Trecho do livro
“Contigo aprendi
Que existem novas e melhores emoções
Contigo aprendi
A conhecer um mundo novo de ilusões
(…)
“Aprendi
Que pode um beijo ser mais doce e mais profundo
Que posso partir amanhã mesmo deste mundo
As coisas boas eu contigo já as vivi
(…)”
(TRADUÇÃO DA MÚSICA: CONTIGO APRENDI – ARMANDO MANZANERO)
Eu olhei de novo embaixo da pia da cozinha, para o amontoado de panelas amassadas e vazias. Água pingava sem parar, bem lenta, num barulho chato e contínuo ao bater no fundo empoçado de uma frigideira. Com exceção daquilo e de um rastro de gosma preta que se colava no cano encardido, não havia mais nada.
Claro, eu sabia disso. Há dias revirava cada canto, com o estômago roncando de fome, a esperança me fazendo acreditar que haveria algum resto de arroz ou de farinha escondido, algum pedaço de pão velho esquecido. A falta de baratas e formigas, minhas adversárias na procura, era um aviso bem dado. Nada.
Sentei sobre os calcanhares, meus olhos se enchendo de lágrimas, o estômago roncando. Doía tanto que parecia grudado nas costelas aparentes, tremedeiras me deixando tonta. Já nem conseguia me levantar, fraca, mole. A garganta doía de tanto gritar e socar a porta, pedindo ajuda, sem conseguir nada. Mas eu já não tinha forças.
Caí no chão sujo, colando de gordura, poeira, podridão acumulada sem quase nunca ter sido limpo. Antes, muito tempo antes, ela ainda passava uma vassoura de vez em quando, sorria, tentava ser mãe. Nem lembrava direito das vezes que acontecera. Não mais.
Encolhi-me toda, lágrimas pulando dos olhos, soluços fracos lutando para encontrar caminho no desespero. Soube que daquela vez ia morrer. Só água não estava mais me mantendo de pé.
A visão ficou turva e fechei os olhos, pedindo demência a Deus. Minha mãe gritara várias vezes que Ele não existia e que eu era burra por acreditar. Que cada um estava por si naquele mundo e, com sete anos de idade, já era para eu entender como as coisas funcionavam. Mas se não pedisse a Deus, falaria com quem?
Apertei a barriga, senti os ossos, a fome, a dor que vinha de dentro. Quando em menor, comi arroz cru alguns dias, até ela voltar. Não sabia como fazia. Depois aprendi, água quente, sal, ferver um pouco. Até o gás também acabar, o botijão sumir. Depois o fogão. Voltei às coisas cruas. Quando tinha.
Pensei no que uma mulher disse, um dia que foi ali e ficou bebendo com minha mãe. Ela não era bruta, não me batia nem ria de mim. Parecia triste e me disse que, quando a gente morria, virava anjo no céu, vivia no paraíso. Eu queria morrer. Naquele momento mesmo, eu só pedia que Deus me levasse ao paraíso e me desse muita comida.
Aproveitei que estava sozinha e rezei, chorei, esperei um milagre, qualquer coisa diferente daquela realidade dura, solitária, faminta. Nem sei quanto tempo fiquei ali, se cochilei e tive sonhos confusos, se apaguei sem forças, apenas que por um período confortador eu me vi fora daquela casa minúscula e fedorenta, daquela prisão horrível.
— Sai daí, porra … levanta …
Algo espetava minha coluna, por trás, empurrando. A voz tentava penetrar a nuvem da mente, mas eu lutava para não voltar, o choro subindo até a garganta, o medo do real sendo pior do que tudo.
“Por favor, me deixa morrer …”, supliquei por dentro, para o nada, para o que eu queria que existisse além de mim.
— Pirralha … safada preguiçosa! Sai daí!
A voz esganiçada ficou mais alta, o chute doeu e gemi, abrindo os olhos, me encontrando de novo naquele inferno. Solucei, arrasada, tentando me afastar daquele toque, me arrastar para longe. O estômago roncou de novo e me virei, agoniada, pensando em comida, rezando para que ela tivesse trazido migalhas de alguma coisa.
