Trecho do livro
“Moça, sai da sacada
Você é muito nova pra brincar de morrer
Me diz o que há
O quê que a vida aprontou dessa vez?”
AMIANTO – SUPERCOMBO
Aperto a alça da minha bolsa enquanto olho para o relógio de parede, começando a ficar impaciente. Eu não gosto de vir aqui. Não me sinto bem quando venho, mas sei que preciso fazer isso por ele. Por nós dois.
— Julia? — Víro-me ao som da sua voz e, quando vejo seu rosto, toda a minha aflição some.
— Oi, amor — sussurro, enquanto o observo se sentar de frente para mim, colocando as mãos algemadas sobre a mesa.
Encaro seus lindos e cansados olhos azuis e entrelaço nossos dedos. Ainda não entendi como Raul veio parar aqui, como se deixou levar por um momento de fraqueza, como ele mesmo disse. Meu marido não é assim. Nunca foi. Sempre foi um homem bondoso, que se preocupava comigo. Tínhamos uma vida confortável. ‘Éramos felizes.
Bom, pelo menos eu imaginava que fôssemos. Até vê-lo se envolver em um esquema de falsificação de documentos e colocar tudo a perder. Já faz um ano que está aqui nesse presídio. Venho visitá-lo todos os domingos, ainda que odeie vir. Mas como disse, faço isso por nós dois.
Nosso casamento não pode acabar por isso, não é?
— Como você está? — Minha voz sai um sussurro e o vejo sorrir de lado.
Ainda que esteja com um uniforme vermelho e o rosto abatido, ele continua lindo, como no dia em que o conheci.
Eu tinha acabado de completar dezoito anos quando nos esbarramos em um bar e, desde então, não nos separamos mais. Raul é tudo o que eu tenho, pois perdi a minha família quando nasci. Bom, não sei se dá para perder o que nunca foi seu. A verdade é que fui abandonada ainda no hospital pela pessoa que me trouxe à vida, então sou sozinha. Pulei de orfanato em orfanato, crescendo e perdendo a chance de adoção, até conseguir minha maioridade e, com ela, a minha liberdade.
Arrumei um emprego de recepcionista em uma clínica e, mesmo com um salário razoável, conseguia arcar com as despesas de morar sozinha. Pouco depois, conheci Raul. Nós nos apaixonamos e, quando ele viu como minha vida era solitária, me chamou para morar com ele alguns meses depois. Nós nos casamos e estamos juntos desde então, completando quase cinco anos.
Ele é a minha família. É por isso que estou aqui agora.
— Como você está, Ju? Não se preocupe comigo. — Sua voz me desperta de meu devaneio e eu sorrio.
— Estou bem, amor. A loja tem me distraído muito.
— Isso é ótimo! — Ele sorri orgulhoso e eu aperto nossas mãos entrelaçadas.
Há cerca de dois anos, abrimos uma livraria juntos, a Toca dos Livros. Eu sempre amei livros e falava que meu sonho era trabalhar com isso. Quando Raul ganhou uma ação trabalhista contra uma empresa que o lesionou, investiu o dinheiro nesse negócio e foi o melhor presente que ele poderia ter me dado.
Enquanto estou lá, perdida em meus livros, me esqueço um pouco de como a vida é dura e de quantas vezes saímos perdendo. Isso me ajuda a continuar seguindo em frente, mesmo quando tudo parece difícil.
De toda forma, nossa livraria é meu bem mais precioso. Tenho apenas uma funcionária que me auxilia. Por mais que eu tenha insistido para que Raul trabalhasse comigo várias vezes, ele sempre se negou.
Meu marido ama carros e por isso se dedicou a trabalhar com eles, ainda que de vendedor. Tem uma boa lábia e sempre teve facilidade na venda de veículos de luxo, ganhando uma boa comissão.
É por isso que eu nunca entendi o real motivo de ter se envolvido com esse negócio clandestino.
— Sinto sua falta… — Solto em um suspiro, sem desviar meus olhos dos seus.
— Eu também, Ju. Não vejo a hora de voltar para casa e ficar com você.
— Nem eu… — sussurro cansada e ele aperta minha mão com carinho.
— Te prometi, Julia, e vou cumprir. Nunca mais você me verá aqui, OK? Quando sair daqui, tudo será diferente.
