martin Le Franc (cerca de 1451). Esse é um dos primeiros desenhos de bruxas na Europa medieval. Elas são representadas cavalgando uma vassoura e um bastão pelos ares.

Alguém que pretenda mergulhar mais fundo nessa questão encontrará muito pouca ajuda na maioria dos inúmeros livros populares oferecidos nas seções de ocultismo das livrarias. Recentemente, são muitos os trabalhos que se dedicam ao tarô, astrologia, satanismo, abertura de canais (psicografia), mediunidade, cristais, tábua Ouija, quiromancia, extraterrestres, drogas psicodélicas – e também à bruxaria. Bruxaria e ocultismo não são a mesma coisa, e muitos bruxos se esforçam ao máximo para dissociar sua imagem e suas práticas de qualquer forma de ocultismo. Por outro lado, hoje, já há muitos livros que discutem seriamente o assunto, e seus títulos estão na bibliografia deste livro.

O equívoco mais comum a respeito da bruxaria é a concepção de que “bruxas não existem”. Stephen Jay Gould, o grande paleontólogo e ensaísta, continuamente deplorou a tendência humana à dicotomia – por exemplo, a de se satisfazer em receber um simples “sim” ou “não” como resposta –, bloqueando, assim, o caminho para a obtenção de respostas mais profundas. A existência ou não de bruxas está intimamente relacionada à definição adotada para caracterizá-las. Está aí a justificativa principal deste livro.

Uma série de enganos nessas muitas definições deve ser mencionada antes de seguirmos em frente. A noção de que o curandeiro é bruxo é um deles. O curandeiro [witch-doctor] pratica a magia, mas sua função é justamente a de combater as ameaças ou os efeitos da bruxaria. Outra ideia muito comum, mas igualmente errônea, é a de que a bruxaria é igual em qualquer parte do mundo. De fato, existem grandes e profundas variações entre a bruxaria das diversas culturas. Como demonstraremos mais adiante, existe, por exemplo, uma grande diferença histórica entre a bruxaria europeia e a das outras culturas. Outra afirmação incorreta que se faz sobre o assunto é que a possessão está relacionada com a bruxaria. A possessão é um ataque interno de maus espíritos sobre um indivíduo, uma invasão da psique; já a obsessão é um ataque externo e físico perpetrado por tais espíritos malignos. Em nenhum dos casos a vítima realiza um pacto voluntário com o espírito maligno. Na chamada bruxaria diabólica das épocas da Renascença e da Reforma europeias, por outro lado, a chamada bruxa voluntariamente convocava o mau espírito por meio de invocações, dentre outras formas. Quase todos os bruxos modernos condenam totalmente esse tipo de prática.

Outra concepção errônea é a de que as bruxas praticam a missa negra. A missa negra é desconhecida na história da bruxaria europeia e certamente não faz parte do repertório dos bruxos modernos. A única ocasião em que a celebração da missa negra foi historicamente registrada foi na corte do rei francês Luís XIV, e mesmo assim como uma espécie de sátira grosseira do catolicismo. Alguns satanistas modernos celebram a missa negra mais ou menos pelas mesmas razões, mas o satanismo não tem absolutamente nada a ver com a bruxaria moderna.

Ainda mais uma ideia equivocada, mas amplamente difundida, é a de que a bruxaria é um fenômeno característico da Idade Média. Bem ao contrário, as acusações de bruxaria diabólica somente emergiram bem no final da Idade Média. As grandes perseguições às bruxas ocorreram durante a Renascença, a Reforma e o século XVII. A afirmação de que bruxas são mulheres velhas é igualmente uma distorção da verdade e um exagero leviano. Tanto no passado como no presente, muitos homens praticaram a bruxaria, além do que muitas bruxas eram bastante jovens – muitas delas eram até crianças.

