Trecho do livro
Capítulo I
Julia
Acordo assustada com o som do despertador. Todo santo dia é a mesma coisa, basta o apito insistente começar para que eu me sente na cama, com o coração aos pulos. Definitivamente eu não estou pronta para mais um dia de trabalho.
Principalmente quando esse dia será inteiramente na companhia dele, meu chefe.
“Calma, Julia” digo para mim mesma na tentativa inútil de encontrar um pouco de paz no meu coração. Respiro fundo e começo a entoar meu mantra matinal.
“Ele é um babaca.
Você é uma ótima profissional.
Tudo vai dar certo.
Ele é gostoso demais.”
Opa! Essa última parte é verdade, mas não deveria estar no meio do meu mantra de tranquilidade.
Com um suspiro resignado, jogo o lençol para o lado e me espreguiço, olhando a paisagem pela janela. E por paisagem, quero dizer o prédio ao lado do meu. Com o salário miserável que ganho, tudo que consegui arrumar foi uma quitinete em um prédio simples, porém de boa reputação na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Mas isso já é melhor do que o que eu tinha antes — um quarto, que dividia com as minhas irmãs, na casa dos meus pais. Minhas três irmãs, diga-se de passagem. Não era nada agradável, eu não tinha privacidade e, uma vez ou outra, uma delas roubava minhas roupas e meus cosméticos. Então, sem sombra de dúvidas, essa quitinete é a melhor definição de liberdade e paraíso que eu posso esperar.
O alarme do meu celular me lembra que está na hora de tomar minhas vitaminas e correr para o chuveiro. Apesar do salário baixo, eu não posso me dar o luxo de perder o emprego, pois isso significaria voltar para a casa dos meus pais e para todo o meu tormento. Jamais vou permitir que isso aconteça, mesmo que tenha que enfrentar o Vinicius todos os dias, vinte e quatro horas por dia.
Vinicius Barros é o nome do meu chefe, meu demônio particular. Juro para vocês que eu nunca fiz nada de errado, não levanto a voz, não deixo furos ou qualquer outra encrenca que você pode estar imaginando que sou capaz de fazer. Ah, porque sou mesmo encrenqueira, mas tenho muito juízo e meu trabalho é, no mínimo, impecável.
Mesmo assim esse homem sempre consegue encontrar algo para reclamar, e até mesmo rebaixar a qualidade do meu serviço. Acreditem, eu tenho uma autoestima bem trabalhada, sei das minhas qualidades e até — preciso confessar — dos meus defeitos, mas toda vez que ele abre aquela boca gostosa, de lábios grossos e dentes perfeitamente brancos e alinhados, todas as palavras que saem me ferem profundamente.
Não, gente! Juro que não sou apaixonada por ele, nunca sequer deixei que esse pensamento libidinoso passasse pela minha cabeça. Acontece que ele tem um poder inquestionável sobre mim e isso eu não posso negar. Talvez sejam seus olhos azuis, que brilham perigosamente quando ele está irritado, ou, quem sabe, seu lábio inferior carnudo e convidativo. Tudo bem, o corpo dele ajuda muito e eu tenho que confessar que me peguei várias vezes admirando a bunda de Vinicius quando ele ia caminhando na minha frente. E o peito, sem falar nas coxas e… Melhor parar por aqui.
Depois de jogar uma água no corpo, penteio os cabelos castanhos com cuidado e prendo-os em um rabo de cavalo firme, que resista ao empurra-empurra do metrô lotado. A viagem até Copacabana é longa e o metrô é a minha melhor opção. Me olho demoradamente no espelho enquanto passo a maquiagem, meus olhos castanhos sendo suavemente realçados pela sombra clarinha e as maçãs do rosto ficando em evidência quando aplico o blush rosado de forma sutil. Fico em dúvida entre um batom acobreado e um alaranjado, mas como ainda tenho que tomar café da manhã decido colocar os dois na bolsa.
Me enfio em um vestido azul marinho, calço as sapatilhas pretas — amigas fiéis, confortáveis e especialmente escolhidas para aguentar essa longa jornada até o escritório, e sento para comer alguma coisa.
Cardápio do café da manhã de hoje — pão com mortadela e um café preto bem quentinho, com um toque de canela. Pode parecer coisa de pobre, mas eu amo! Se for com Coca-Cola então, chego a revirar os olhos de prazer. Mas, melhor nem falar de prazer essa hora do dia, senão vou começar a me lembrar do meu sonho e isso com certeza vai atrapalhar meu dia de trabalho.
Porque, obviamente, sonho com o Vinicius pelo menos umas três vezes na semana.
E agora você está pensando: “Ah, Julia está toda apaixonada por esse cara!”
Eu te afirmo que não estou. Volto a falar que não tenho culpa se, além daquela boca linda, ele tem um queixo quadrado e autoritário, cabelos pretos ondulados — que eu posso jurar que são macios ao toque — e os olhos azuis mais profundamente perturbadores que eu já vi. Eu sei que já falei sobre os olhos dele, mas acho válido repetir, para que você entenda meu drama.
