Trecho do livro
Dedico a todos aos que escolheram salvar vidas, inclusive a minha.
Calma, Priscila, digo para mim mesma.
Estou no banheiro do escritório dos advogados, que é um espaço amplo, claro e branco. Só de observar essas paredes claras imagino uma grande tela disponível para extravasar toda a frustração que estou sentindo.
Ai, meu Deus! Só de pensar as lágrimas nublam meus olhos na minha tentativa falha de me maquiar pela enésima vez. O lápis está borrado, o rímel escorreu, mas preciso fazer jus às roupas — um pouco convencionais para meu estilo — que comprei no cartão de crédito de forma parcelada.
Hoje eu tenho que sair por cima, por isso estou dentro de uma saia lápis preta acrescido de um terninho vermelho com uma blusa branca decorada com cerejinhas, finalizando com meia-calça cor de pele e saltos altos de verniz na cor branca. Não foi nada barato, mas é…
— Senhora Priscila. Estão chamando. — Escuto a voz do meu advogado, Heitor, do outro lado da porta.
— Estou quase saindo — respondo.
Senhora! Que ironia. Antes do fim da tarde de hoje estarei divorciada de um homem do qual nunca imaginei me separar. Alguém me explica como um amor adolescente de ditas almas gêmeas pode acabar desse jeito? Porque eu não sei.
Olho para cima tentando colocar para dentro as lágrimas que retornaram, mas não adianta nada quando elas escorrem pelos lados do meu rosto. Seco tudo com cuidado, conseguindo finalmente deixar a minha aparência mais voltada para o apresentável.
Assim que abro a porta, encontro meu advogado. Ele está com a cara branca e grande fechada, num semblante que pode ser descrito como… perigoso. Ainda mais sendo um homem de quase dois metros de altura e grande corpulência.
— Estamos atrasados — esclarece, olhando o relógio em seu pulso.
Movimento a cabeça concordando e deixando que ele vá à frente enquanto manco com os saltos gigantes que maceram os dedos dos meus pés. Porém, quando ele percebe a minha lentidão, para e olha na minha direção. Gesticulo para que siga em frente enquanto observo a decoração do grande escritório da J H Advogados.
Melhor dizendo: a ausência disto. O escritório é tão neutro que mais se assemelha a um hospital. É tudo tão branco e cinza que a ausência de cores me deixa ainda mais tensa. A situação só piora quando Heitor coloca a mão na maçaneta e olha para mim.
Por Deus, tomara que tenha acontecido um engarrafamento, todos estejam atrasados e que eu possa ficar quietinha num canto, só respondendo quando for necessário.
Porém, quando ele abre a porta, percebo que minhas preces não foram ouvidas. Ao menos a plateia é composta de somente três pessoas. Uma secretária bem vestida carregando uma bandeja de café, um homem de terno, idoso e magro, que muito se assemelha ao meu advogado nas vestes, e o seu cliente, que se chama Leonardo Xavier. Meu futuro ex-marido.
Dois meses. Esse é o tempo em que ficamos sem nos ver. A saudade é tão grande que a minha vontade é ir do outro lado da mesa e beijá-lo como fazíamos quando jovens. Na época em que os nossos problemas eram simples e tudo se resolvia com facilidade.
— Pode se sentar, senhora — avisa meu advogado, que entrou na frente puxando uma cadeira para mim. De frente a Leonardo.
Respiro fundo tentando esquecer o que estou passando e caminho lentamente para a cadeira, ainda me xingando pela compra dos enormes sapatos.
— Boa tarde — cumprimento os dois enquanto Heitor se senta ao meu lado. — Desculpe o atraso. Leonardo dá um sorriso de lado, mas seu semblante mostra pesar. Não consigo identificar se foi por vergonha de ter uma esposa que nunca se adaptou à sua vida de médico ou arrependimento de ter se casado aos dezoito anos com a namorada de escola.
Depois de dez anos de casamento, ainda não consigo saber o que aconteceu. Ainda mais quando lembro de que não houve traição. Simplesmente havia acabado a paixão. O desejo findou e o amor esfriou.
