Arthur Hendeston é um homem misterioso, dono de uma grande fortuna, ele vive recluso no grande castelo de Dover. Suas raras aparições na sociedade londrina são sempre motivo de muita especulação. O viúvo mais cobiçado da Inglaterra vai descobrir que seus segredos não estão seguros, no momento que conhece Catherine Arundel. Catherine frequenta a alta sociedade, uma jovem inteligente, irresistível e totalmente falida. Arthur se vê preso em um cuidadoso plano para destruir sua vida.Uma história protagonizada pelos vilões.Cuidado para não se apaixonar!
Data da publicação: 13 janeiro 2021; Páginas: 309 páginas; ASIN: B08SJ6FDKP
Trecho do livro
Dizem que que todo ser humano possui um lado sombrio, uma mancha na alma corroendo pedaço por pedaço do frágil caráter. A simbiose de duas criaturas perfeitas, coexistindo no mesmo mecanismo de um ser.
Pessoas boas também possuem escuridão, apenas conseguem guardá-la por mais tempo. Quando o sino da igreja toca ou quando as mãos de quem nos rodeiam nos aplaudem, é nesse momento que permitimos acariciar nosso ego e a podridão mais oculta. Como um pai orgulhoso do feito do filho, dando-lhe tapinhas no ombro.
Por luxúria, vaidade ou avareza, não importa. Todos nós somos levados a confrontar nossa verdadeira natureza. Alguns nunca mais retornam da escuridão.
Embora a minha frágil sabedoria feminina me permita observar. Eu não estava preparada para entender a verdade sobre o mal. Para mim, sempre foi uma questão biológica. Um defeito no complexo mecanismo, uma falha nas sequências, um lapso no exato momento de gerar outra vida. Talvez porque não queria assumir que Deus havia falhado ao criar a sua imagem.
Mas eu estava prestes a descobrir o quanto estava errada. Eu conheci a escuridão ainda muito jovem e tive um encontro com o mal. De uma forma impossível, ele caminha livremente sob o sol, coberto por um tule de onde não é permitido enxergar. Nunca foi biológico e, sim, sobrenatural.
Olho para o vestido branco sobre a cama, ele é bonito, embora tenha saído de moda há alguns meses, ainda é meu preferido.
— Vista o rosa, vai destacar seus cabelos, querida. — Mamãe o entrega para a criada e eu assinto.
O cadarço do espartilho é puxado com força, minhas costelas se acomodam umas sobre as outras, seguro o ar dentro dos meus pulmões, na esperança de restar um espaço para eles. Gotículas de suor começam a se formar na minha testa, me apoio na penteadeira, fazendo o bálsamo de carmine tilintar.
— Mais apertado, Nancy — minha mãe ralha com a criada.
— Mas, senhora, assim ela não vai conseguir respirar — Nancy diz o que não tenho disposição em dizer.
Gosto de Nancy, ela nunca se dobrou. Talvez a leve comigo para o inferno, ela se daria bem lá, está acostumada a lidar com demônios.
— Mulheres não precisam respirar e, sim, de uma cintura fina.
Nancy bufa e eu até riria, se conseguisse. Ela apoia o joelho na curvatura da minha lombar e puxa novamente. Solto um gemido, fingindo dor.
— Me desculpe, senhorita — Nancy sussurra em meu ouvido, enquanto finaliza o laço do espartilho.
O tecido de tafetá desliza sobre meu corpo, o último remanescente de nossos estoques importados. A costureira o modelou em troca de um par de brincos de safira. Esta é minha última temporada, não sobrou mais nada além de um título e o meu dote. Meu pai não é um homem irresponsável, não perdeu nossa fortuna em uma mesa de bilhar. Minha mãe costuma dizer que ele apenas perdeu o tino para os negócios.
“Se ao menos tivesse um filho homem para o aconselhar, não teria investido todo nosso dinheiro em uma ferrovia que nunca poderá ser construída.”
Se tivesse disposição para expressar o que penso, poderia ter dito a ele o quanto era arriscado investir em um negócio único. Nada teria mudado, mas eu deveria ter dito, mesmo assim. Eu deveria dizer muitas coisas, deveria me importar com o fato de vestir rosa e ficar parecendo o muffin da casa de chá. Reclamar que a modista não forrou as costuras do vestido e que, por isso, ele me causa coceira. Deveria fingir um desmaio cada vez que minha mãe me obriga a usar o espartilho tão apertado.
Eu deveria ser como Nancy, não me dobrar. Houve um tempo em que as respostas estavam sempre na ponta da minha língua. O meu pai costumava dizer que eu seria uma alienista importante, que estudaria a mente das pessoas e que nunca teria de me casar por obrigação. Era o mais perto que ele podia sonhar em sentir orgulho, sem a dádiva de um filho homem.
Mas eu apenas sei assentir e aceitar tudo que me é cuidadosamente destinado.
— Olhe para você. Esplêndida! Lorde Velton não vai tirar os olhos de você, querida.
Vejo Nancy revirar os olhos.
— Com sorte, ele terá um infarto na noite de núpcias e lhe deixará rica — Nancy cochicha em meu ouvido. enquanto aplica pequenas batidinhas do bálsamo de carmine nos meus lábios.
Um pequeno músculo ao redor dos meus olhos se ergue sutilmente.
— Escrava abusada — minha mãe resmunga, enquanto se retira do quarto sob o pretexto de esperar a carruagem.
