Um Clichê de Amor – Livro de Marcelle Oliveira

Baixar PDF Um clichê de amor - Livro de Marcelle Oliveira

Trecho do livro

Um clichê de amor - Livro de Marcelle Oliveira

A formatura havia acontecido no final de semana anterior e, hoje, estava especificamente na escola, para pegar as minhas últimas notas. Era estranho compreender por que infernos a cerimônia de formatura acontecia como um tiro no escuro, para quem estava em recuperação em duas matérias, assim como eu. Não sabia ao certo se receberia o diploma oficial, no final das contas, ou apenas o canudo de camurça simbólico entregue pelo professor de Química/Física que me aterrorizou durante todo o Ensino Médio.

E assim que dou mais dois passos em direção à sala de professores, já posso vislumbrar professor Fernández, junto às duas meninas “nota dez”, em todas as matérias de exata.

— Cora, pode entrar, querida.

Camila e Sofia me encararam com desdém, assim que o professor me convidou gentilmente. As minhas mãos suavam dentro dos bolsos do casaco de moletom, vislumbrando o homem grisalho sentado à sua mesa, com as duas dondocas de decoração ao seu lado. Apesar do dia quente de Verão, era assim que me sentia confortável. Era uma maneira de esconder o que eu tinha de feio no meu corpo.

— Espero ter boas notícias. — suspirei, reticente, ainda encarando as duas garotas ao lado do professor.

Eu não entendia o motivo delas estarem ali, já que poderiam estar em qualquer lugar do planeta, a essas alturas. Era Verão, férias, os seus pais eram podres de rico! Eu juro que estava me esforçando para entender.

Eu estudava na escola mais renomada da capital paulista, apenas porque mamãe era uma das funcionárias da equipe de limpeza, bem como a secretária do lar do diretor Almeida, quando ela terminava os seus afazeres na escola. Mamãe sustentava essa carga horária exaustiva para poder me manter neste colégio, contudo, apesar de todo o seu esforço e boa vontade em traçar novos caminhos na minha vida, eu argumentava com ela o quanto eu não me sentia feliz no Santa Clara.

Sempre fui escarnecida pelos colegas, simplesmente por que nunca vesti as mesmas roupas que as deles e não tinha, muito menos, roteiros de viagens mirabolantes para contar no retorno dos feriados.

Sempre foi tudo muito difícil. No entanto, duas coisas me agradavam no Santa Clara, as aulas de Francês e… Rafael Santoro. O garoto não era apenas lindo, ele fazia questão de reunir toda a beleza e poesia nos seus traços faciais. Não era um rosto padrão capa de revista, ele era mais, ainda mais belo que qualquer homem que ousasse. Os desenhos do seu rosto eram brutos, fortes, mas, ao mesmo tempo, angelicais. As suas sobrancelhas eram naturalmente grossas e expressivas, sobrepostas a duas belas esmeraldas, sim, os seus olhos eram de um verde precioso, altivo. Contudo essas duas raridades nunca cobriram a minha existência, porque, é claro, eu nunca existi para o Santoro.

Merci beaucoup? — estava demorando para que Sofia me apelidasse da expressão francesa “merci bocu”, a qual eu simplesmente odiava.

Isso se dava por que as minhas notas em Francês sempre foram as melhores de toda a classe e, óbvio, toda a minha evidência em alguma merda em que elas não se destacavam, se tornava, para mim, um castigo.

— Sofia e Camila, por favor, não comecem com as suas brincadeirinhas. — professor Fernández entrou em defesa, enquanto as duas se entreolhavam debochadas. — Já está confirmado, eu vou ao encontro da turma, mas agora eu preciso conversar a sós com a Cora.

Encontro da turma?

Os meus olhos lacrimejaram no momento em que ouvi da boca do professor que haveria um encontro de toda a turma para o qual, até agora, eu não havia sido convidada. Na realidade, eu nem ao menos sabia da existência dessa porra de encontro!

— Merci beaucoup, enxugue as suas lágrimas, mas somos trinta e quatro, e no solário da casa dos Santoro cabem apenas trinta passava por mim, com os olhos sempre muito bem maquiados, o perfume envolvente, os cabelos longos e loiros como os de boneca, diferentemente do meu que era quase laranja.

Sofia também não era menos bela, morena, alta, de uma cor de jambo de fazer inveja em qualquer diva de Hollywood. O seu sorriso era perfeito como as teclas de um piano, enquanto eu me odiava todos os dias por ter que usar a merda do aparelho e ter que lidar com os ferimentos constantes na boca.

Ajeito os óculos de grau, olhando profundamente nos olhos daquelas meninas. Eu não queria mostrar a elas o quanto eu me sentia humilhada, excluída, jogada para escanteio tal qual sobras de comida.

Eu não queria dar a elas o prazer das minhas lágrimas.

— Vamos logo, Camila. Rafael já me enviou várias fotos da piscina lotada…

Recebo um tranque no meu ombro esquerdo, quando as duas dondocas finalmente me deixam na companhia do professor de Química e Física. Sinto um mal-estar abrupto por imaginar o tal encontro da turma na casa de Rafael, e isso me entristece. O que me alegra, por um breve instante, é apenas o sorriso amigável do professor. Ele era extremamente querido por toda a turma, por isso foi o nosso paraninfo, na formatura, e, agora, o convidado de honra para a festa na mansão dos Santoro.