A Inquisição foi a responsável pela caça às bruxas” é mais uma afirmação cujo conteúdo é, no máximo, uma meia-verdade. A maioria das perseguições às bruxas foi realizada localmente e dirigida também por autoridades civis (além das eclesiásticas) e que se encontravam, usualmente, nos escalões médios. Gradualmente, a partir do século XVI, à medida que as Inquisições (nunca houve uma única Inquisição, unificada) foram se formalizando, também se traçaram regras estritas de procedimento e de aceitação de evidências para comprovação das acusações de bruxaria, o que, por outro lado, levou, frequentemente, à revogação das condenações locais e à libertação de acusados. O caso é semelhante do lado secular. Quanto mais o procedimento legal secular ia se tornando formal e centralizado (tal como no caso do Parlamento de Paris, a corte suprema da França setentrional), mais acusados eram absolvidos. Em grande extensão, a caça às bruxas adquiriu características locais, em vez de ser imposta por elites religiosas ou seculares.

Livro 'História da Bruxaria' por Jeffrey B. Russell
A Bruxa Má do Oeste, do filme O Mágico de Oz (1939). Vestida de preto, usando um chapéu cônico e ameaçando uma criança, a mulher velha e feia é o estereótipo da bruxa.

Tomar a bruxaria como algo sem importância, trivial é outro erro, em muitos sentidos. Durante as perseguições às bruxas, entre 1450 e 1750, aproximadamente 110 mil pessoas foram torturadas, sob a acusação de bruxaria, sendo que 40 mil a 60 mil delas foram executadas. Esse fato cruel certamente não é trivial. Além disso, o número de bruxas e bruxos modernos vem crescendo enormemente, desde a década de 1960, e a bruxaria, hoje, deve ser tratada como um importante fenômeno religioso. Mais ainda, as crenças em bruxas tiveram grandes efeitos psíquicos e sociais, afetando um número significativo de culturas durante longos períodos. Atualmente, antropólogos, psicólogos e historiadores tratam a bruxaria como assunto sério, conforme se observa pelo aumento dos livros dedicados ao assunto, desde a primeira edição deste livro, datada de 1980.

Mas, enfim, o que é uma bruxa? Uma das respostas pode ser obtida nas raízes semânticas e no desenvolvimento dos variados termos ligados à sua definição. A palavra witch [“bruxa”, em inglês] deriva de wicca (pronuncia-se “uítcha”, que significa “bruxo”, um praticante masculino da bruxaria) e de wicce (“uitchê”, que é “bruxa”); ambos os termos pertencentes ao inglês antigo (Old English). Os dois substantivos derivam do verbo wiccian (“uítchan”, que quer dizer “jogar um feitiço” ou “lançar um encantamento”). Contrariamente às crenças de alguns bruxos modernos, a palavra definitivamente não é de origem celta e não tem a menor relação com o verbo witan [“saber”] do inglês antigo, nem com qualquer outra palavra com o significado de wisdom ou “sabedoria”. A explicação de que witchcraft [“bruxaria”] significa “a arte dos sábios” (craft ofthe wise) é inteiramente falsa.

A significação do termo warlock, raramente usado hoje, é erroneamente determinada como “bruxo”. Warlock deriva das palavras do inglês antigo waer, “verdade”, e leogan, “mentir” e, originalmente, significava qualquer traidor ou alguém que quebra um juramento. Era aplicado tanto a homens como a mulheres. O termo warlock foi reutilizado na Escócia durante os séculos XVI e XVII, sendo então associado à bruxaria diabólica. Não é um termo muito útil para nós. A palavra witch se aplica a ambos os sexos.

Wizard [“mago” ou “mágico”], diferentemente de witch, realmente deriva da palavra wis do inglês médio, hoje wise [“sábio”]. A palavra wizard surgiu por volta de 1425, significando um homem ou mulher de grande saber, os quais, acreditava-se, possuíam certos conhecimentos e poderes extranormais. Durante os séculos XVI e XVII designou um high magician [“alto mago”]. Foi somente a partir de 1825, e raramente, que o termo foi usado como sinônimo de “bruxo(a)”.

Sorcerer deriva da palavra francesa sorcier, do latim vulgar sortiarius, ou “adivinho”. Mas em francês, sorcier significa tanto feiticeiro como bruxo. A palavra francesa foi introduzida no inglês durante os séculos XIV e XV, tornando-se de uso corrente durante o século XVI. Como no francês, a palavra no inglês sempre foi ambivalente: algumas vezes se refere à simples feitiçaria, outras vezes à bruxaria diabólica. Magician [“mago”] deriva do latim magia, proveniente do grego mageia. A palavra grega magos designava originalmente os sacerdotes astrólogos iranianos que acompanharam o exército do rei persa Xerxes, quando de sua invasão à Grécia (é bastante provável que os “reis magos” que viajaram para visitar o Menino Jesus fossem alguns desses astrólogos). Em inglês, a palavra magic [“magia”] frequentemente implicou um sistema intelectual sofisticado, em oposição às práticas rudes da sorcery [“feitiçaria”]; muitas vezes a denominação inglesa foi high magic [“alta magia”] (veja adiante).

