Trecho do livro
Não tente achar um atalho, porque não há atalhos. O mundo é uma luta, é árduo, é uma tarefa penosa, mas é assim que a pessoa chega ao pico.
– Osho
Prólogo
Summer
Dizem que quando algo grandioso está para acontecer, temos um pressentimento de que tudo vai mudar. Eu gostaria que a mudança fosse realmente boa, gostaria de saber. Queria pressentir quando algo grandioso estivesse perto de acontecer, que eu pudesse saber se seria bom ou ruim. Mas isso era impossível, eu não sabia de fato, até acontecer.
Tinha acordado cedo como sempre, abri a janela do meu quarto e senti o cheiro do mar, ouvi o barulho das ondas e senti aquele aperto no peito, um frio em minha barriga inexplicável, uma ansiedade me tomando em uma manhã costumeira.
Não dei importância aos sinais do meu corpo. Vesti o meu Short John manga longa e amarrei o meu cabelo castanho e comprido já muito queimado do sol em um rabo de cavalo firme, olhei no relógio e faltavam 15 minutos para seis da manhã, era o meu horário preferido para treinar.
Desci as escadas apressada e topei com o meu pai no caminho, a sua cara amassada de sono dizia que não havia descansado o suficiente, mas, ainda assim, já estava em seu terno moderno pronto para o trabalho. Não importava o quão ricos fôssemos e não importava o quanto mamãe brigava, porque ele deveria trabalhar menos, papai não faltava um dia, ele dizia que um presidente não pode faltar e que sempre deveria estar atento em tudo, então ele levantava cedo todos os dias e nunca reclamava disso.
— Filha… Volte a dormir, está frio hoje — resmungou dando um beijo em minha cabeça.
— Sabe que esse é o meu horário, quero estar pronta para o campeonato no Havaí — retruquei já entrando na garagem para pegar minha prancha de surf.
— Tome cuidado, esse horário as ondas estão fortes e o mar é traiçoeiro, sei que é uma peixinha, mas fique atenta — resmungou as poucas palavras de sempre, e me abraçou antes de entrar no seu carro.
— Bom trabalho, e não manda ninguém embora! — brinquei e ele sorriu.
— Até mais tarde Peixinha, que Deus te proteja. — sussurrou as palavras de crenças que sempre usava.
O meu pai sempre mantinha a fé presente em nossa casa, dizia que todo mundo precisava acreditar em algo e eu me acostumei com isso, acho que no fundo também acreditava.
— Até mais, pai.
Despedi-me dele e novamente senti aquela sensação estranha, parecia que aquela seria a nossa última despedida, no entanto, ignorava aquilo, achei que a minha mente estava criando paranoias desnecessárias.
Controle-se Summer, a cafeína está te boicotando!
Peguei a minha prancha e saí do condomínio, fui caminhando porque a praia é tão perto que não havia necessidade em poluir o meio ambiente para andar um quarteirão de carro. Essa era eu, amante do mar e protetora da natureza, eu sabia que as minhas ideias malucas e naturebas nunca mudariam o mundo, entretanto, eu fazia a minha parte.
O sol já nascia quando deixei as minhas coisas no quiosque do Tony, passei a Leash em meu tornozelo e caminhei para dentro do mar. Estava agitado, ondas altas se formavam e aquilo era o que eu mais amava, ninguém podia controlá-lo, era uma força livre, imensurável e indescritível, desde que coloquei os meus pés ali pela primeira vez, soube que havia encontrado o meu lugar no mundo, nada me dava mais prazer do que estar no mar.
Lutei contra os meus pais quando eles disseram que eu devia ir para faculdade e que o surf não me levaria a lugar nenhum, eu, uma garota de dezenove anos, tinha que pôr os pés no chão, mas tudo o que eu queria era pôr os meus pés no mar, e isso era o que eu fazia.
Deitei com o peito sobre a prancha e me levei até o ponto certo, era lá onde a onda me pegaria. Dizem muito no meio do surf a frase “Vou pegar uma onda”, porém eu pensava diferente, era a onda que me pegava todas as vezes, porque eu sempre esperava e a onda sempre vinha me pegar, e me levar para um passeio incrível.
Bati os meus braços com força e senti a onda se preparar, coloquei-me de pé e me equilibrei deixando a onda me levar, era como voar em meio ao mar, a velocidade com que a prancha deslizava era incrível, a sensação era única, nada a se comparar.
Uma onda após a outra, eu surfei entre elas, sentia o prazer da liberdade proporcionada pela natureza. A velha sensação não me deixou, aproveitei cada onda como se fosse a última, me deixei ser derrubada por elas, apenas para me deliciar.
Por alguns momentos fechei os olhos e me imaginei no campeonato de Surf que aconteceria no próximo ano, eu estava classificada e competiria com grandes nomes do Surf, ansiava por esse dia, sonhava acordada e dormindo, era algo que não saía de mim, e com esses pensamentos deixei o pressentimento que me incomodava de lado, e aproveitei ao máximo, apenas aproveitei.
Quando estava pronta para ir embora, vi o meu celular cheio de mensagens e ligações perdidas, era Paul, meu namorado. Seus pais são amigos de infância da minha mãe, nós fomos criados juntos em Chicago, por isso nossos nomes não têm nada de brasileiro, apesar de não ter nascido aqui, sinto que o Brasil é o meu lugar. Os meus pais se conheceram em um jantar de negócios, por muito tempo o meu pai se dividiu entre os Estados Unidos e o Brasil, de um lado, os seus negócios de uma vida e do outro, a mulher que amava, por fim, depois que nasci a minha mãe finalmente decidiu se mudar, então eu cresci na cidade maravilhosa.