Assinto em silêncio e sorrio para ele, sentindo meu coração se apertar. Desde o dia em que Raul foi preso, mantém sua promessa de que nunca mais irá mexer com isso e que não nos colocará em risco mais uma vez.
Eu me agarro a isso com tudo que tenho, porque preciso.
Preciso de um pouco de normalidade na minha vida.
Preciso que essa tempestade passe, pois não aguento mais.
Preciso dele ao meu lado mais uma vez, pois não tenho mais ninguém.
Dirijo pelas ruas da cidade, sentindo minha barriga gelar. Raul está em silêncio ao meu lado e eu nem sei explicar o que estou sentindo.
Felicidade? Ansiedade? Insegurança?
É um misto de sensações que me deixa bastante confusa. Finalmente chegou o dia em que ele conseguiu a sua tão sonhada liberdade. Há algumas horas, eu estava chegando ao presídio para buscar o amor da minha vida.
Hoje, parece que o dia demorou umas setenta e duas horas para passar, tamanha era a ansiedade. Não consegui trabalhar, então deixei a Amanda, minha funcionária, tomando conta das coisas para mim. Sequer tive cabeça para enfrentar o trabalho. Enquanto isso, arrumei a nossa casa, fiz compras e deixei tudo organizado para preparar um jantar de boas-vindas ao meu marido, afinal, foram três anos vivendo separados.
Não vejo a hora de tê-lo em casa todos os dias. É tão ruim viver sozinha…
Gabriela, minha amiga de longa data, insistiu para que eu adotasse um cãozinho, mas não podia fazer isso. Raul é alérgico a pelos de animais, então como eu poderia levar um para casa e fazê-lo mal? Embora eu tenha muita vontade de ter um animal, sei que não posso fazer isso com meu marido.
O trajeto é feito no mais absoluto silêncio, o que é bem estranho para mim. Sei que Raul nunca foi de muitas palavras, mas achei que o nosso reencontro seria diferente. Pelo visto, têm coisas que simplesmente não mudam.
Estaciono o carro em nossa vaga na garagem e assim que o desligo, Raul salta para fora, alongando o corpo em seguida. Tranco o veículo e pego sua mão, enquanto caminhamos juntos em direção às escadas, subindo devagar. Alcançamos o primeiro andar e abro a porta do nosso apartamento, gesticulando para ele entrar.
— Seja bem-vindo, amor.
Raul passa por mim e olha tudo ao redor, com um sorriso leve no rosto. Ele passa as mãos pela barba que está mais cheia e suspira ao se virar para mim.
— Nem acredito que estou aqui.
— Nem eu. — Aproximo-me dele e circulo sua cintura com meus braços, ficando na ponta do pé para lhe dar um selinho.
Ele afaga meu rosto e sorri com carinho antes de se afastar.
— Está com fome? — pergunto e ele balança a cabeça negando.
— Acho que vou tomar um banho.
— Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, me chame.
Ele pisca para mim e some pelo corredor do apartamento, deixando-me um pouco perdida por aqui. Coloco as mãos na cintura e olho ao meu redor, pensando no que fazer em seguida. A minha vontade é beijar e abraçar o meu marido até perder de vista, mas sei que preciso respeitar o seu espaço. Raul acabou de chegar em casa e precisará de um tempo para se adaptar novamente a essa vida.
Decido ir até a cozinha para começar a planejar o jantar, mas antes que eu chegue a fazê-lo, sinto meu celular vibrar em meu bolso.
— Oi, Gabi! — Atendo a ligação da minha amiga e puxo a cadeira para me sentar à mesa da cozinha.
— Oi, Juju. Como você está? Como foi lá?
Não se engane. A minha melhor amiga odeia o meu marido e até hoje não entendi o real motivo disso. Gabriela tem uma implicância absurda com o Raul e parei de discutir com ela pelo bem da nossa amizade.
— Ah, foi bem… Ele está um pouco calado, mas acho que ainda está assimilando tudo isso.
— A-hã… — sussurra apenas e eu respiro fundo.
Por favor, não quero mais um sermão.
— E como foi a entrevista de emprego? — Desvio o assunto e a escuto suspirar do outro lado, entendendo os meus motivos.
