Livro ‘O chalé no fim do mundo’ por Paul Tremblay

Livro 'O chalé no fim do mundo' por Paul Tremblay
Novo livro do autor do premiado livro de suspense Na escuridão da mente. A menina Wen, de sete anos, está de férias com seus pais, Eric e Andrew, em um chalé isolado perto de um tranquilo lago em New Hampshire. Numa tarde, quando Wen está caçando gafanhotos no jardim à frente da casa, um estranho aparece inesperadamente. Leonard é o maior homem que Wen já viu, mas ele é jovem e amigável, e a conquista quase de imediato. Leonard e Wen conversam e brincam até Leonard de repente pedir desculpas. "Nada do que vai acontecer é culpa sua". Outros três estranhos chegam ao chalé carregando objetos não identificáveis de aparência ameaçadora...
Capa comum: 252 páginas
Editora: Difel; Edição: 1 (9 de setembro de 2019)
Idioma: Português
ISBN-10: 852862417X
ISBN-13: 978-8528624175
Dimensões do produto: 16 x 1,3 x 23 cm
Peso de envio: 322 

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Leia trecho do livro

Para Lisa, Cole e Emma, e para nós

Then back in the ground/ We look at our hands/ And wonder aloud/ Could anyone choose to die/ In the end everybody wins/ In the end everybody wins¹

Future of the Left, “The House That Hope Built”

Meanwhile, planes drop from the sky/ People disappear and bullets fly… Wouldn’t be surprised if they have their way/ (Tastes just like chicken they say)²

Clutch, “Animal Farm”

… because when the blanket of death came for us we kicked it off and were left naked and shivering in the world.³

Nadia Bulkin, “Seven Minutes in Heaven”, She Said Destroy*


1. Tradução livre dos trechos de música e do conto:

* Então, de volta ao chão/ Olhamos nossas mãos/ E em voz alta nos perguntamos/ Poderia alguém escolher morrer?/ No fim todos ganham/ No fim todos ganham.
2. Enquanto isso, aviões mergulham do céu/ Gente some e balas voam… Não seria surpresa se eles conseguissem o que querem/ (O gosto é igualzinho ao de frango, dizem)
3. … porque, quando o manto da morte veio até nós, nós o chutamos para longe e nos vimos pelados e tremendo no mundo.

ENTRE E VEJA

Capítulo 1

Wen

A garota de cabelos escuros desce os degraus de madeira da entrada e se agacha na lagoa amarelada de grama, que chega à altura dos tornozelos. Uma brisa cálida ondula o gramado, as folhas e as pétalas dos trevos, semelhantes a caranguejos. Ela observa o jardim da frente, atenta ao movimento mecânico e espasmódico dos gafanhotos em seus saltos frenéticos. O frasco de vidro aninhado junto a seu peito cheira ligeiramente à geleia de uva e seu interior é grudento. Ela abre a tampa cheia de furos.

Wen prometeu a Papai Andrew que soltaria os gafanhotos antes que eles cozinhassem no terrário improvisado. Os gafanhotos vão ficar bem porque ela vai se certificar de deixar o vidro bem longe da luz solar direta. Só tem medo de que eles se machuquem saltando contra as beiradas cortantes dos furos da tampa. Por isso vai apanhar gafanhotos menores, que não saltam tão alto nem com tanta força quanto os grandes, e, graças a seu tamanho mais compacto, haverá mais espaço ali dentro para eles esticarem as pernas. Ela conversará com os gafanhotos em voz baixa e tom tranquilizador e, com sorte, será menos provável que eles entrem em pânico e terminem esmagados contra as perigosas estalactites de metal. Satisfeita com a reconfiguração de seu plano, ela arranca um punhado de grama com raízes e tudo, deixando um buraco bem no meio do mar amarelo e verde do jardim da frente da casa. Cuidadosamente, pousa o vidro no chão, ajeita a grama ali dentro e, em seguida, limpa as mãos na camiseta cinza da Mulher Maravilha.