Livro 'História da Bruxaria' por Jeffrey B. Russell
Uma bruxa moderna, Sybil Leek, com uma “bruxinha” de sua loja de antiguidades.

Os conceitos ligados a essas palavras também precisam de esclarecimento. Um deles é o de “superstição”. Bruxaria não é necessariamente superstição. Comumente, as pessoas pensam em superstição como alguma coisa que destoa da visão de mundo predominante em sua sociedade e naquele momento histórico. Essa concepção é infeliz, porque contribui para o confinamento e a inflexibilidade do pensamento. A crença de uma época é a superstição de outra; muitas das crenças que vigoram neste século XXI podem algum dia vir a ser consideradas “superstições”. Será mais útil definir superstição como uma crença que não está fundamentada em qualquer visão de mundo coerente. Sem dúvida, essa definição é a mais próxima do significado original da palavra, no século XIII, que indicava uma crença ou prática falsa ou irracional. Os católicos medievais, os antigos egípcios, os dayaks (grupo étnico natural do interior da ilha de Bornéu) do século XX e os bruxos modernos não são necessariamente mais supersticiosos que os leigos ocidentais do século XXI. Se você defende um ponto de vista que examinou cuidadosamente e inseriu numa visão de mundo coerente, então, para você mesmo, essa crença não é em absoluto uma superstição, embora ela pudesse ser, se fosse sustentada por alguém que tivesse uma visão de mundo diferente. Mas aqui é necessário ter cuidado, porque, se você defende uma crença sem convicção ou de maneira acrítica e não se preocupa em inseri-la adequadamente dentro de uma visão de mundo coerente, então essa crença se torna uma superstição também para você. O número de superstições científicas, religiosas e políticas modernas não é, em seu conjunto, menor que o do passado. Algumas pessoas são supersticiosas todo o tempo e todas as pessoas se tornam supersticiosas, pelo menos parte do tempo. Sempre que a bruxaria se enquadrar em uma visão coerente do mundo, não será uma superstição.

Livro 'História da Bruxaria' por Jeffrey B. Russell
Goya, Conjuro, c. 1794-5. Goya, ele mesmo um cético, pintou cenas grotescas de bruxaria com propósitos satíricos. Aqui, as bruxas estereotipadas estão acompanhadas por familiares, alfinetam imagens e carregam uma cesta com bebês mortos para usarem sua orgia canibalística.

O “sobrenatural” é outro conceito que requer reflexão. Frequentemente se pensa que a bruxaria envolve poderes sobrenaturais. Mas os limites entre o natural e o sobrenatural vêm sendo continuamente reajustados. Nesse processo, os cientistas algumas vezes mutilaram a busca do conhecimento ao declararem que certos temas não eram adequados a uma investigação científica. Na realidade, tudo quanto existe deve ser natural, quer a ciência seja capaz ou não de demonstrar sua existência. Se, por exemplo, os anjos – ou os extraterrestres – existirem, eles fazem parte da ordem natural do Universo. Exceto dentro do contexto de um sentido técnico especial demarcado pela teologia cristã, o termo “sobrenatural” é demasiado vago para permitir uma definição.