— Deu tudo certo, amiga! Começo amanhã!
— Jura?
Um sorriso enorme se forma em meu rosto enquanto a ouço contar com entusiasmo como conseguiu uma vaga de emprego em uma empresa nova de arquitetura. Minha amiga se formou recentemente e, por mais que tenha feito estágio, ainda não havia conseguido um trabalho efetivo na área. Eu sei o quanto ansiava por esse emprego, por isso estou tão contente por ela.
— Estou tão feliz por você, amiga! Precisamos comemorar essa sua conquista!
— Com toda certeza! Vamos almoçar juntas amanhã?
— Hummm… Não sei, Gabi. Tenho que ver como serão as coisas com o Raul em casa e…
— Já entendi. Depois nos falamos então. Um beijo. — Desliga sem nem esperar que eu me despeça.
Jogo o celular em cima da mesa e bufo. Toda vez é assim. Eu amo a minha amiga. E amo o meu marido também. O que custava os dois serem amigos? Raul, ao contrário de Gabriela, não tem nada contra ela e nunca a destratou.
Levanto-me da mesa e vou até a geladeira me servir um copo de suco quando ouço passos atrás de mim. Viro-me e vejo um Raul todo arrumado e perfumado me olhando. Isso faz o meu coração dar um salto. Ele está tão lindo…
— Ju, vou dar uma volta agora, tá?
Sua voz é doce e eu sinto um golpe no estômago. Como é?
— Mas eu achei que fosse ficar em casa… — gaguejo, tentando segurar o choro. — Pensei em preparar um jantar e…
— Amanhã, pode ser? — Ele se aproxima e toma meu rosto nas mãos, beijando meus lábios de leve. — Eu não vejo meus amigos há uns anos e combinamos de nos encontrar hoje.
Mais um golpe no estômago.
— Eu… não posso ir? — Minha voz é um fio e travo uma batalha interna para não chorar na sua frente.
— Hoje serão só os homens, Jujuba… — Ele sorri, acariciando meu rosto, e eu sinto um bolo no estômago.
Odeio que ele me chame assim.
Suspiro e balanço a cabeça, virando o meu rosto e saindo do seu contato.
— Da próxima eu te levo, tudo bem?
Assinto mais uma vez em silêncio e abaixo os meus olhos, fixando em um ponto qualquer no chão. Raul se afasta devagar e, antes que abra a porta, ouço o som da sua voz.
— Não precisa me esperar acordada, pois não tenho hora para chegar.
E se vai. Simples assim.
Logo que ouço o dique da maçaneta, desabo na cozinha e escorrego o meu corpo até me sentar no chão. As lágrimas que tentei controlar por várias vezes não param de rolar pelo meu rosto e decido não relutar mais. Soluços brotam na minha garganta. Tento entender por que as coisas são sempre tão difíceis para mim.
Troco de canal pela vigésima vez e meu balde de pipoca continua intocado. Eu tentei agir como um dia normal e coloquei um filme para me distrair, mas foi em vão.
Por mais que Raul tenha dito que não tinha hora para voltar, o meu coração idiota insiste em achar que ele vai chegar mais cedo, que vai querer ficar comigo.
Mas ele deixou claro que prefere estar com os amigos agora, Julia. Caia na real!
Desligo a TV, me levanto do sofá e vou até a cozinha para beber um copo de água e jogar a pipoca no lixo. É um desperdício, eu sei, mas quando estou assim, simplesmente não consigo comer.
Olho para o relógio no celular e vejo que já são onze horas da noite. Suspiro e caminho até o quarto Tiro a minha roupa e pego meu pijama de gatinhos. Já ouvi um milhão de vezes o Raul me dizendo que isso não é roupa de mulher casada, mas hoje ele nem está aqui para ver isso. Vesti meus pijamas favoritos nos últimos três anos e espero não ter que mudar agora.
Caio na cama e respiro fundo. Estico o braço e desligo o abajur. A escuridão toma conta do quarto e eu fico por um longo tempo apenas fitando o teto, tentando entender o rumo que a minha vida tomou nos últimos anos. Não chego à conclusão alguma.
Fecho os olhos e decido não pensar nisso mais.
Amanhã será um novo dia.