O oitavo aniversário de Wen será dali a seis dias. Seus pais duvidam, não tão secretamente assim (ela ouviu os dois conversando a respeito), que aquele seja de fato o dia em que ela nasceu — ou apenas um dia escolhido ao acaso pelo orfanato na Província de Hubei, na China. Ela está no quinquagésimo sexto percentil de altura para sua idade e no quadragésimo segundo de peso, ou pelo menos estava seis meses atrás, na consulta pediátrica. Ela fez com que o Dr. Meyer explicasse o contexto daqueles números detalhadamente. Da mesma forma que ficou satisfeita por estar acima da quinquagésima linha para sua altura, sentiu raiva por estar abaixo quanto a seu peso. Wen é tão direta e determinada quanto atlética e esguia, e, frequentemente, ganha dos pais nas discussões e nas lutas de brincadeira na cama do casal. Seus olhos têm um tom de castanho profundo e escuro, com sobrancelhas finas como lagartas que se agitam por vontade própria. Ao longo do contorno direito do sulco do lábio superior, há uma tênue cicatriz que só pode ser vista sob certa luz e se a pessoa souber o que está procurando (ou pelo menos assim lhe disseram). A marquinha branca é a única evidência remanescente de um lábio leporino reparado depois de diversas cirurgias realizadas entre os dois e os quatro anos de idade. Ela se recorda da primeira e da última ida ao hospital, mas não das outras nesse ínterim. Ter esquecido as idas ao hospital e os procedimentos médicos que houve entre elas de certa maneira a incomoda. Wen é simpática, sociável e tão engraçada quanto qualquer outra criança de sua idade, mas não é nada generosa com seu sorriso reconstruído. Seus sorrisos têm de ser conquistados.

É um dia de verão sem nuvens no norte de New Harnpshire, a poucos quilômetros da fronteira com o Canadá. A luz do sol cintila sobre a copa das árvores que, magnanimamente, protegem o pequeno chalé, o pontinho vermelho solitário na margem sul do lago Gaudet. Wen pousa o frasco de vidro em uma área sombreada ao lado das escadas da entrada da casa. Caminha pela grama, com os braços estendidos, como se estivesse atravessando um trecho de água. Movimenta o pé direito para frente e para trás pelo tapete de folhas sobre a grama, como Papai Andrew lhe ensinou a fazer. Ele cresceu em uma fazenda em Vermont, por isso é o especialista em caçar gafanhotos. Ele disse que o pé dela precisava imitar uma foice, mas sem cortar a grama de verdade. Ela não entendeu o que ele quis dizer com isso, e ele então começou a explicar o que era aquele instrumento e como era utilizado. Sacou seu smartphone para procurar imagens de foices, antes que os dois lembrassem que no chalé não tinha sinal de celular. Portanto, Papai Andrew desenhou uma foice em um guardanapo — uma faca em forma de lua crescente presa na ponta de uma vara longa, que bem podia ser usada por um guerreiro ou um orque de O Senhor dos Anéis. Parecia bastante perigosa. Wen não entendeu por que as pessoas precisariam de algo tão grande e extremo para cortar grama, mas mesmo assim adorou a ideia de fingir que sua perna era o bastão e o pé, a longa lâmina curva.

Com um bater de asas alto e lancinante, um gafanhoto castanho, grande o bastante para cobrir toda a mão de Wen, sai voando ao lado de seu pé e quica em seu peito. Wen cambaleia para trás por causa do impacto e quase cai no chão.

Ela ri e diz:

— Tá, você é grande demais. Continua então a fazer movimentos exploratórios com o seu pé-foice. Um gafanhoto bem menor dá um pulo tão alto que, em algum ponto de seu arco elíptico em direção ao céu, ela o perde de vista, mas em seguida o localiza quando ele aterrissa a alguns centímetros à sua esquerda. Ele é do mesmo tom verde fluorescente de uma bola de tênis e tem o tamanho perfeito, não sendo muito maior do que os aglomerados de sementes que ficam presos na ponta das folhas de grama mais altas. Ah, se ela conseguisse apanhá-lo! Seus movimentos são rápidos e difíceis de antecipar, e ele salta para longe um instante antes de a armadilha trêmula que ela faz com as mãos tentar agarrá-lo. Ela ri e o segue em um louco ziguezague pelo jardim. Diz ao gafanhoto que não quer lhe fazer mal, que ela vai soltá-lo depois, que só deseja aprender mais a seu respeito para poder ajudar todos os outros gafanhotos a serem saudáveis e felizes.