“Não científico” é um termo um pouco mais útil, embora as linhas de demarcação ainda sejam imprecisas, porque o que não é científico em uma área da ciência em determinado período pode tornar-se científico em outro campo e em outra época. O mais importante de tudo é que não queremos recair na atual superstição dominante de que as únicas coisas verdadeiras são aquelas demonstráveis pela “ciência”. Há muitos caminhos para a realidade. Não é necessário pensar na magia como uma abordagem inferior à da ciência. A teoria do século XVIII de que a humanidade progrediu e evoluiu naturalmente da bruxaria, por meio da religião até chegar à ciência, embora ainda seja popular entre os políticos e muitos cientistas, não é mais encarada favoravelmente por um grande número de eruditos. A monumental History of magic and experimental science¹ em oito volumes, escrita no século XX por Lynn Thorndike, não recebeu esse nome por acaso. Thorndike sabia que as origens da ciência se encontram na magia (do mesmo modo que na religião) e que a maioria dos grandes cientistas dos séculos XVI e XVII também era formada por magos, noção reforçada alguns anos mais tarde, ainda no século XX, pela obra de Frances Yates, Giordano Bruno and the hermetic tradition [publicada no Brasil com o título Giordano Bruno e a tradição hermética].²

Aqui entra o conceito de alta magia oposto à simples feitiçaria. A base da alta magia é a crença no kosmos, um universo ordenado e coerente, cujos elementos se acham inter-relacionados – quem colhe uma flor perturba de algum modo a estrela mais distante. Existem evidências científicas de que isso de fato acontece. Um exemplo disso é o famoso “efeito borboleta”, em que a perturbação do ar causada pelo bater das asas de uma única borboleta na França pode desencadear uma série de eventos que, ocasionalmente, vêm a provocar um tornado no Kansas. Em um universo no qual todas as partes estão inter-relacionadas e afetam umas às outras, mesmo remotamente, há um relacionamento entre cada ser humano individual e as estrelas, plantas, minerais e outros fenômenos naturais. Essa é a crença mágica da “correspondência”, uma doutrina que foi cuidadosamente elaborada na Europa, desde o princípio da Idade Moderna e dentro de padrões coerentes e sofisticados. Essa sofisticada alta magia, intelectualmente em voga durante o século XVII, competiu seriamente, durante algumas décadas, com a ciência fisicista derivada de John Locke e David Hume. Ao longo dos séculos que se sucederam, a abordagem fisicista triunfou, devido aos numerosos sucessos de caráter prático que demonstravam, em oposição aos raros resultados que os altos magos conseguiam apresentar. Hoje em dia, no começo do século XXI, somente permanecem os traços mais simples do sistema da alta magia, tais como os modismos verdadeiramente supersticiosos envolvendo a astrologia.

Embora suas origens tenham sido comuns, existe realmente uma diferença fundamental entre a alta magia e a ciência. A magia não pode ser submetida aos testes da investigação empírica ou ser codificada em uma teoria coerente, portanto sua validação é problemática. Há muitos caminhos para a verdade, além do científico, mas em cada um desses caminhos as regras do pensamento crítico devem ser empregadas para testar cada afirmação. Os sofisticados altos magos do século XVII sinceramente tentaram fundar sistemas coerentes, mas nenhum deles obteve sucesso nessa empresa, e uma característica infeliz de muitos livros modernos que defendem a magia é a de realizarem poucas ou nenhuma tentativa nesse sentido. Seu problema de validação é muito mais agudo do que aquele enfrentado no século XVII. Se alguém afirma que fez uma viagem astral ou que viu uma nave espacial intergaláctica ou que foram extraterrestres os construtores das grandes pirâmides ou que recebe mediunicamente um antigo sábio guerreiro, a crença nessa pessoa deve ser suspensa até que as evidências se tornem absolutamente inquestionáveis. De fato, em geral, não existe evidência alguma. A magia moderna, como a ciência, busca o conhecimento, mas seus meios de obtenção do conhecimento são, usualmente, incoerentes.

A alta magia intelectualizada dos primeiros astrólogos e adivinhos modernos não é parte integrante da história da bruxaria. De fato, mesmo durante as grandes perseguições às bruxas que ocorreram na Europa, muito poucas pessoas foram acusadas ao mesmo tempo de praticar a magia e a bruxaria. As duas tradições são distintas e já estavam separadas nessa época. Não obstante, a bruxaria realmente depende em parte da visão mágica do mundo: de que existem relacionamentos ocultos entre todos os elementos do cosmos. Presume-se que o poder exercido pelo bruxo ou feiticeiro seja um poder natural obtido pela compreensão do bruxo sobre esses relacionamentos ocultos e por causa da habilidade que manifesta em controlá-los.

