Anjo Selvagem – Livro de Sara Ester

Trecho do livro

PRÓLOGO

PAOLA

Algum tempo antes

Moscou, Rússia

Em todos os meus vinte e seis anos de vida, passei por várias etapas, desde boas a ruins; fui colocada cara a cara com o bicho papão e me obriguei a enfrentá-lo uma vez, duas, três, quatro, cinco…

Sobretudo, de todas as minhas batalhas, nada era mais difícil do que ter que lidar com a maneira como o Mariano olhava para mim, como se conseguisse enxergar todas as minhas cicatrizes internas. Eu sequer precisava olhar para saber que ele estava me encarando; a força da conexão que tínhamos me desestabilizava, e eu não podia evitar. Aliás, essa era a única coisa que eu não podia lidar. E esse fato me enervava demais.

— Qual o problema? — perguntei, incapaz de erguer meus olhos para encontrar os seus, porque sabia que sua intensidade me enfraqueceria. Me sentia uma covarde quando o assunto era ele.

— Nada — respondeu. — Só estou me perguntando se você está pronta para rever aquele lugar.

Estávamos no jatinho, viajando para Moscou, Rússia. De acordo com as últimas informações descobertas, Nero Bianchi, irmão da Beatrice, protegida da família foi treinado por Alexei Pavlova, o russo que me ensinou a lutar, anos atrás. Nossa missão era tentar descobrir quem foi o mandante do Nero, já que o maldito se infiltrou entre nós apenas para colher os segredos dos Fratelli.

Mordi o maxilar, esforçando-me para manter minhas lembranças no fundo da minha mente. De onde eu estava, na poltrona de frente para ele, eu finalmente ergui os olhos e encarei o único homem que conseguia mexer com o meu coração, mesmo quando pensei que o mesmo já não mais existia.

— Estou bem — murmurei no fim. — Voltar a Moscou será como retornar as minhas raízes. — Ofereci um sorriso maroto, que ele não retribuiu, e isso me irritou. — Ah, qual é, Mariano? Essa sua preocupação é tão ridícula quanto descabida. — Me levantei, começando a me sentir inquieta.

— Você pode se fazer de forte, mas eu te conheço — afirmou ele, segurando-me pelo braço, enquanto me encarava nos olhos. — Eu a vejo.

Meu coração se tornou uma confusão de batimentos acelerados. O lindo rosto estava a centímetros do meu; cabelos curtos e barba rala. Os lábios finos eram tão convidativos quanto ele todo.

— Você apenas vê aquilo que eu permito que veja — forcei minha voz a sair de modo duro — Não se iluda.

Ao dizer isso, me desvencilhei do seu toque, que parecia queimar a minha pele clara, e me afastei seguindo para outro compartimento.

Precisava ficar sozinha para me restabelecer.

Precisava reencontrar o meu equilíbrio.

Assim que desembarcamos em Moscou, Mariano começou a fazer algumas ligações no instante em que pegamos um carro. Nossa equipe de segurança foi reforçada, considerando tudo o que vínhamos enfrentando com os Shadows, e com o pai e noivo da Beatrice Bianchi.

— Está quieta demais. O que foi? — A voz do Mariano interrompeu os meus pensamentos.

Obriguei-me a olhar para o lado e o encontrei bem perto… sempre que isso acontecia, eu tinha que usar todo o meu autocontrole para me manter neutra ao que a nossa proximidade causava em mim.

— É estranho voltar para cá depois de tantos anos — fui honesta. — Este lugar me recebeu quando eu era somente a sombra de mim mesma — franzi o cenho com a recordação — Então estar aqui hoje é… nostálgico.

Pegando-me de surpresa, ele segurou a minha mão, embora, a princípio, eu tentasse recusar o seu toque.

— O que significa isso? — intimei, encarando as nossas mãos juntas.

— Isso, sou eu mostrando que te entendo e que estou aqui — respondeu, todo cheio de intensidade, sem desviar os olhos em tons cinza dos meus. — Aliás, sempre estarei.