Isso tudo, aliado ao corpo bem trabalhado que parece se sentir preso dentro do terno de corte caro, e aquela altura toda. Meu Deus, com toda a sinceridade, me responda: “Para que um homem precisa ser gostoso, malhado, ter olhos azuis e ainda ser tão alto quanto um deus do Olimpo?”
Eu acho um exagero. Só digo isso.
Enfio o último pedaço do pão na boca e mastigo bem devagar, enquanto minha mente vagueia pelo sonho erótico que tive com meu chefe. Lembro de suas mãos quentes subindo pelas minhas coxas nuas, afastando o vestido e segurando com força minha…
“Opa, Julia! Que caminho perigoso é esse que você está tomando?” pergunto a mim mesma enquanto sacudo a cabeça. Levanto apressada e corro até o quarto, pegando uma calcinha extra. Pelo jeito que meu corpo anda me traindo, vou precisar dela antes do fim do dia.
A menos, é claro, que eu consiga passar todo o expediente com essa calcinha encharcada. Ainda com resquícios do sonho perturbador na minha cabeça, enfio tudo na bolsa e saio mastigando o restinho do sanduíche.
Deus me se eu chegar atasada hoje!
Quando eu acordei, sabia que forças malignas poderiam fazer de tudo para transformar meu dia em um total pesadelo. Mas, Universo, meu querido, vamos combinar que não precisava ser logo de manhãzinha, não é mesmo?
Agora, trancada no banheiro das secretárias e olhando o estado lastimável em que me encontro, oscilo entre a vontade de chorar de ódio ou voltar até o “local do crime” e estapear a responsável por esse desastre.
Meu vestido lindo e maravilhoso, já era! A peça mais perfeita e elegante que eu tinha separado no meu guarda roupa para usar na reunião de hoje, encontra-se sem nenhuma chance de recuperação, completamente arruinado. Inclusive, não existe palavra melhor para definir o estado em que ele se encontra depois de eu ter sido literalmente abraçada por uma mulher que carregava uma daquelas tortas salgadas com cobertura de maionese.
A doida varrida saiu do prédio como um furacão, sem sequer olhar à sua volta e eu, apesar de ter tentado parar a tempo, bati de frente com ela. Pior do que isso, enfiei os peitos na tal torta. Agora tenho uma crosta seca de maionese espalhada por toda a frente do meu vestido e, não importa o quanto eu esfregue, ela se recusa a sair.
Sinto meus olhos enchendo de lágrimas de frustração e respiro fundo, entoando meu mantra pessoal pela segunda vez hoje.
“Ele é um babaca.
Você é uma ótima profissional.
Tudo vai dar certo.
Ele vai acabar com a sua raça.”
Mais uma vez, a última frase não pertence de verdade ao mantra, mas se encaixa perfeitamente à realidade do meu dia. Na tentativa de sanar meu problema, Lorena, minha colega de trabalho e fiel escudeira em dias como esse, me emprestou um blazer que ela mantinha guardado no armário e somente agora, me olhando no espelho, me pergunto como alguém com a idade dela tem uma peça tão ultrapassada como essa em seu guarda-roupa.
Tudo bem, eu, beirando os trinta anos, confessar que já havia sonhado em ser uma executiva usando um conjunto de calça social vincada e blazer combinando, mas ela não passa de uma garota, e o seu estilo combina muito mais com os casaquinhos descolados daquelas lojas alternativas que estou cansada de ver por aí. Para piorar a situação, o blazer não tem estrutura e muito menos um caimento decente. Um dia ele havia sido preto, porém analisando com atenção o meu reflexo no espelho, concluo que agora ele parece mais com um pedaço de pano surrado e encardido, no melhor estilo “cor de burro quando foge”.
Ela mesma me contou que guardava aquilo apenas para usar nos dias em que o ar condicionado do escritório estava mais frio do que o normal, e eu sabia exatamente do que ela estava falando.
Esses eram os dias nos quais Vinicius estava mais atacado, colocando fogo pelas ventas e arrumando problemas onde bem queria. Ele me fazia ligar para a manutenção e mandar que colocassem o ar condicionado a toda, congelando todo o andar.
Não, gente, ele não se importa com quem pode estar batendo os dentes de frio. Esse homem dos infernos só pensa nele e em seu magnífico pau.
“Ah, Julia…” penso mais uma vez, “pare de fantasiar com o pau do seu chefe, ou todo mundo vai achar que você está apaixonada por ele. O que não é verdade.
Eu juro.”
Dou mais uma olhada no espelho e chego à conclusão de que esse pretinho nada básico vai ter que servir até que eu possa dar uma corrida na rua durante o almoço e comprar alguma roupa para usar na reunião da tarde. …