Trecho do livro
Dedicatória
Para aqueles que ousaram amar a
mesma pessoa por uma vida e
além dela.
Marcelo
O som estridente do despertador me arranca do melhor sonho da minha vida. Solto um gemido de frustração e afundo a cabeça no travesseiro, na esperança de voltar a sonhar. É claro que isso nunca dá certo, mas meu corpo não parece perceber que era apenas um sonho. Ainda sinto o cheiro dela, odeio não saber qual é o perfume que ela usa, mas o cheiro ainda está no meu nariz.
Começo a imaginar, mas agora estou acordado e no controle de tudo. Lembro-me de ontem, quando Ema se abaixou para pegar seu chocolate preferido na máquina que tem no corredor da faculdade. Um pedaço muito pequeno de pele ficou exposta, entre sua camisa e a saia que estava usando. Ela se curvou para frente e estendeu o braço, deixando dois centímetros de pele aparecer. Não consegui desviar os olhos das duas covinhas de vênus, até ela estar em pé novamente. Se ela ao menos sonhasse o que passou na minha cabeça, comeria meu fígado.
Deslizo o dedo sobre a tela do celular para desligar novamente o alarme e me sento na cama. Caramba hoje é quarta feira, não posso me atrasar. Às quartas são os melhores dias, alguém diria que é porque está no meio da semana ou porque quase nunca chove às quartas-feiras. Talvez porque eles servem açaí na cantina da faculdade. Ou pelo fato de ter Introdução à Ciência do Direito com a professora, Cíntia, em dois períodos seguidos. Ela é simplesmente linda e parece ter a nossa idade. Sem mencionar que faz metade dos alunos suspirarem quando entra e não estou falando só dos caras.
Mas as quartas são especiais para mim, por um único motivo. Ema senta-se ao meu lado por três longos períodos. É claro que eu adoro açaí de café da manhã, também gosto das pernas da professora Cíntia, mas nada se compara ao perfume de Ema invadindo meu espaço.
Tomo um banho rápido, visto jeans e uma jaqueta, é outono e o frio costuma ser bem intenso pela manhã. Pego minha mo-chila e jogo no banco detrás do meu carro.
— Não vai tomar café? — minha mãe pergunta.
Está vestindo um roupão, seus cabelos estão erguidos e bagunçados. Ela fica me olhando da porta da garagem com os braços cruzados, com frio. Dou dois passos até ela e beijo sua testa.
— Quarta-feira, mãe. Volta para cama, está frio.
— Ah, já é quarta-feira? — ela pergunta, confusa, e sorrio.
Fecho a porta do carro e abro a portão da garagem pelo controle, balançando a mão para ela. Minha mãe passa a mão sobre o cabelo rebelde e depois me dá tchau com um sorriso sonolento. Manobro o carro e ligo o ar-condicionado, o vento está frio lá fora. Sigo pela pista da direita e entro na perimetral Norte, parando no primeiro semáforo. Minhas mãos batem no volante formando um ritmo. As calçadas estão cobertas de folhas coloridas, pesadas por causa do ar úmido. Crianças caminham com seus pais, escorregando nas folhas mortas com suas mochilas grandes demais para corpos tão pequenos.
É por isso que gosto das quartas-feiras, nem os três semáforos com distância de cem metros entre si, tiram a minha paz. É bom olhar para o mundo e ver a vida lá fora, sair do automático e reconhecer rostos desconhecidos. Eu encontro essas pessoas todos os dias, mas não as conheço de verdade. Na maioria das vezes, nem percebo que estão passando por mim, exceto nas quartas.
O trânsito flui e sigo na pista da direita, é um horário em que as pessoas estão com pressa e costuma acontecer muitos acidentes. Eu tenho algumas regras na minha vida que nunca quebro.
Nunca dirigir acima do limite de velocidade.
Nunca dirigir após beber.
E nunca, nunca encostar em Emanuela Weber.
Bom, não é um “nunca” eterno, é mais como um nunca até eu criar juízo. É um nunca até eu curtir a vida de solteiro, estar formado e ter a certeza de que jamais faria com ela o que meu pai fez com minha mãe. Dou uma risada baixa ao imaginar meu futuro todo planejado, Emanuela não faz a menor ideia que faz parte dele. Muito menos, deixo margens na minha mente, para cogitar a possibilidade de ela simplesmente não me querer.