Bem diferente dos sistemas sofisticados da alta magia é a magia aplicada quase tecnologicamente com fins práticos. Essa é a baixa magia ou simples feitiçaria. A feitiçaria é uma magia automática: realiza-se determinada ação e com ela obtêm-se os resultados correspondentes. Há quem faça bruxaria e outro, tecnologia: um homem fertiliza um campo cortando sobre ele a garganta de uma galinha à meia-noite; outro busca obter o mesmo resultado espalhando nele esterco de novilho ao pôr do sol.

Alguns antropólogos não estabelecem nenhuma distinção entre feitiçaria e bruxaria. Outros adotam uma diferenciação africana que distingue os magos maléficos, que usam objetos materiais, tais como ervas e sangue para realizar encantos malignos, e aqueles que prejudicam os outros por meio de uma qualidade inerente e invisível que possuem (por exemplo, sacudindo uma vara de condão e entoando uma cantilena a fim de matar alguém). Os mesmos antropólogos atribuem o significado da palavra inglesa sorcerer [“feiticeiro”] aos primeiros e o de witch [“bruxo”], aos últimos. A distinção é válida, mas a escolha das palavras inglesas foi arbitrária.

A maioria dos historiadores estabelece uma distinção entre a bruxaria europeia, que era uma forma de diabolismo – isto é, a adoração de espíritos malignos – e a feitiçaria de âmbito mundial, que não envolve a veneração dos espíritos, mas a exploração deles. A palavra inglesa wicca, que já aparece em um manuscrito do século IX, significava originalmente “feiticeiro”; todavia, durante as perseguições às bruxas, passou a ser usada como o sinônimo de maleficus, do latim, que significava um bruxo(a) adorador(a) do diabo.

Os bruxos modernos têm um ponto de vista que difere tanto dos antropólogos, como dos historiadores. Para alguns deles, a bruxaria é uma sobrevivência do antigo paganismo, suprimido durante longos séculos pelos cristãos. Outros, com maior acurácia, argumentam que criaram uma nova religião, chamada neopagã. Os bruxos modernos também se diferenciam das bruxas históricas por rejeitarem tanto a crença no Deus como no Diabo cristãos. Também se distinguem dos feiticeiros por adorarem deuses e deusas – ou a natureza, ou o kosmos – em vez de praticarem a baixa magia.

As definições e respectivas utilizações desses termos são variadíssimas; portanto, neste livro daremos nossas próprias definições e o conjunto de suas utilizações. “Feitiçaria” é a magia negra (ou baixa magia) praticada em todo o mundo, quer seja benéfica ou maléfica, quer seja mecânica ou envolva a invocação de espíritos. “Bruxaria” significa tanto a chamada bruxaria diabólica da caça às bruxas quanto a moderna bruxaria neopagã.

Mais uma vez, enfatizamos que não existem tradições ou conexões de qualquer tipo entre os ditos adoradores do Diabo do período da Renascença e da Reforma, e os modernos neopagãos. Entretanto, alguns paralelos são traçados entre os bruxos diabólicos e as crenças que floresceram em outras sociedades: em algumas culturas, acredita-se que bruxos causam pragas; mantêm intercurso sexual com cadáveres; praticam canibalismo e roubam crianças. Mas, na sociedade ocidental, a ideia de continuidade entre os antigos feiticeiros, os bruxos medievais e os bruxos modernos simplesmente não se sustenta, pois não há evidências válidas.

A feitiçaria é amplamente difundida em muitas sociedades. Deve, portanto, ser útil, caso contrário já teria desaparecido há muito tempo. Uma das funções da feitiçaria é, justamente, a de aliviar tensões sociais. A feitiçaria simples, pelo menos em suas linhas benéficas, frequentemente é aceita como parte da cultura de algumas comunidades. A crença na feitiçaria ajuda a definir e a sustentar certos valores sociais; explica eventos assustadores e mesmo fenômenos aterrorizantes. Dá ao indivíduo um senso de poder diante de um mundo muitas vezes incompreensível e amedrontador. A feitiçaria também pode servir como um estranho sistema de justiça, uma forma de corrigir erros ou de quitá-los: em geral, as maldições são empregadas pelos fracos contra os fortes, a quem não podem atingir de outra maneira. Contudo, tal gesto pode facilmente sair pela culatra, porque há a possibilidade de que a suposta vítima se torne o centro das atenções e de compaixão.

