Livro ‘Território da Emoção’ por Moacyr Scliar

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Organizada e apresentada por Regina Zilberman, esta coletânea de crônicas dá sequência ao projeto da Companhia das Letras de publicar uma amostra significativa das crônicas escritas por Moacyr Scliar ao longo de mais de trinta anos de colaboração com o jornal Zero Hora, de Porto Alegre. A literatura e a medicina são dois eixos constantes na imaginação de Scliar: incansavelmente, o escritor – ele próprio médico sanitarista – voltou aos temas que o apaixonavam. Em sua concepção, ambos estão vinculados pela palavra. Assim, nestas crônicas desfilam médicos escritores (dos primórdios de Galeno e Vesálio até Thomas Mann, Tolstói e Molière); recordações dos anos de estudante na faculdade de medicina em Porto Alegre; histórias da prática médica; escritores doentes e o modo como lidaram com as próprias limitações físicas; escritores que escreveram sobre medicina… E ainda, numa outra vertente, questões políticas e éticas…

Páginas: 280 páginas; Editora: Companhia das Letras; Edição: 1 (13 de março de 2013); ISBN-10: 8535922385; ISBN-13: 978-8535922387; ASIN: B00C315RBQ

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Biografia do autor: Nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu em 27 de fevereiro de 2011. É autor de mais de 80 livros, uma obra que abrange vários gêneros: ficção, ensaio, crônica e literatura juvenil. Muitos destes foram publicados nos Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Suécia, Argentina, Colômbia, Israel e outros países, com grande repercussão crítica. Entre outros, recebeu os prêmios: Prêmio Joaquim Manoel de Mace­do (1974), Prêmio Erico Verissimo (1976), Prêmio Ci­da­de de Porto Alegre (1976), Prêmio Guimarães Rosa (1977), Prêmio Brasília (1977), Prêmio Jabuti (1988, 1993 e 2000), Prêmio Associa­ção Paulista de Críticos de Arte (1989), Prêmio Casa de las Americas (1989), Prêmio Pen Clube do Brasil (1990), Prêmio José Lins do Rego (Academia Brasileira de Letras, 1998). Formou-se em medicina em 1962, especializando-se em saúde pública. Em 1993 e 1997 foi professor visitante na Brown University (Departament for Portuguese and Brazilian Studies), nos Estados Unidos. Moacyr Scliar foi colunista dos jornais Zero Hora e Folha de S.Paulo e colaborou em vários órgãos da imprensa no país e no exterior. Tem textos adaptados para cinema, teatro, tevê e rádio, inclusive no ex­te­rior. Em 2003, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras.

Leia trecho do livro

I. LITERATURA E MEDICINA

Literatura e medicina: doze obras inesquecíveis

04/11/1995

A medicina e a palavra escrita sempre andaram juntas. A arte de curar foi evoluindo através de obras que eram reverenciadas pelos médicos como a Bíblia, a começar pelos textos atribuídos a Hipócrates — atribuídos, porque não se sabe se foi ele quem realmente os escreveu. Os livros de Galeno, que viveu no segundo século depois de Cristo, representaram a mais importante fonte de conhecimento sobre doenças durante o milênio que durou a Idade Média. O Regimen sanitatis Salernitanum, um livro sobre higiene escrito pelos médicos da chamada Escola de Salerno, já no fim do período medieval, era muito lido, entre outras razões porque composto em versos facilmente memorizáveis. De humani corporis fabrica, de Vesálio, foi o primeiro tratado de anatomia digno deste nome. E assim por diante: hoje qualquer estudante de medicina sabe que, em caso de dúvida, deve recorrer aos grossos manuais, o Cecil ou o Harrison. Claro, breve tudo isto estará em disquete; por enquanto, o livro ainda reina soberano.

Mas não é só nos textos científicos que está a medicina. A 24 literatura muitas vezes se inspirou na doença e na figura do médico para nos dar algumas obras magistrais. E muitos jovens buscaram a profissão influenciados pelo trabalho dos escritores.