— Fora daqui! Porra! Cadê?
Minha mãe cambaleou em direção à pia, aproveitando que saí do seu caminho, sentando longe, tremendo. Se abaixou, afastou panelas velhas, derrubou algumas, fez barulho. A frigideira suja derramou a água empoçada e ela uivou, querendo algo. Eu sabia que não era comida.
Esquelética, cabelos embolados como de uma mendiga, roupas esfarrapadas, Carolina mais parecia um zumbi, uma sombra da mulher que às vezes ria, que às vezes ainda vivia no meu mundo. O cheiro que vinha dela era muito ruim, de urina, fezes, coisas que eu nem sabia do que se tratava, mas subia como esgoto.
Fui ainda mais para trás, até a parede, tentando me reerguer. A fraqueza parecia a ponto de me derrubar de novo e com uma esperança que não devia estar ali, dei alguns passos, só pensando em comida, não suportando mais a fome esmagadora.
— Você tirou a garrafa daqui, sua puta? Mein, vagabunda? —Berrou, fora de si, metendo-se no espaço sob a pia como se fosse um rato desesperado por queijo, jogando coisas longe. — Cadê minha pedra?
— Não sei … — Murmurei rouca, lágrimas escorrendo. Fui bambeando até a sala, percebendo que ela estava agressiva e ia me machucar. Nem acreditei quando vi a porta encostada. Se pudesse correria até ela, mas a fraqueza parecia a ponto de me derrubar.
— Vai agora pegar o que tirou de mim! — Mãos como ganas puxaram meu cabelo por trás, com força. Foi fácil me arremessar ao chão, gritando, se metendo na frente. Os olhos eram esbugalhados como de uma louca. — Sua ladrona! Pensa que não sei o que quer? Pegar o que é meu!
Passou a berrar, andar de um lado para outro, fazer ameaças. Eu me encolhi chorando, apavorada, nervosa. Só pensava em escapar, sair pela porta e buscar ajuda. Há muito tempo estava presa ali, sem aguentar mais. Das outras vezes que fugi, não adiantou nada. Mas eu não tinha escolhas.
Minha mãe gritou que eu estava escondendo seu crack, seu cigarro, sua bebida. Xingava nomes terríveis, dizia que ia me matar se não devolvesse. Ao mesmo tempo, ficava no caminho, jogando as poucas coisas que tínhamos no chão. Um cinzeiro lascado quebrou, latas vazias fizeram estrondo junto às palavras obscenas e ameaçadoras.
Tremi demais, entre soluços e destroços, pensando que a qualquer instante ela avançaria em mim. Lembrei de outros momentos, da roda viva de fome, espancamentos, torturas. Das mamadeiras de álcool que me dava para dormir, tonta, para a deixar em paz. Da vez em que tentou me pendurar pelas orelhas no varal, para me castigar. De outras em que me mandou acender seus cigarros e fumar, mesmo eu chorando com a fumaça e dizendo que não queria. Eu simplesmente não aguentava mais.
— Piranhazinha! Viciada de merda! — E ela veio.
Eu me encolhi e gritei, pronta para a surra, a raiva despejada, a violência tão natural naquilo que nunca foi um lar. Mas talvez Deus existisse de fato, pois drogada, Carolina tropeçou nos cacos do caminho e caiu, xingando, sem ter noção do que acontecia. E então eu fiz a única coisa que sabia: tentar fugir.
Engatinhei, fiquei de pé, cambaleei de tanta fraqueza. O medo foi meu combustível, ele me impulsionou e saí como um boneco desconjuntado em direção à porta, vendo que ela tentava se levantar entre urros e palavras sujas, caindo de novo, falando em sangue. Toquei o ferro enferrujado, puxei a porta. Luz veio nos meus olhos, me cegou. Meio que corri e caí na varanda imunda, depois no chão cheio de mato e lixo.