Até mesmo a crença na feitiçaria malevolente tem a sua função. Ajuda a consolidar os limites de uma comunidade e a fortalecer a solidariedade contra hostilidades externas. Quando um feiticeiro(a) é identificado(a) como agente de um poder hostil a determinada sociedade, expulsá-lo(a) da comunidade ou persegui-lo(a) de qualquer maneira dá aos ortodoxos um senso de camaradagem e de autojustificação. Uma vez que essa pessoa é identificada como bode expiatório, a sociedade pode projetar sobre ela todo tipo de maldade que reprimiu em si mesma. Assim como as pessoas são passíveis de cometer (e de fato cometem) o erro de projeção negativa – atribuindo aos outros os sentimentos de hostilidade que têm dentro de si mesmas –, também as sociedades podem demonizar seus oponentes. A maior parte dos rancores e genocídios étnicos, políticos ou religiosos deriva da demonização de oponentes. A projeção negativa é reforçada pela culpa, porque o bode expiatório precisa ser culpabilizado; caso contrário, a culpa de transformar alguém em bode expiatório deverá ser muito maior, quase insuportável para quem a projetou.

Em tempos de deslocamento e dissolução dos valores, a feitiçaria e a bruxaria também podem funcionar como catalisadoras de um foco e um nome concreto para inquietações difusas. Em tais condições, a criação de bodes expiatórios se torna intensa e amplamente difundida, como ocorreu na Europa durante a caça às bruxas, quando as inseguranças e os terrores da sociedade foram projetados sobre certos indivíduos que então eram torturados ou mortos. Uma abordagem semelhante é a de investigar em que pontos a bruxaria se encaixa na estrutura geral de uma sociedade. Os antropólogos identificaram na feitiçaria de diversas sociedades padrões característicos de acusação que eram determinados pelas tensões existentes em relacionamentos sociais específicos. Ao invés de aliviar as tensões sociais, é possível que a crença na feitiçaria venha a alimentá-las, exacerbá-las. Essa crença pode surgir de divisões familiares, de feudos ou de disputas por autoridade dentro de famílias ou grupos. Os antropólogos observam que “as acusações de bruxaria não são aleatórias”, ao contrário, seguem linhas sociais perfeitamente observáveis.³

Muitos historiadores modernos adaptaram metodologias antropológicas e sociológicas ao estudo da feitiçaria e da bruxaria, abrindo, assim, diferentes percepções sobre o assunto. Além dos estudiosos citados na bibliografia deste livro, podemos adiantar alguns dos mais influentes nomes, como Wolfgang Behringer, Paul Boyer e Stephen Nissenbaum, Robin Briggs, Stuart Clark, Valerie Flint, Richard Kieckhefer, Arthur C. Lehmann, Brian P. Levack, H. C. Erik Midelfort, E. William Monter, Edward Peters e Rodney Stark. Na abordagem da bruxaria moderna: Margot Adler, Brooks Alexander, James A. Herrick e Aidan Kelly.

Segundo Boyer e Nissenbaum, “os historiadores […] começaram a perceber mais amplamente o quanto informações obtidas pelo estudo de pessoas ‘comuns’, vivendo em comunidades ‘comuns’, podem contribuir para o esclarecimento das questões históricas mais fundamentais”. Eles utilizaram “a interação da [desta] história ‘ordinária’ e o momento extraordinário [os julgamentos das bruxas de Salem, em 1692] a fim de entender a época que produziu ambos”.

Qualquer que seja a abordagem, o essencial é conservar a mente aberta para evidências que possam, inclusive, modificar nosso ponto de vista, nos mantendo dispostos à compreensão de nossos parceiros de estudos, mesmo quando não concordamos com eles.

O ressurgimento do interesse sobre a história da bruxaria, ocorrido nas últimas quatro décadas, tem sido extraordinário. Muitas abordagens apresentam valor considerável; mas tentar seguir todas elas poderia nublar o ponto central de que a ideia de bruxaria se desenvolveu ao longo do tempo, e de que esse desenvolvimento é perceptível como um padrão histórico.

Esse desenvolvimento começa na feitiçaria universal.

fim da amostra…


Tags: , ,