Olho para Nancy e pisco três vezes, nosso código para um pedido de desculpas. Ela sorri. Embora Nancy tenha sido escravizada no passado, sua condição havia mudado há uns bons anos. Não existem mais pessoas escravizadas na Inglaterra, pelo menos, não na teoria. Um jogo político que alimenta o que estão chamando de revolução industrial, com mão de obra barata e mãos aristocratas livres de sangue.
Mas eu sou uma dama e “damas não se importam com pessoas escravizadas”. Damas não se importam com nada além de sacudirem seus leques e baterem seus cílios para lordes ricos.
Nancy segura meus ombros e me vira para o espelho. Desvio o olhar, não gosto do que vejo, é um lembrete dolorido demais.
— Você está linda, um desperdício para aquele velho. Se eu fosse você, bateria o pé e diria não. — Seguro sua mão sobre meu ombro e solto um muxoxo.
— Sabe que não posso fazer isso.
— Não pode ou não quer? — Ela me encara com ferocidade.
— Não quero.
— Menina tola, eu fingiria tantos desmaios que ele desistiria de mim, achando que eu estava à beira da morte. Se ele julgar que você não é saudável para carregar o herdeiro dele, te recusará.
Suspiro, buscando ar, o máximo que meus pulmões conseguem. Escuto o barulho de uma carruagem e Nancy afasta as cortinas para olhar.
— Veja só, se não é o seu príncipe ancião em sua carruagem revestida de ouro.
— Pode não ser mais escravizada, mas continua abusada — digo e Nancy sorri. Seu sorriso dura pouco, logo seus olhos ficam sérios e complacentes.
— Precisa ir, senhorita.
Cada degrau que desço faz ranger minhas costelas, minhas mãos suam frio umedecendo as luvas. Ainda do alto da escadaria vejo lorde Velton parado no saguão, sua postura ereta é forçada, seu rosto marcado e carrancudo compõe uma criatura singular.
Minha mãe abre um sorriso satisfeito, enquanto meu pai desvia os olhos. Ele se culpa por ter que vender sua única filha, mas compreendo sua motivação. Sinto vontade de lhe dizer que não há necessidade de sofrer por mim, já morri há muito tempo. Eu não temo lorde Velton, nem qualquer outro homem que possa ser desprezível como ele.
— Lorde Velton. — Faço uma mesura ao me aproximar.
Seus olhos caem sobre mim por apenas alguns segundos, antes de ele resmungar, pedindo para que todos se dirijam à carruagem.
Nós o seguimos, meu pai auxilia minha mãe para que se acomode, logo depois estende a mão para mim. Não demora para que estejamos sacolejando rumo ao maior e mais luxuoso baile da temporada. O baile dos McCartney.
George McCartney é o segundo filho de um marquês, embora seja considerado uma criatura excêntrica, dado a sua persistência em recusar um título que lhe fora por diversas vezes oferecido e por suas reuniões secretas. Ele havia herdado o gênio estimável de sua mãe e caíra nas graças da rainha.
Não era incomum avistarem carruagens reais frequentando sua casa, em festas íntimas. O que contribuía para que seus convites ao baile de temporada se tornassem os mais requisitados. Dizem que o visconde de Rothermere adoeceu próximo a um de seus bailes e, impossibilitado de ir, vendeu seu convite ao irmão, por dez xelins.
Alfred Harmsworth possuía uma filha na idade de se casar e viu naquele convite a oportunidade de lhe arrumar um belo partido. Lady Emitia Harmsworth saiu de casa sorridente, no alto dos seus dezesseis anos, ela era a flor da temporada. Eu a vi naquela noite, com suas bochechas rosadas e cheias de vida. Nunca mais foi a mesma depois do baile, foi encontrada vagando pelos jardins sem saber o próprio nome. Os médicos dizem que lady Harmsworth adoeceu, lhe deram o diagnóstico de histeria, mas eu sei que ela não é louca.
A carruagem para diante da McCartney House, controlo meus batimentos cardíacos enquanto a sombra imponente da casa se projeta sobre nós, nos deixando na escuridão. As primeiras estrelas ficam ainda mais visíveis daqui, como se a casa roubasse a pouca luz que resta, fazendo-as reinar solitárias no céu.
Caminhamos para a entrada principal, sobre pedrinhas brancas e leitosas. Os lampiões a gás presos em estacas decoradas com flores, iluminam o caminho, produzindo um som de chamas relutantes contra o vento.
— Que lugar magnífico — minha mãe diz, maravilhada, em um suspiro, enquanto entrega o bilhete para o homem que nos recepciona.
— Visconde e viscondessa de Canterbury, sua filha, lady Catherine, acompanhados por Sir Velton.
O lugar está iluminado, decorado com tulipas lilases, ramalhetes de não-me-esqueças e botões de rosa champanhe. Estátuas de mármore branco em tamanho real estão dispostas junto a obras de arte e se espalham por todo salão da recepção.
— Uma extravagância, como sempre — meu pai murmura.
Recebo um cartão com a programação da noite e o penduro em meu leque, meus olhos percorrem o lugar. Há tantos rostos conhecidos, alguns me olham com pena. Posso ouvir os burburinhos lamentando a minha triste natureza. Comentários que fazem questão que eu ouça.
“Tão bela e com a juventude perdida.”
“Dez mil libras esterlinas era o dote dela, veja o que a imprudência de um pai pode fazer.”
“Coitadinha, cabe a ela agora o fardo de salvar a família.”
“Ela vai se casar com aquele velho asqueroso, sinto pena dela.”
“Sempre tão orgulhosa, agora veja como se tornou digna de pena.”