Trecho do livro
E aqui estamos nós, prontos para mais uma história juntos!
Aqui temos Teseu e Lívia e outros personagens que com certeza vão ganhar seus corações.
Preciso dizer que essa história pode conter algum gatilho. Não trabalho violência aqui, mas situações de abandono, assim como uso de drogas e que podem ser pesadas para aqueles que vivenciaram ou tiveram entes queridos em momentos parecidos.
Essa história nasceu no meu coração muitos anos atrás, quando conheci pessoas que não tinham moradia, ou que haviam perdido tudo por causa das drogas. Pessoas que careciam de um apoio e uma palavra amiga e que muitas vezes morriam por falta de empatia.
Sempre quis escrever algo que mostrasse como nossa visão é limitada, nossos preconceitos são fortes e que naquela pessoa, por quem não damos nada, pode haver a força de um guerreiro, capaz de vencer o mundo.
Espero que se apaixonem por esse enredo lindo e que, ao fi-nal dele, sintam nos seus corações, que tudo é possível, assim como eu creio.
Um forte abraço, Sara Fidélis
Levanto da cadeira, apressado, e recolho meus materiais, jogo o lápis e as canetas dentro do bolso da bermuda que estou usando e pego o caderno nas mãos.
Deixo a sala, doido para chegar em casa, mas logo na porta meus amigos me alcançam.
— Bora dar um peão? — João Vitor me dá um encontrão, enfatizando o convite.
— Hoje não, cara. Minha mãe tá esperando… — falo, pensando na primeira desculpa que vem à cabeça.
Ele ri, porque foi mesmo uma péssima justificativa.
— Deixa de ser besta. Sua mãe nem vai perceber que não chegou ainda, bora lá na pracinha com os caras.
O portão da escola já está aberto, e saímos por ele em um bando, como todos os dias depois da aula.
— Não é minha mãe — admito, encarando o mala do João Vitor —, eu tenho que fazer umas coisas em casa.
Aprendi, tem um tempo, que quando falo a verdade, que vou estudar, viro alvo de zoação, então prefiro dar outras desculpas. Além disso, realmente não gosto de deixar minha mãe sozinha com o novo namorado.
— Vai fazer o quê? — quem pergunta é outro dos moleques, o que chamamos de Pneu, porque ele roda a cidade toda. — O Marquinhos disse que conseguiu um lance pra gente. Mas temos que ir na pracinha.
— Dessa vez eu passo.
A verdade é que apesar de fazer parte da turma e já ter fumado muita maconha com eles, ultimamente os meninos têm levado a coisa pra outro nível e eu prefiro não ir além.
O exemplo claro que eu tenho em casa me mostra que essas merdas não levam ninguém a lugar algum e, se quero chegar onde planejei, preciso de outro meio de transporte, que não as viagens que são oferecidas.
— Certeza que vai pra casa? O Marquinhos chamou umas meninas, acho que vai rolar um fervo brabo, mano — João insiste.
— Brabo sou eu, que vou jantar e dormir. Dá sossego, cara, já falei que não vou.
Despeço-me erguendo o dedo do meio pros três e viro na esquina, seguindo para casa como o planejado.
Pulo duas poças de água suja e subo na calçada desviando de uma bicicleta sem freio. O cara ainda grita me alertando, mas fui mais rápido e escapei por um triz. Continuo meu caminho cantarolando uma música, enquanto batuco com os dedos na capa do caderno.
Estou quase chegando em casa quando vejo minha mãe sair pelo portão. Ela tranca o cadeado pelo lado de fora, sem perceber que estou perto.
— Manhê! — grito, tentando chamar sua atenção, mas ela está rindo de alguma coisa que o babaca do namorado dela falou e não escuta. — Mãe, deixa destrancado — tento outra vez.
Começo a correr para conseguir alcançá-la, mas os dois sobem em uma moto vermelha e desaparecem em segundos. Merda. Estou suado e cansado quando chego diante do portão, o cadeado parece rir da minha cara, porque vou ter que pular o portão se quiser entrar.
Eu devia ter ido com os meninos…
Isso já aconteceu tantas vezes que tenho minhas manhas, os lugares certos para me apoiar e escalar para cima do muro. Coloco a ponta do pé no buraco pequeno da parede cimentada e pego impulso, então ergo a outra perna e consigo me firmar no alto do muro.