Wen acaba apanhando o miniacrobata nos limites do gramado e da trilha de cascalhos para carros. Ali, entre suas mãos em concha, está o primeiro gafanhoto que ela já apanhou na vida. Grita baixinho, “Uhul!”. O gafanhoto é tão leve que ela só o sente quando ele tenta saltar por entre seus dedos cerrados. A vontade de abrir as mãos um tantinho para dar uma espiada é quase compulsiva, mas ela sabiamente resiste. Sai correndo pelo jardim e o deposita dentro do frasco de vidro, e então fecha a tampa rapidamente. O gafanhoto salta ali dentro como um elétron, debatendo-se contra o vidro e o metal, para, depois, abruptamente, se acomodar sobre a grama e descansar.

Wen diz:

— Certo. Você é o número um. — Retira do bolso de trás um caderno do tamanho da palma de sua mão, cuja primeira página já está dividida em fileiras e colunas tortas com cabeçalhos, e anota ali número um, uma estimativa de seu tamanho (escreve, imprecisamente, “5 centímetros”), cor (“verde”), menino ou menina (“menina Caroline”), nível de energia (“auto”). Devolve o frasco de vidro a seu local protegido de luz direta e volta a caminhar pelo jardim. Rapidamente apanha mais quatro gafanhotos de tamanho similar: dois de cor castanha, um verde e outro de alguma cor localizada no espectro entre uma e outra. Ela lhes dá os nomes de seus colegas de escola: Liv, Orvin, Sara e Gita.

Enquanto procura um sexto gafanhoto, ouve alguém caminhando ou correndo pela compridíssima estrada de terra, que serpenteia próximo ao chalé e acompanha a margem do lago antes de mergulhar, ondulante, floresta adentro e ao redor. Quando eles chegaram ali, dois dias atrás, levaram vinte e um minutos e quarenta e nove segundos para percorrer toda aquela estrada. Wen cronometrou o tempo. Claro que Papai Eric estava dirigindo devagar demais, como sempre.

O som de pés esmagando a terra e os pedregulhos ficou mais alto, mais próximo. Algo grande estava vindo pela estrada de terra. Grande de verdade. Talvez fosse um urso. Papai Eric a fez prometer que gritaria por eles e correria para dentro de casa se avistasse qualquer animal maior que um esquilo. Será que ela deveria sentir empolgação ou medo? Não consegue enxergar nada por entre as árvores. Wen fica parada no meio do gramado, preparada para correr em caso de necessidade. Seria ela veloz o suficiente para conseguir entrar no chalé se aparecesse um animal perigoso? Ela torceu para que fosse um urso. Queria ver um. Poderia se fingir de moita se necessário. O talvez-urso está no início do caminho de acesso a veículos, protegido pelas árvores. A curiosidade de Wen se transforma em aborrecimento por ter de lidar com o que ou quem quer que estivesse ali em vez de se dedicar ao seu importante projeto.

Um homem dobra a esquina e começa a caminhar rapidamente pelo caminho de acesso a veículos, como se estivesse voltando para casa. Wen não tem como avaliar a sua altura, pois todos os adultos existem no espaço repleto de nuvens acima dela, mas com certeza ele é bem mais alto que seus pais. Talvez seja mais alto do que qualquer outra pessoa que ela já conheceu, e tão largo quanto dois troncos de árvore juntos.

O homem acena com uma das mãos, que bem poderia ser uma pata de urso, e sorri para Wen. Por causa de suas diversas cirurgias de reconstrução labial, Wen sempre reparou e analisou muito os sorrisos. Muitas pessoas têm sorrisos que não indicam aquilo que um sorriso deveria indicar. Seus sorrisos são cruéis e debochados, da mesma maneira que o sorriso de um valentão é igual a um punho fechado. Os piores são os sorrisos confusos e tristes dos adultos. Wen se lembrava de como, nos procedimentos pré e pós-cirúrgicos, não precisara de espelho para saber que seu rosto ainda não estava igual ao das outras pessoas, por causa dos meios-sorrisos de “coitadinha” que via nos rostos das salas de espera, nos saguões e nos estacionamentos.

O sorriso do homem é simpático e largo. As cortinas de seu rosto se abrem com naturalidade. Wen não consegue descrever muito bem a diferença entre um sorriso verdadeiro e outro falso, mas sabe reconhecê-los quando os vê. Ele não está fingindo. O sorriso dele é real, tão real que pode ser contagiante, e Wen lhe retribui com um de lábios fechados, que ela cobre com as costas da mão.