Ligo o som do carro, começa a tocar Synpathy For The Devil do Rolling Stones. Tamborilo os dedos no volante, enquanto os carros passam à minha esquerda, seguindo o fluxo da vida agitada. Vinte minutos depois, estaciono na vaga mais próxima do bloco onde acontece o curso de Direito e sigo apressado para o refeitório. Vanessa acena para mim de onde está sentada e eu aceno de volta, indo para a cantina comprar meu café da manhã.
Quando me viro, meus olhos vão direto para a mesa onde Ema costuma se sentar. Ela está com uma meia calça grossa e uma saia justa até os joelhos, um sobretudo cinturado que desce quase na mesma altura da saia. Seus cabelos fartos estão soltos, presos apenas por um grampo do lado esquerdo da cabeça. Ela gesticula para Jéssica sentada à sua frente, enquanto dá algumas colheradas na tigela de açaí.
E sempre assim que o melhor dia da semana começa, comigo sonhando com ela, depois analisando a roupa que escolheu usar enquanto espero Nicole trazer meu açaí. Sorrio para Nicole quando ela me chama com sua voz aveludada e sorri de volta. Vou sem pressa até o caixa para pagar e aproveito para olhar para Ema de outro ângulo. Minha mãe diz que tenho uma alma velha, provavelmente sou o único cara na minha idade que gosta de rotina.
Agradeço a mãe de Nicole, após ela me devolver o troco e sigo para mesa onde Vanessa me espera. Ela se debruça sobre a mesa e me dá um beijo demorado. Vanessa é uma garota legal, nosso relacionamento é fácil. Eu não a cobro, nem ela me cobra. Saímos desde o ensino médio, mas não usamos rótulos. Ela sabe que saio com outras garotas quando não está comigo e eu nunca pergunto o que ela faz nesses dias que resolve tirar folga da minha companhia. Nunca vamos além de encontros esporádicos fora da faculdade, nunca apresentamos parentes e nossas redes sociais permanecem como solteiros. Eu gosto assim, ela também e tudo parece perfeito.
— Ah, meus Deus! Vou ganhar a bolsa nova da Gucci do meu irmão, não acredito — ela diz, radiante, enquanto olha para o celular e vira a tela para me mostrar.
Sorrio um pouco sem graça, ela praticamente gritou no meio do refeitório. Vejo Ema olhando na nossa direção pela visão periférica e olho de volta. Ema desvia o olhar rápido e o canto da minha boca se ergue. Suas bochechas ficam vermelhas enquanto diminui o tom da voz e passa a cochichar com sua amiga.
Estou na metade da tigela de açaí quando ela começa a juntar suas coisas, ciente de que estou olhando. Coloca uma alça da bolsa sobre o ombro e abraça um livro antes de levantar-se. Olho para o meu relógio e vejo que está na hora. Elas passam perto da nossa mesa ao sair no corredor e eu respiro, puxando o ar. Vanessa ainda está focada no celular, olhando cada detalhe da bolsa no site da loja.
— Eu vou entrar — digo, dando um beijo rápido em sua bochecha.
— Tá bom, acho que vou matar essa aula. Não saio daqui até ter certeza de que é esse modelo que eu quero.
Quando ela termina de falar, já estou me afastando da mesa. Sigo a passos largos até ficar atrás de Ema, respirando o perfume de pele limpa e o cheiro dos seus cabelos. Tudo se mistura perfeitamente na minha cabeça, enquanto toca Cry Baby de Janis Joplin no fone de ouvido. Elas param bruscamente na porta da sala e eu esbarro em Ema. Ela se vira para me olhar.
— Desculpe — digo, olhando em seus olhos e ela bufa.
Ofereço o meu melhor sorriso e ela abaixa a cabeça, saindo da minha frente. Passo por elas e entro na sala, me sento e coloco a mochila pendurada na cadeira. Sempre escolho a primeira mesa, mas às quartas, eu puxo minha mesa apenas alguns centímetros para trás. Só para poder ver o perfil de Ema enquanto olho para o quadro.