— Cora, por favor, não caia na conversa dessas meninas. — assenti, fazendo menção de me sentar na cadeira à sua frente. Fernández pigarrou antes de prosseguir. — Elas são fúteis, insensíveis, a vida não costuma ser generosa com pessoas que agem dessa maneira.

— Mas eu sei o quanto o senhor gosta de todas elas.

O homem de cabelos levemente grisalhos parou, no mesmo instante, de procurar pela minha prova, para me olhar nos olhos.

— Querida, não podemos pagar com a mesma moeda. — umedeci os lábios, pois era como se eu ouvisse à minha própria mãe. — Camila e Sofia ainda são muito jovens, eu acredito que ainda possam vir a amadurecer, se importar com a verdadeira essência das pessoas…

— Eu duvido. — cruzei os braços, categoricamente. — Elas agem assim porque foram criadas dessa maneira. A minha mãe sempre me ensinou a tratar as pessoas como eu gostaria de ser tratada. Empatia, sabe, professor? Vestir o sapato do outro.

Fernández sorriu e envolveu as nossas mãos.

— Camélia é uma fonte de sabedoria, por isso soube criar com tanta maestria uma menina tão adorável.

Sorri contida, abaixando os olhos, deixando a minha timidez me vencer, mais uma vez.

Soltei das mãos do professor e tentei colocar os cachos no
lugar.

— Se não fosse por mamãe, eu juro que não sei o que seria de mim. O meu pai nunca quis saber da minha existência, se afundou no mundo do álcool, deixando a mim, recém-nascida nos braços dela.

Eu era extremamente grata à Dona Camélia. Ela era uma mulher incrível, no sentido mais forte da palavra.

Saímos nós duas sozinhas de Botucatu, ela, ainda muito jovem e inexperiente, com uma bebezinha para criar, simplesmente disposta a conquistar a vida em São Paulo, e o Sr. Almeida, diretor do Santa Clara, foi um verdadeiro anjo da guarda no seu doloroso caminho.

— O estudo, o conhecimento, são apenas complemento, Cora, querida. A sua mãe é uma pessoa sábia, isso é intrínseco a ela. Conhecemos doutores que nunca souberam lidar com a sabedoria. — ele bebeu um pouco de café e prosseguiu. — Por exemplo, os pais de Camila e de Sofia estão fazendo tudo errado, apresentando a elas uma vida frívola e superficial, sem dar a elas a base de que precisam para serem pessoas íntegras, de valor.

— Integridade e valor, o dinheiro não compra. É por isso, professor. — acrescentei, em um fio de voz.

Finalmente, Fernández encontrou as minhas provas, mantendo os papéis virados completamente na sua direção. Era certo que ele me escondia algo grave.

Instantaneamente, a minha boca ressecou.

— Cora, eu não trago notícias boas.

Sinto o coração parar na boca, naquele exato momento. As minhas pernas adormecem, penso na minha mãe o tempo inteiro e na cruel possibilidade de que teria que repetir o terceiro ano.

Mano do céu, a turma anterior é ainda mais asquerosa!

As gêmeas, oh não, as gêmeas ruivas insuportáveis que também me chamam de Merci beaucoup, junto aos engomadinhos que moram nos Jardins…

— Eu fui reprovada, professor? É isso? — pergunto, em cólicas, espalmando as mãos sobre a mesa.

— Infelizmente, sim, querida. — recuo o corpo contra a cadeira em meio a um profundo e audível suspiro. — Sinto muito por, dessa vez, eu não poder aumentar os décimos de que precisava. — Fernández funga, entristecido. — É para o seu bem.

Levanto da cadeira, desnorteada, levando as mãos geladas ao rosto. Choro com todas as minhas forças, como uma criança que ainda não estava livre do seu castigo.

— A minha mãe vai ficar tão decepcionada.

— Eu converso com a Dona Camélia, meu bem. — ele prontamente informa, se levantando da cadeira. — Não se preocupe quanto a isso.

Neste momento, o professor me estica as provas. As duas exibem notas baixas e vergonhosas. E eu odeio ainda mais Química e Física.

— Com licença, professor. — profiro com a voz entrecortada. — Boa festa para o senhor…

— Cora!

Saio correndo da sala de senhor Fernández, querendo me tornar invisível naquele momento, desejando ser apenas um incenso para me desintegrar pouco a pouco e sumir irreversivelmente.

Os meus tênis surrados vibram pelo corredor encerado, perfumado, enquanto sinto uma dor insana envolver todos os meus sentidos. Dobro as provas e guardo-as no bolso, não querendo mais fitá-las, pois as notas vermelhas ardiam os meus olhos.

Observo ao redor e me dou conta de que, definitivamente, eu não pertencia àquele lugar cheio de pompas.

Eu jamais me encaixaria no perfil dos alunos do Santa Clara.

Adentro perturbada o banheiro, abrindo a torneira, sem olhar para os lados. Jogo a água fria no rosto e praguejo quando me dou conta de que havia me esquecido de tirar a porra dos óculos. Jogo-os para o lado, sobre a pia, e choro, molhando todos os cantos do rosto, a nuca, os pulsos, encarando o fracasso desenhado no reflexo do espelho.

Merci beaucoup?

Suspiro profundamente num susto quando ouço àquela voz familiar e irritante. Eu não queria que ninguém me flagrasse nessas condições, muitos menos as venenosas que estudavam na mesma classe que eu.

— Me deixem em paz! — grito, virando-me na direção de Sofia e de Camila.

Sorrio de lado, quando percebo que elas se assustam com o meu grito, a ira desenhada claramente nos meus olhos e na minha voz.


Tags: ,