Morávamos nos fundos de um terreno praticamente abandonado. Algo arranhou minha perna e ardeu muito, talvez algum pedaço de arame, mas não parei. Pisquei para afastar as lágrimas, meio desnorteada, mas seguindo até as casas mais próximas, pobres como a nossa, mas não da mesma maneira. Corri o quanto pude, sem perceber que pedia ajuda, que implorava e quase desmaiava. Suor grosso brotou, como óleo, tirando os restos das minhas forças.
Pensei em Dona Lídia, que entre todos tentou me ajudar algumas vezes, dos que haviam desistido de mim e fingido não ver o que acontecia entre as paredes do casebre. Fui mais por instinto do que qualquer outra coisa. A rua era de terra, poeira subindo sob o sol inclemente, casas de tijolos aparecendo aqui e ali. Cheguei até uma e bati na porta, olhando para trás, com medo de ver minha mãe na minha cola. Mas ela não estava perto.
— O que … Jordana? — A senhora abriu a porta, ansiosa ao ver meu estado.
— Me ajude … — Supliquei, caindo em seus braços, a voz num fio. — Por favor…
— Meu Deus … — Olhou em volta, me segurando e puxando para dentro. Trancou a porta. — Cadê a Carolina?
— Ela está lá… vai me bater … eu…
Perdi as forças que tinha, caindo de joelhos.
— Ah, menina …
— Comida, por favor, Dona Lídia …
Tudo se desenrolou de modo desnorteante. A filha dela mais velha chegou, falou alto, pareceu brava. Elas discutiram. Fui levada até um sofá, onde delirei entre a realidade e algum lugar desconhecido, o medo presente, o desespero me mandando fugir para mais longe. Palavras da moça chegavam em trechos:
— Não se meta… não adianta… não é problema nosso … da outra vez ela bateu na senhora!
— Toma aqui, menina… Olha o estado dela. Tadinha!
Mão grossa amparou minha cabeça, um copo veio em meus lábios secos. Senti algo frio, como há muito tempo eu não provava. Leite. Sorvi, tremendo, chorando.
— Calma… devagar…
— Mãe, não vai adiantar! O Conselho Tutelar devolve a garota para aquela louca! E ela vai matar nosso gato, como fez com o outro, só de maldade! Não lembra? As roupas que tirou da nossa corda, as…
— Já sei de tudo! Agora cale a boca! Quer que eu deixe a menina morrer de fome? Sai daqui, Jéssica!
Eu ouvia a confusão, mas só me preocupava em beber o líquido milagroso, segurando o copo sobre as mãos da senhora. Fechei os olhos, deixei o alimento entrar, bater no estômago vazio e doer, para logo depois deslizar, me acalmar um pouco. Era como se voltasse à vida aos poucos.
— Isso não pode ficar assim. Vou chamar a polícia!
— Mãe!
O resto foi confuso, pois eu só queria comer e, depois que o fiz, senti torpor, cansaço, praticamente desabei no sofá. Queria fugir da minha mãe, mas ali me senti segura, me deixei descansar.
Dois policiais chegaram, acompanhados de uma mulher. Falaram de mim e comigo. Tentei entender, mas me encolhi contra os seios fartos de Dona Lídia, pedi baixinho que não deixasse minha mãe me levar. Ela nem apareceu para brigar ou xingar, como de outras vezes. Talvez estivesse louca, me procurando em outro lugar. Ou caída no chão de casa, doida demais para se mexer.
Só sei que me levaram. Dona Lídia foi junto, garantiu que tudo ficaria bem.
Passei maus bocados, mas uma coisa mudou. Minha guarda foi tirada da minha mãe e não a vi, enquanto dormia em um abrigo entre outras crianças, em cama de verdade, comendo todos os dias. Comecei a ter esperanças de que nunca mais voltaria para o inferno. E um dia tive certeza de que Deus existia de verdade: Minha avó, que eu nunca vi, apareceu para me levar e morar com ela.
Uma nova história estava prestes a começar.