As lembranças são tristes, mas é um fato de que depois de sua formatura em medicina, nos tornamos dois estranhos que moravam na mesma casa. Ou melhor, eu morava sozinha, enquanto meu marido aparecia nos intervalos dos plantões. A “Esposa Medicina” tomou meu espaço, deixando-me somente para amar as telas e as tintas acrílicas.
— Já que todos estamos aqui, vamos aos termos do divórcio — começa o advogado de Leonardo, entregando os papéis para Heitor.
Divórcio. Essa palavra martela na minha mente desde o momento em que recebi a carta do oficial de justiça. Depois que Leonardo saiu de casa, eu imaginava que isso poderia acontecer. Porém, o meu desejo era de que tivéssemos uma conversa franca, tentássemos uma terapia de casal e tudo que fosse possível para evitar chegar a este ponto. Mas infelizmente não foi assim, e por isso estamos aqui.
— Aqui diz que Priscila da Silva Alvarenga Xavier retornará ao nome de solteira — lê meu advogado, Heitor. — Como não há bens a partilhar ou filhos, com a assinatura de ambos, até o fim da semana sai a certidão de averbação.
Filhos. Assunto complicado no nosso relacionamento. Eu sempre quis ter uns dois, no mínimo, mas Leonardo sempre pediu para que adiássemos. Com os anos passando e as crises aumentando, até fico feliz de não ter uma criança no meio dessa situação.
— A senhora assina aqui — fala o advogado ao me entregar o papel e indicar com a caneta o lugar.
A folha branca timbrada pelo escritório dos advogados é o marco do fim da minha relação de dez anos com Leonardo. Seguro a caneta em minha mão e a sinto tremer devido ao turbilhão dentro de mim. Tento ler o que está escrito, mas minha visão embaça involuntariamente. Eu olho para frente e nossos olhos se cruzam. Seus olhos castanhos, cabelos loiros escuros e compridos, e barba aparada e montada num rosto másculo pertencem ao homem que ainda possui meu coração.
Como eu sou fraca… Se pudesse, eu gritava dizendo que não quero assinar isso e que ainda há chance para nós dois, mas… o melhor a se fazer é aceitar. Então, volto meus olhos para a folha deixando uma lágrima molhar o papel enquanto assino, depois de tanto tempo, o meu nome de solteira.
Assim que o devolvo para Heitor, pego minha bolsa, olhando para Leonardo mais uma vez, e vou embora tropeçando nos meus pés.
Saio do escritório com os sapatos nas mãos, entro no carro emprestado e desabo em lágrimas por tudo que aconteceu. A minha vontade é de sumir ou morrer até que toda essa tristeza tenha fim.
Porém, enquanto tento conter meus soluços, meu telefone toca e o atendo com a voz embargada.
— Oi, Pri. Boa tarde. É o Flávio. Lembra de mim?
Fungo para limpar as lágrimas e tento recordar-me desse homem. Quando iria avisar que não é um bom momento, ele continua.
— Eu sou da galeria de artes Xippas.
— O que fica na França? — pergunto, ainda soluçando. Ouço-o rir. — Isso mesmo. É sobre isso que queria te falar. Percebo que sua voz está um pouco alterada. Você quer conversar outra hora? Não mais, o que desejo é saber o motivo da chamada.
— Não, pode falar.
— Que bom, Priscila. A questão é que o pessoal daqui gostou tanto do seu trabalho que estão oferendo um estágio remunerado. Eu sei que é repentino, ainda mais que…
— Eu quero! — o interrompo, convicta, sem pensar duas vezes.
— Tem certeza? Você pode conversar com seu marido… Só de ele falar sobre isso, um sorriso amarelo surge em meus lábios. Porém, eu preciso mais do que nunca ficar longe daqui. Tenho que rever a minha vida sozinha.
— Não precisa se preocupar com isso — respondo. —Quando posso ir para a França?
Sobre o autor: Carla Arine – Autora, administradora, atriz, romancista, compositora, poetisa carioca. Desde criança, ama as artes, fez teatro e escreveu roteiros teatrais na adolescência. Abraçou o mundo da escrita dramática em 2018, lançando seu primeiro livro de comédia romântica na plataforma Wattpad. Atualmente, possui quatro publicações no Amazon e está em produção de novas obras. Ela reside com sua mãe na Região dos Lagos do Rio de Janeiro. Trabalha como servidora pública municipal em Rio das Ostras.