Trecho do livro
Vinte e um anos antes
Bessie e eu nunca fomos do tipo que precisavam dos pais, até porque, mesmo que precisássemos sabíamos que eles não estariam lá. Sempre foi assim e, provavelmente sempre será. Como irmã mais velha, com apenas um ano de diferença, tomei para mim a necessidade de estar presente para a minha irmã.
Benjamin e Maggie Kingston nunca fizeram muita questão de provar que nos amavam.
Às vezes, acredito que eles só nos tiveram para agradar a vovó.
Não é segredo para ninguém, que é ela quem comanda todo o dinheiro da família. Isso porque meus pais e, meus tios, deixam esse fato bem claro. Vovó disse que nós, adolescentes, não deveríamos saber dessas coisas. Mas, como não tomar conhecimento, quando tudo no que eles pensam é em suas festas e, amigos influentes?
Toma impossível conter a conversa entre os primos.
Podemos contar apenas uns com os outros.
Inclusive, vovó faz questão de dizer sempre:
“Eu vou brigar dez vezes mais com cada um senão fizerem nada para ajudar uns aos outros!”
Ela proclama tanto essas palavras, que elas ficam gravadas em nossa mente. Entretanto, acredito que mesmo se ela não dissesse tanto, elas ainda seriam uma espécie de “mantra” dos primos. Com progenitores como os nossos, é involuntário não amadurecer antes do tempo e, também defender com unhas e dentes as únicas pessoas que sempre estiveram com a gente. Porém, de tanto eu proteger Bessie, acredito que ela ainda trate as coisas no mundo de forma inocente.
A cena que vejo se desenrolar à minha frente é uma prova desta verdade.
— Vamos, Bessie burrinha, não consegue ler um simples texto? — As garotas riem, gargalham da dificuldade da minha irmã em proferir as palavras.
Bessie gagueja quando fica nervosa e, as pessoas ainda teimam em caçoar dela por isso.
Mas, não quando eu estou por perto, não quando um de nós está.
Vejo o exato instante em que uma estapeia o rosto da minha irmã, com força, deixando a bochecha com uma mancha vermelha em forma de dedos, enquanto a folha branca com sei lá o que escrito, vibra em suas mãos. Ela está aterrorizada e eu enxergo de maneira borrada, com a raiva pelo que fizeram atingindo seu ápice.
— Quem vocês pensam que são?! — brado.
Rostos convencidos me fitam sem afetação.
Não dou tempo para responderem, parto para a violência, assim como fizeram com a minha irmãzinha. Sou uma garota desprovida de paciência. Puxo o cabelo da “líder” delas e sinto quando alguns fios cedem, formando um chumaço em meus dedos. Sacudo a mão, só para retirá-los em sinal de desprezo.
— FICOU LOUCA?! — grita a inocente sofredora.
Bessie me olha como se eu fosse a sua salvação.
— Você que ficou por mexer com a minha irmã — vocifero.
— Vocês! Me ajudem! — implora, olhando para as amigas.
Estreito minhas pálpebras em duas fendas desafiadoras. Quem se intrometer terá o mesmo destino que essa idiota. Não sei se é a minha determinação em puni-la ou o meu ódio tão palpável que paira entre as garotas, o fato é que nenhuma arrisca intervir.
Elas permanecem acompanhando, enquanto eu estapeio a amiga em represália. Não demora para que nossa plateia aumente e de repente, escuto sons de pessoas incentivando a briga, gritando meu nome ou para a outra reagir, se não acabará deformada.
É errado, eu sei que é.
Mas, eu preciso descontar em alguém a raiva que sinto.
E ninguém a mandou mexer com Bessie, que é uma pessoa doce, incrível e não se intromete na vida de ninguém, vivendo com a cara enfiada em seus livros escolares. Se existe uma Kingston pacífica, essa é Bessie. Já eu? Bom, acredito que preciso aliviar minha frustração em algo.
Continuo com a agressão sem pensar em nada, visualizando apenas os olhos chorosos da minha irmã, a quem eu jurei proteger. Assisto pela minha visão periférica pessoas tentando conter a multidão e não demora para que consigam nos separar.
Somos prontamente convocadas à diretoria, com todos sabendo sobre a transgressão das normas da escola. Assim que chego à sala, sorrio maldosa ao vislumbrar o rosto vermelho e alguns pontos ensanguentados na filha da mãe que gosta de atormentar Bessie. Não posso mentir dizendo que a sua dor não me deixa feliz.
Posso ser qualquer coisa, menos, mentirosa.
A diretora me fita com extremo desgosto, como se eu fosse uma delinquente, por ter ensinado à outra a lição que seus pais deveriam passar. Acho engraçado que os dela sejam presentes ao passo que os meus não, e eu ainda saia como a errada da situação. Basta ela não mexer mais com a minha família que tudo bem por mim, não teremos problema algum.