O homem não está usando roupas apropriadas para caminhar ou correr na floresta. Seus sapatos pretos desajeitados com grossas solas de borracha fazem com que ele pareça ainda mais alto; não são tênis e tampouco são os sapatos elegantes e bacanas que o Papai Eric usa. Parecem mais os Doc Martens que o Papai Andrew usa. Wen se lembra da marca porque acha legal que os sapatos tenham o nome de uma pessoa. O homem usa jeans desbotados e uma camisa social branca, enfiada dentro da calça e abotoada até em cima, fazendo com que o colarinho aperte seu pescoço da largura de um hidrante.

Ele diz:

— Olá.

Sua voz não é nem de longe tão grande quanto ele. Parece mais a de um adolescente, um daqueles monitores de alunos do programa semi-intensivo que ela cursa.

— Oi.

— Eu me chamo Leonard.

Wen não diz seu nome e antes que possa dizer vou chamar meus pais, Leonard lhe faz uma pergunta.

— Tudo bem se a gente conversar um pouquinho antes de eu falar com seus pais? Quero muito conversar com eles, mas vamos bater um papo antes, só eu e você. Tudo bem?

— Não sei. Não devo conversar com estranhos.

— Você tem razão e é muito esperta. Prometo que quero ser seu amigo e não vou ser um estranho por muito tempo. – Ele sorri de novo. É um sorriso quase tão grande quanto uma risada.

Ela sorri de volta e, dessa vez, não esconde o sorriso com as costas da mão.

— Posso perguntar como você se chama?

Wen sabe que não deveria dizer mais nada, que deveria se virar e entrar em casa, e que deveria fazer isso depressa. Os pais já conversaram um monte de vezes com ela sobre o perigo de falar com estranhos e, por ela morar na cidade, faz sentido que seja cautelosa, porque lá existem muitas pessoas. Uma quantidade inimaginável de gente caminha pelas calçadas, lota os metrôs e mora e trabalha e faz compras nos edifícios altos, e tem gente que anda nos carros e ônibus que apinham as ruas a todas as horas do dia e da noite, e ela entende que pode haver uma pessoa malvada no meio de todas as pessoas boas, e que essa pessoa malvada pode se esconder em um beco ou um furgão ou atrás de uma porta ou no parquinho ou no mercado da esquina. Mas lá, na floresta perto do lago, de pé na grama, sob o sol e as árvores sonolentas e o céu azul, ela se sente segura e acha que Leonard parece legal. Diz isso na sua cabeça: Ele parece legal.

Leonard está no limite do caminho de acesso a veículos e do gramado, a poucos passos de distância de Wen. Seu cabelo tem cor de trigo e é desalinhado, caindo em camadas parecidas com as da cobertura de um bolo. Seus olhos são redondos e castanhos como os de um ursinho de pelúcia. Ele é mais jovem que seus pais. Seu rosto é pálido e liso e não tem nem sinal da barba rala que cobre o rosto de Papai Andrew no fim de cada dia. Talvez Leonard esteja na faculdade. Será que ela deveria lhe perguntar em qual faculdade ele estuda? Daí ela poderia lhe contar que Papai Andrew dá aulas na Universidade de Boston.

— Eu me chamo Wenling, mas meus pais e meus amigos e todo mundo na escola me chama de Wen — diz ela.

— Bem, é um grande prazer te conhecer, Wen. Então, me diga o que está aprontando. Por que não está nadando no lago em uma tarde tão linda como essa?

Era uma coisa que um adulto diria. Talvez ele não seja um estudante universitário.

— O lago está muito frio, por isso estou caçando gafanhotos — responde ela.

— É mesmo? Ah, eu adoro caçar gafanhotos. Fazia isso o tempo todo quando eu era pequeno. É muito divertido.

— É, sim. Mas isso é mais sério. — Ela projeta a mandíbula inferior para a frente, em uma imitação proposital de Papai Eric, das ocasiões em que ela lhe faz uma pergunta e não recebe um sim logo de cara, mas, esperando o bastante, a resposta às vezes acaba virando um sim.

— É mesmo?

— Estou caçando os gafanhotos, dando nomes pra eles e estudando todos pra poder descobrir se estão saudáveis. É o que as pessoas fazem quando estudam animais, e eu quero ajudar os animais quando eu crescer. — Wen ficou um pouco atordoada por ter falado tão depressa. Os professores na escola diziam para ela falar mais devagar, porque não conseguem entender nada do que é dito quando desembesta a falar desse jeito. O professor substituto, Sr. Iglesias, ceda vez lhe disse que parecia que as palavras vazavam da sua boca e, depois disso, Wen passou a não gostar nem um pouco dele.