O Paul insistia na ideia de casar e voltar para o centro de Chicago, ele foi praticamente forçado pelos seus pais a se mudar e comandar a filial de hotéis que abriram aqui com a ajuda do meu pai, em parte eu sentia pena de Paul, ele não era livre, vivia para agradar os outros e insistir em nosso relacionamento foi mais um erro que cometemos para agradar terceiros.
Desbloqueei a tela do aparelho e as mensagens jorravam na minha tela.
“Onde você está? Esqueceu do café com os meus pais?”
Caramba! Sequer me lembrei.
As mensagens seguintes eram a mesma coisa. Começavam perguntando onde eu estava, depois passava pela frágil parte da minha irresponsabilidade, e acabava com a minha completa falta de interesse.
Ignorei as mensagens e peguei minhas coisas no quiosque do Tony. O meu celular não parava e aquele incômodo em mim pareceu voltar com tudo, como se me alertasse para algo, algo que eu não via, não entendia.
Parei em frente a faixa de pedestres e mesmo que tudo estivesse vazio, esperei que o sinal ficasse verde, por um segundo olhei ao redor e vi pessoas caminhando pelo calçadão, do outro lado avistei o Paul com a sua face carrancuda e um olhar afiado em minha direção. Ele gesticulou e soltou palavras que não compreendi, o sinal abriu para mim e caminhei o mais devagar possível, atrasando a conversa estressante que teria pela frente, e foi aí que tudo mudou.
Um segundo, ou talvez mais. Eu não tive tempo de olhar ao redor, correr ou desviar, apenas senti uma rajada de vento, um barulho ensurdecedor e uma pancada forte que me jogou longe e então não existia mais nada.
Capítulo 1
Summer
Um milagre.
A primeira coisa que ouvi quando acordei, foi que eu era um milagre, não acreditava nisso, não me lembrava de nada, quando me deparei com o prognóstico do meu futuro tive a certeza de que muito pelo contrário do que diziam, eu não era um milagre. Milagre… Não, eu era apenas uma garota com uma lesão medular em que ninguém queria arriscar a sua carreira para operar, essa era a verdade. Até onde me explicaram, devido à grande compressão mal se podia ver todo dano causado pelo acidente.
Um maldito acidente.
As pessoas dizem, olhe para os dois lados antes de atravessar a rua, espere o sinal abrir para você, antes perder um minuto da vida do que a vida em um minuto. De fato era melhor perder os minutos. Mas, e quando essa escolha é tirada de você? Quando depois de viver sobre as regras, vem alguém e rouba tudo de você? Não havia ditado ou desculpas, não havia nada o que fazer, apenas se conformar que nada mais seria como antes.
Os meses se passaram cada vez mais rápido, eu via que a cada dia estava perdendo todas as minhas esperanças. O Paul, como sem-pre jogou sobre mim as suas frustrações e mesmo me vendo presa a uma cadeira de rodas, não me poupou dos comentários ácidos, não hesitou ao me jogar culpas. Como se eu fosse culpada por um bêbado me atingir em cheio, quando mal podia ver um palmo à sua frente.
Calada aceitei as dores da vida, aceitei o meu destino, mas o meu pai não, ele não conseguia me ver daquela maneira. Acreditava que ver a Summer de agora o machucava muito, Peter Royce, poderia se mostrar o velho mais durão do mundo, no entanto, eu sabia que a minha situação atual o destruía, o meu mau humor, a minha invalidez, a minha depressão e a minha falta de vontade de viver, se tornaram um fardo pesado em suas costas, porém eu não poderia culpá-lo, quando eu mesma não me suportava.
— O meu pai saiu de novo? — indaguei ao entrar na cozinha, me arrastando naquela cadeira. A dor sempre era pior de manhã.
A minha mãe me olhou com o rosto abatido, mas não perdia a oportunidade de me responder.
— Bom dia para você também, Summer.
— Me desculpe — respondi de má vontade. — Bom dia, mãe.
— Agir dessa forma não ajuda em nada minha filha — resmungou sentida. — O seu pai foi resolver umas coisas.
A maneira como a palavra “coisas” saiu de sua boca indicava que era algo muito maior.
— Espero que ele não esteja em sua infinita busca por uma cura. — Empurrei a cadeira até o espaço vazio na mesa para mim. —É a hora de nos conformarmos de que não vou mais andar, não vou mais surfar, dançar, correr…
— E se houver uma chance?
— Eu sei que não existe. — Os meus olhos marejaram. — Não existe mais campeonato no Havaí para mim, não existe chances ou milagres.
— Filha… — Me olhou de maneira pesarosa e aquilo me enfureceu.
— Não existem milagres, mãe! Desista!
Ela me olhou com os olhos arregalados e surpresos, como se eu blasfemasse. Queria chorar. Pedir para que parassem com tudo aquilo, estava cansada das palavras de conforto que todos me davam, cansada da pena que as pessoas dirigiam a mim, dos psicólogos, terapeutas, cirurgiões, fisioterapias que não ameniza em nada a maldita dor que eu sentia.
Queria achar um culpado para o que acontecia comigo, mas quem? Os meus pais não tinham culpa, eu também não tinha e sabia que se Deus existisse, ele também não teria culpa, talvez pudesse ter evitado que um bêbado inconsequente me atropelasse, se existisse, no entanto, estava cansada desse dilema. A vida estava sendo dura comigo e só me restava aceitar. Aceitar o inaceitável. Não tinha outra opção.