Engoli em seco, sentindo-me enrijecer no banco do carro.

Era por isso que eu sempre o evitava; Mariano sabia me ler como nenhum outro era capaz.

Não falei nada. Entretanto, mantive minha mão na sua.

***

Levou quase uma semana para conseguirmos a permissão pra entrar no prédio oficial da organização de Alexei. Percebi que a mesma rigidez com a segurança, de ano atrás, ainda existia.

Mesmo tentando evitar, me peguei relembrando daquela época, época esta em que tudo o que eu fazia era reunir e colar os meus pedaços destroçados.

Cada marca…

Cada cicatriz…

Cada contusão me fazia ficar mais forte.

— Relembrando os velhos tempos? — Me virei a tempo de vislumbrar o dono dessa voz. O russo que mudou a minha vida completamente.

Permiti-me sorrir e, em seguida, me curvei em reverência.

— Apenas as coisas boas, mestre — respondi no seu idioma.

Devolvendo-me o sorriso, ele se aproximou e me puxou para um abraço apertado. Foi impossível não me emocionar, pois esse homem fez um verdadeiro milagre em meu interior.

— O que a trouxe de volta? — quis saber, sem rodeios.

Respirei fundo, me preparando para convencê-lo a permitir a entrada do Mariano, e nos contar tudo o que sabia sobre o Nero Bianchi.

***

— Você sabia que o seu antigo mestre treinava pessoas com o propósito de se tornarem espiões? — Veio a pergunta do Mariano, assim que entramos no quarto do hotel em que estávamos hospedados.

— Não, eu não sabia.

— Mas você ficou naquele lugar por anos.

Rolei os olhos, enquanto ia direto para o frigobar.

— Só falta você me perguntar se, assim como o Nero, eu também seja uma infiltrada.

— Não fale besteiras — resmungou, enquanto retirava a jaqueta de couro. Em seguida, começou a descartar as armas sobre o aparador.

Alexei nos contou que cada infiltrado recebia a missão através de uma pequena ficha com poucas informações, porém, relevantes a respeito do alvo; o mandante transferia o pagamento online, de um modo não rastreável e, não necessariamente precisava se mostrar, o que foi o caso do Nero. A única coisa que descobrimos foi que o homem que o contratou tinha como apelido: o papa. O desgraçado queria conhecer as fraquezas e os pontos fortes dos irmãos Fratelli.

— Por que tem tanta certeza? — Peguei uma garrafinha de água. — Naquela época, eu era apenas um fantasma, Mariano, então certamente não tinha nada a perder.

Seus olhos encontraram os meus quase que, instantaneamente, o que me fez segurar o fôlego por um segundo.

— Tinha sim — afirmou, sério. — Eu. — Algo brilhou em seu olhar nesse momento, mas foi breve, porque ele logo emendou: — Além do Rossi, Luca, Manuele e Fillipo. A sua família.

Mordi o maxilar, nervosa.

Ele estava certo.

Ter o meu destino cruzado com o deles foi o meu momento de bálsamo depois de tantos anos de tormenta.

— Se o Nero estava colhendo informações, então obviamente estava guardando em algum lugar — comentei, mudando de assunto. — Precisamos descobrir o que ele estava tramando antes de a Beatrice meter uma bala na cabeça dele.

O maldito molestava a própria irmã, então num misto de pavor e instinto de sobrevivência a garota atirou na cabeça dele. Manuele chegou no exato momento e decidiu levá-la com ele, tornando-se o seu protetor desde então.

Suspirando, ele desabafou:

— No momento, tudo o que nós precisamos é descobrir a verdadeira identidade desse papa.

Tomei mais um generoso gole da minha água gelada.

— Tudo o que eu quero é um banho agora — declarei, inspirando forte. — Pretende sair?

— Não — respondeu. — Vou ligar para o Manuele pra deixá-los a par das novas descobertas.

Assenti e, em seguida, caminhei em direção ao banheiro.

***


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