— Nossa, estou muito impressionado. Quer ajuda? Eu ficaria muito feliz em poder te ajudar. Sei que agora sou bem maior do que quando era criança. — Ele estende as mãos e encolhe os ombros, como se não pudesse acreditar no que se tornou. — Mas, apesar disso, continuo sendo muito gentil.

— Tá legal — responde Wen. — Eu vou segurar o vidro pra que os outros não saltem pra fora e, enquanto isso, você podia apanhar mais uns dois pra mim. Os grandes, não, por favor. Não pode ser dos grandes. Não tem espaço pra eles. Só os pequenos. Eu te mostro. — Ela caminha até as escadas para apanhar o vidro. Sobe na ponta dos pés e espia pelas janelas abertas do chalé que ladeiam a porta de entrada. Procura pelos pais, para ver se estão observando ou escutando, mas eles não estão nem na cozinha nem na sala de estar. Devem estar no deque dos fundos, recostados nas espreguiçadeiras tomando banho de sol (o Papai Eric quase com certeza vai acabar se queimando e depois repetindo que sua pele vermelha como uma lagosta não está doendo nem precisando de aloe vera), lendo um livro ou escutando música ou podcasts chatos. Por um instante, ela pensa na ideia de ir até lá e contar que vai caçar gafanhotos com Leonard, mas, em vez disso, ela apanha o frasco de vidro. Os gafanhotos reagem como se tivessem se transformado em pipoca quente, se atirando contra a tampa. Wen tenta acalmar sua carga e vai até Leonard, que está no meio do gramado, já curvado sobre a grama, examinando-a.

Wen se aproxima dele, estende o frasco e diz:

— Viu? Dos grandes, não, por favor.

— Entendi.

— Quer que eu apanhe os gafanhotos pra você ver como é?

— Ah, eu gostaria muito de apanhar pelo menos um. Faz muito tempo que não faço isso. Já não sou mais tão ágil quanto você, por isso vou me movimentar bem devagarinho para não os assustar. Ah, olha lá, lá vem um. — Ele se curva e estende os braços um de cada lado de um gafanhoto que está pendurado de ponta-cabeça na extremidade de um caule seco. O gafanhoto não se mexe, hipnotizado pelo gigante que está eclipsando o sol. As mãos de Leonard lentamente se juntam e o engolem.

— Uau! Você é bom nisso.

— Obrigado. E agora, como vamos fazer? Talvez seja melhor colocar o vidro no chão, deixar os gafanhotos que estão aí dentro se acalmarem um pouquinho e depois abrir a tampa e colocar este aqui.

Wen faz como ele sugere. Leonard se agacha apoiado em um joelho e olha para o frasco de vidro. Wen imita seus movimentos. Quer perguntar se o gafanhoto está saltando dentro da escuridão entre as mãos dele, se ele o sente rastejando pela sua pele.

Eles esperam em silêncio, até ele dizer:

— Certo. Vamos tentar. — Wen abre a tampa. Leonard desliza uma das mãos sobre a outra até que esteja segurando o gafanhoto com um dos punhos poderosos e, em seguida, delicadamente, inclina a tampa do vidro aberto com a mão que agora está livre. Deixa o gafanhoto cair no frasco, recoloca a tampa e a gira uma vez no sentido horário. Os dois se entreolham e riem.

— Conseguimos. Quer apanhar mais um? — propõe ele.

— Quero. — Wen saca o caderninho e anota nas colunas adequadas: “5 sentímetros, verde, menino Lenard, médiu.” Ela ri sozinha por ter dado ao gafanhoto o nome dele.

Leonard apanha rapidamente outro gafanhoto e o deposita dentro do frasco sem maiores incidentes ou fugas dos colegas. Wen anota: “2 sentímetros, marrom, menina Izzy, baixa.”

— Quantos você tem agora?

— pergunta ele.

— Sete.

— Este é um número poderoso, mágico.

— Um número da sorte, você quer dizer?

— Não, só de vez em quando traz sorte. A resposta dele é irritante, porque todo mundo sabe que sete é um número de sorte.

— Acho que é o número da sorte, e acho que é um número da sorte para os gafanhotos.

— Talvez você tenha razão.

— Certo. Não preciso de mais nenhum gafanhoto, então.

— O que vamos fazer agora?

— Você pode me ajudar a observar eles.

— Ela coloca o frasco no chão e os dois se sentam de pernas cruzadas, um de frente para o outro, com o frasco bem no meio.