— Missa disse que foi você quem causou todos esses machucados nela, Jenna, é verdade? — pergunta a mulher com um terninho engomado, óculos pendendo sobre o nariz, sendo amparado por uma cordinha dourada.
Ela não está feliz por ter que me dar sermão. Ninguém por ali fica feliz por ter que fazer isso com um Kingston.
— É.
— Só isso o que tem a dizer?
Senhora Rivera busca inutilmente me dar uma chance para redenção, mas a verdade é que eu não quero. Não se isso significar pedir desculpas ou coisa parecida, para a infeliz ao meu lado.
— Ela mexeu com Bessie, deu um tapa na minha irmã, tirando sarro junto das amigas por causa da dificuldade que ela tem em proferir as palavras. Era o mínimo a se fazer. Com os Kingstons, o mal feito aos seus, se paga com igualdade. Nós somos ruins para quem é ruim com a gente e, somos bons para quem é bom com a gente.
Todos se espantam com a minha fala, e em como ela soa resoluta.
— Essa menina é uma descontrolada! — brada os pais da Missa, logo que entram na sala.
Como esperado, os meus não os seguem. Imagino que estejam ocupados demais, para dar atenção à filha rebelde.
— Ligou para os meus pais? — questiono à diretora.
Finjo não ver suas pálpebras descendo em pesar antes de me responder.
— Sim, não poderão vir, sinto muito, querida.
Deixo um som de descaso escapar enquanto cruzo meus braços à frente do peito em uma forma de proteção.
— Não é uma surpresa. Deveria ter ligado para minha avó, ela sim viria.
Mas, enxergo em seu olhar, que a diretora não quer lidar com Pearl Kingston. Optou por me deixar sozinha, lançada aos lobos, para ser devorada viva, enquanto tento me defender como posso. Para minha sorte, esta não é a primeira vez e nem será a última.
— Os pais dela não estarem aqui não a impede de arcar com as consequências do seu ato selvagem — fala a mãe da aprendiz de babaca.
— Concordo com a senhora, porém, não podemos tomar atitudes drásticas, uma vez que a pessoa que começou as agressões foi sua filha.
Controlo minha vontade de sorrir.
— Isso é um absurdo! Quem pode provar? Essa incontrolável? — Indica a mim — Vai mesmo acreditar na palavra de alguém que só consegue usar de violência para se defender? Alguém que nem mesmo os pais têm tempo para educar?
Fecho minhas mãos em punho, para conter a onda de fúria por escutar a verdade lançada em minha direção. As pessoas não sabem de nada e se acham no direito de usarem o que pensam conhecer para nos atingir.
Escutamos batidas na porta.
Quando a diretora profere um “entre”, viro-me e vejo Bessie. Minha irmã está com o corpo curvado, enfrentando sua timidez para me ajudar. Quando nossos olhares se cruzam, eu chacoalho a cabeça em uma negativa para que ela não faça isso.
— E-e-e-eu – começa a gaguejar — e-e-e-eu – tenta de novo — quer di-di-di-zer, Missa me bate-te-te-eu porque disse que eu sou uma aberração — consegue continuar sem travar por diminuir seu nervosismo, porém ele volta com força total — mi-mi-mi-minha irmã só me aju-ju-dou. – Quando ela finaliza após tamanha dificuldade, me irrita enxergar a mãe e o pai com um sorriso debochado, uma cópia do que enfeita o rosto da filha.
Não é difícil adivinhar de quem ela puxou a arrogância e, falta de empatia.
— A palavra de uma gaga contra a minha filha educada. Podemos ver pelo rosto das duas quem realmente bateu em quem.
Minha irmã puxa o papel que tremia em suas mãos, quando tudo começou e o entrega à diretora. A mulher arregala os olhos ao ler o que está escrito. Assusto-me porque Bessie não quis entregá-lo nem mesmo para mim.
— Com base nessa folha, creio que Jenna não agiu certo, porém foi no calor da emoção para defender a irmã. As palavras aqui são no mínimo atrozes e, não justificáveis de forma alguma por parte de Missa, mesmo ela sendo uma adolescente e agirem dessa maneira as vezes. Não acredito que devemos punir uma das meninas, mas sim as duas. — Termina a diretora por fim.
Eu não venci, mas ela também não.
Peço que a diretora me entregue, no entanto, antes que o faça, a mulher intragável retira com brusquidão a folha para ler o que está escrito. Rasga diante de nossos olhos a prova de como a sua filha não é tão santa, quanto ela imagina. Na verdade, ela deve saber exatamente o tino de pessoa que está criando.
…