Não demora para ela se despedir de Jéssica e entrar na sala. Ainda é cedo e somos os únicos aqui dentro. Ela olha para mim, apenas por alguns segundos, antes de voltar sua atenção para a bolsa.
— Temos prova hoje, no segundo período. Você estudou? —pergunta, ainda sem olhar para mim.
— Não, consegui pegar a matéria durante as aulas — digo, com um meio sorriso, sei que isso vai irritá-la.
Ema revira os olhos. Eu adoro rotina, porque simplesmente sei o que esperar das pessoas. Desde a primeira série que Ema me pergunta se estudei antes das provas e eu sempre respondo que não. Então vejo seus olhos se revirando, sua cabeça balançando em consternação, mas no final do movimento, sempre vejo o canto da sua boca erguer.
— Você decidiu se vai acampar no final de semana? — pergunto, ansioso.
Ela balança a cabeça negando.
— Ainda não sei, Jéssica não quer ir. Está com dificuldade em uma matéria e quer estudar.
— Se decidirem ir, posso armar a barraca para vocês e meu carro tem vaga — digo e ela ergue a cabeça para me olhar.
— Eu sei armar minha própria barraca e não preciso de carona — diz, na defensiva.
— Tá bom, só ofereci para o caso de resolverem beber. Vou ser o motorista, então não vou beber.
Ela parece relaxar um pouco os ombros.
—A Vanessa não vai, de novo? — pergunta e eu balanço a cabeça negando.
— Lugares que trocam wi-fi por mosquitos não é bem a praia dela.
Ela sorri sem graça.
— Vou falar com a Jéssica na sexta, se ela mudar de ideia, eu te aviso. Talvez eu aceite a carona, vai ser bom beber um pouco.
— Vou ficar feliz se você for, o Gabriel sempre bebe demais e nunca consegue pescar. Vou acabar sem ter com quem competir pelo maior peixe.
Ela sorri.
— Diz para ele levar um colete salva-vidas desta vez, não vou ficar de olho nele o tempo todo.
— Comprei boias de braço, se não for, vai perder.
Ela sorri novamente, desta vez mostrando seu sorriso largo, com todos seus dentes aparecendo. É sempre uma luta ver sua boca enorme se abrindo sem poder sentir seu gosto.
— Se eu não for, bate uma foto — diz e eu nego.
— Sem fotos, o que acontece na cascata, fica na cascata.
Ema assente.
O acampamento acontece no final de cada semestre, nos reunimos com a turma do ensino médio. Alguns estão na mesma faculdade, apenas em cursos diferentes. Outros foram para outras universidades, mas sempre nos reunimos no fim de cada semestre para acampar.
Não somos muitos e a cada semestre que passa diminui a quantidade. Somos adultos agora e nem sempre é fácil largar os compromissos para relaxar. Mas ao menos tentamos nos manter unidos e, é sempre muito bom.
Quando a ideia surgiu, fiquei surpreso ao ver que Ema havia aceitado o convite. Ela sempre foi muito reservada, mas na época Jéssica estava afim do Gabriel e acabou arrastando-a para o acampamento. Elas se divertiram e foi bom vê-la mais solta, aproveitando, estar perto da natureza a deixa feliz. Desde então, ela sempre vai, este será nosso sexto acampamento.
Os alunos começam a entrar e Ema vira-se para frente. A aula começa e me desligo dela para prestar atenção. Quando a aula termina, ela levanta-se e vai até a porta. Ema sai da sala e Vanessa entra com um sorrisinho de quem está muito feliz.
— Parece que o teu irmão comprou mesmo a bolsa — digo, achando graça da sua empolgação.
— Comprou, eu sou a melhor irmã do mundo, afinal. Por que ele não compraria?
Dou de ombros. Talvez porque a bolsa custe o equivalente a três salários, de muitas famílias por aí. Mas não posso julgá-la, não sou o melhor exemplo de pessoa e tenho minhas futilidades caras. As pessoas sempre dizem por aí que eu não presto, mas desconhecem meus objetivos, eu tenho planos. Puxo Vanessa para o meu colo e a beijo, enquanto todos estão lá fora.
…