Wen sacou o caderninho e o lápis. Uma rajada de vento sacode o papel entre as palmas das suas mãos.

Leonard pergunta:

— Você mesma fez os buracos na tampa?

— Não, foi o Papai Eric. Encontramos um martelo e uma chave de fenda no porão. — O porão era um lugar de dar medo, cheio de sombras e teias de aranha por todos os cantos, que cheirava como as profundezas escuras de um lago. O chão de cimento era frio e áspero contra os pés descalços dela. Ela só podia descer até lá se calçasse sapatos, mas a empolgação fora tamanha que ela se esquecera. Cordas, ferramentas de jardinagem enferrujadas e velhos coletes salva-vidas pendiam de vigas de madeira expostas, os ossos desgastados do chalé. Wen gostaria que a casa deles em Cambridge tivesse um porão como aquele. Claro que, depois que eles subiram, o Papai Eric declarou que o porão era perigoso demais e ela não deveria mais ir lá. Wen protestou, mas ele disse que havia muita coisa afiada e enferrujada lá embaixo, coisas que não eram deles e que eles não podiam tocar nem usar. Diante da proibição de ir até o porão, Papai Andrew grunhiu do sofá de dois lugares da sala de estar e disse:

— O Papai Diversão é rígido demais.

Papai Diversão era o apelido, na maior parte das vezes engraçado, para o pai mais preocupado, aquele que era mais rápido em dizer não. Papai Eric, sempre calmo, disse:

— Sério. Você devia ir ver como é lá embaixo. É um perigo de morte.

— Tenho certeza de que deve ser mesmo terrível — disse Papai Andrew. — Falando em perigo! — Então ele puxou Wen em um abraço-surpresa, girou-a e deu-lhe o que ele chamava de “beijo no rosto”: lábios plantados no espaço entre a bochecha e o nariz dela, depois ele esmagou o resto de seu rosto grande no dela, de brincadeira. A barba por fazer a fez sentir cócegas e a arranhou o rosto, e ela, aos gritinhos e risadinhas, se desvencilhou do ataque brincalhão. Saiu correndo pela porta da frente com o frasco de vidro nas mãos, e Papai Andrew gritou:

— Mas a gente precisa obedecer ao Papai Diversão, porque ele nos ama, certo?

Wen gritou:

— Não!

E os seus pais fingiram indignação, enquanto ela fechava a poda atrás de si.

Wen desvia os olhos do frasco e percebe que Leonard está olhando para ela. Ele é maior que um rochedo, e sua cabeça está inclinada de lado, os olhos entreabertos como se estivesse apertando-os por causa do sol forte ou por estar tentando observá-la melhor.

— O que foi? O que você está olhando?

— Desculpe, foi falta de educação minha. Achei que era, sei lá, bonitinho…

— Bonitinho? — Wen cruza os braços na frente do peito.

— Eu quis dizer maneiro. Maneiro! Maneiro que você chame seu pai pelo nome desse jeito. Papai Eric, certo?

Wen suspira.

— Eu tenho dois pais. — Ela mantém os braços cruzados. — Chamo os dois pelo nome pra eles saberem com quem estou falando…

O amigo dela da escola, Rodney, também tem dois pais, mas ele vai se mudar para Brookline naquele verão. Sasha tem duas mães, mas Wen não gosta muito dela; ela é mandona demais. Algumas das outras crianças do bairro e da escola têm apenas um pai ou uma mãe, e outras têm o que se chama de padrasto ou madrasta, ou alguém que eles chamam de companheiro ou companheira da mãe ou do pai, ou alguém que não tem nenhum nome especial. Mas a maioria das crianças que ela conhece tem um pai e uma mãe. Todas as crianças dos programas preferidos dela no Disney Channel também têm um pai e uma mãe. Tem dias que Wen sai dando tapinhas no ombro das crianças, durante o recreio ou no parquinho (mas nunca na escola chinesa), dizendo que tem dois pais, para ver como elas reagem. A maioria das crianças não dá a mínima; algumas, que estão bravas com o pai ou a mãe, dizem que adorariam ter dois pais ou duas mães. Tem outros dias em que ela imagina que todos os sussurros e conversas na sala são sobre ela e que ela gostaria que os professores e tutores do programa de semi-intensivo parassem de lhe fazer perguntas sobre seus pais e de dizerem que isso é tão legal.

— Ah, claro. Faz sentido — diz Leonard.

fim da amostra…


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