De dentro da casa vizinha, dona Marieta me sonda, sentada no sofá enquanto assiste à televisão.
— Chegou, menino? Sua mãe te trancou de novo? Abro um sorriso sem jeito, porque estou sempre pulando sobre o muro. A velha poderia achar que quero bisbilhotar suas coisas se não soubesse como minha mãe é.
— Levou a chave de novo, mas logo ela volta.
A mulher balança a cabeça e seus cabelos brancos sacodem junto, reprovando. Não sei bem se é comigo ou com minha mãe, mas prefiro não perguntar.
Pulo para dentro de casa e, por sorte, encontro a porta destrancada. Entro na sala e jogo o caderno em cima do sofá, bem irritado.
Meus tênis ficam no caminho para o quarto e logo já arranco as meias também, minha parte preferida de chegar em casa é me livrar das roupas.
Pego um short mais solto no amontoado de roupas do lado da cama. Elas estão limpas, só não dobrei ainda e não dá para esperar que minha mãe vá fazer isso.
Visto a bermuda e volto para a sala, olhando o relógio da cozinha no caminho. Já são seis horas, então decido que vou estudar um pouco e esperar minha mãe voltar para comermos juntos.
Abro o caderno e minha prova cai de dentro dele, exibindo meu dez azul em matemática. Se minha mãe voltar sã, vai gostar de ver minha nota, acertei todas as questões na avaliação, mas não tenho muita esperança de mostrar para ela hoje. Talvez amanhã, antes de ir para a aula, eu consiga falar com ela.
Eu devia fazer comida… — penso por um momento. Posso estudar depois que deixar alguma coisa pronta para quando ela voltar. Minha mãe sempre volta da rua doida de fome e, se vier com o Tininho, vai ser pior ainda.
Abandono a ideia de estudar, deixo minhas coisas no sofá e vou pra cozinha ver o que tem pra fazer. No armário acho um resto de arroz e coloco em cima da pia. Abro a geladeira e o congelador para procurar o feijão, mas não tem nada, só gelo e mais gelo.
Na porta, encontro dois ovos. Tininho que se lasque comendo arroz puro, aquele folgado.
Refogo o arroz do jeito que dona Marieta me ensinou, com alho. Apesar da vizinha ser um pé no saco algumas vezes, pelo menos me ensinou a me virar na cozinha, e com isso não passo fome.
Pego a água da pia mesmo e jogo no arroz, ouvindo o chiado quando ela atinge o fundo da panela e sentindo o cheiro bom do tempero.
Tampo a panela e frito os ovos. Quando tudo fica pronto, desligo o fogão e volto para a sala, finalmente para poder estudar um pouco. Minha mãe sempre disse que eu preciso ir para a escola, aprender e ser alguém na vida. Alguém diferente dela. E para dar a nós dois um futuro melhor. Como se pudesse ser muito pior…
Mas é o que eu quero, sair desse lugar ferrado, levar minha mãe para longe do Tininho e das cópias dele e também das merdas que ela vive usando. Tenho certeza de que quando formos só nós dois, em outro lugar, ela vai melhorar.
Vai ficar mais em casa, feliz. Ela sempre diz que só usa essas paradas porque não tem nada de bom na vida, porque seus dias são tristes. Mas, se nós conseguirmos, se eu me formar e trabalhar duro, vou comprar uma casa para nós dois em outro canto, um carrão importado… Ela vai ter muitos motivos pra ficar alegre sem precisar se drogar.
Fecho os olhos por um instante, imaginando todas as coisas que quero fazer. Vou ser professor… Não, apesar de achar que ser professor é uma carreira muito digna, sei que ainda paga mal e preciso de uma profissão que mude de fato a minha, ou melhor, a nossa vida. Vou ser arquiteto ou um empresário fodido e aí vou comprar um Porsche ou uma Ferrari.
Um Legacy. Fechando os olhos quase consigo me visualizar dentro dele, minha mãe do meu lado, bonita. Usando um daqueles vestidos caros e limpa, saudável e nós dois cortando o céu.
— Voltei! — A voz dela me alcança ao mesmo tempo que a porta da sala bate na parede, fazendo um barulho alto, me arrancando do sonho e trazendo de volta para a realidade.
— Que susto, mãe… — Ergo os olhos e a vejo entrar, seguida pelo Tininho.
— E aí moleque?
Continua…