Os meus preferidos? Aqui estão doze deles: A montanha mágica, de Thomas Mann, escrito numa época em que a tuberculose ainda era tratada em sanatório (como aconteceu com a mulher de Mann). Como todo grande escritor, Thomas Mann usa a doença para mergulhar na condição humana, porque, como ele mesmo diz, “a doença nada mais é que a emoção transformada”. A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, uma curta e dilacerante novela sobre um homem que está morrendo de câncer, enfrentando a hipocrisia e a indiferença de médicos e familiares. Arrowsmith, de Sinclair Lewis, uma irônica descrição dos bastidores da ciência. O dilema do médico, peça teatral de Bernard Shaw, cujo prefácio é uma das melhores análises sobre a mercantilização da medicina (“Pagar a um cirurgião pelas pernas que amputa da mesma forma que se paga a um padeiro pelos pães que faz é acabar com toda a racionalidade”). O doente imaginário, de Molière, também uma peça de teatro, também satírica. A cidadela, de A. J. Cronin, a lacrimosa história de um jovem médico, que levou vários jovens à faculdade de medicina. The Doctor Stories, de Williams Carlos Williams, grande escritor que, como pediatra, trabalhava em bairros pobres de sua cidade nos Estados Unidos. Olhai os lírios do campo, de Erico Verissimo, também sobre a comercialização da medicina. O alienista, de Machado de Assis, notável sátira à psiquiatria autoritária do fim do século xix. Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, sobre os racistas médicos da Bahia no começo do século. A peste, de Camus, e O amor nos tempos do cólera, de García Márquez: ficção nascendo das pragas. Obras importantes, deveriam figurar no currículo médico, junto com o Cecil e o Harrison.

Um anêmico famoso

22/02/2003


Em 1914, o escritor Monteiro Lobato, então fazendeiro de Taubaté, São Paulo, publicou em O Estado de S. Paulo dois artigos, “Urupês” e “Velha Praga”, queixando-se dos caboclos do interior, segundo ele, inadaptáveis à civilização. O texto de maior impacto falava de Jeca Tatu: caboclo apático e preguiçoso, comparável aos urupês, plantas parasitas.

Mas Lobato acabou abandonando essa visão irritada e pessimista. A mudança foi desencadeada pela leitura do relatório “Saneamento do Brasil”, dos sanitaristas Artur Neiva e Belisário Pena. Colaboradores do grande sanitarista Oswaldo Cruz, Neiva e Pena tinham, como seu mestre, viajado extensivamente pelo interior do Brasil. Na volta, redigiram um relatório descrevendo a espantosa miséria e a deprimente condição sanitária no interior do Brasil — o Nordeste, sobretudo.

Tal relatório mexeu com muita gente — Lobato, inclusive. O problema do Jeca Tatu, constatava-o agora, não era preguiça, era doença, sobretudo a verminose. Naquela época, era muito comum a necatorose ou ancilostomíase, causada por um minús- 26 culo verme que, vivendo no solo, penetra no corpo pela sola dos pés — a maioria dos brasileiros não tinha calçado — e termina seu ciclo no intestino, sugando o sangue e causando anemia, não raro grave; anemia esta responsável, juntamente com a desnutrição, pelo desânimo e pela fraqueza dos caboclos. Impressionado, dizia Lobato em texto dirigido ao imaginário Jeca: “Eu ignorava que eras assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas um zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não”.

Mas àquela altura Jeca Tatu estava famoso. Até Rui Barbosa recorreu a ele para protestar contra o poder público. Movido talvez pela culpa, Lobato achou que precisava fazer alguma coisa pelos Jecas do Brasil. Associou-se a Cândido Fontoura, farmacêutico que criara um tônico muito popular. Tratava-se de uma fórmula complexa, anunciada com um mágico pregão: “Ferro para o sangue, fósforo para os músculos e nervos”. Havia ainda um pouco de álcool, adicionado por razões de formulação, mas que não deixava de alegrar a pessoa (recentemente tal adição foi proibida pelo Ministério da Saúde). O Biotônico Fontoura — o nome foi dado por Lobato — era visto pelo público exatamente como isso, um tônico vital. A verdade é que funcionava, e provavelmente curou, ou melhorou, a anemia de muita gente.

Lobato foi adiante na colaboração literário-farmacêutica (segundo a expressão de Marisa Lajolo). Editou o Almanaque do Jeca Tatu, em que explicava, por meio de uma história simples, como se contrai a ancilostomíase e como se evita o problema. Jeca Tatu e sua magra, pálida e triste família recuperam a saúde graças ao Biotônico Fontoura e ao uso de sapatos. O caboclo se transforma em fazendeiro rico. Final feliz para ninguém botar defeito.

Jeca Tatu está meio esquecido, mas o problema que personificava continua presente. Ainda hoje a deficiência de ferro é o distúrbio nutricional mais comum no mundo e a principal causa de anemia na infância e na gravidez. Ocorre nos países subdesenvolvidos como um aspecto das múltiplas carências alimentares nessas regiões; mas pode ocorrer também em pessoas de melhor condição social. É uma situação na qual sempre se deve pensar. Para que depois, como Monteiro Lobato, não venhamos a nos arrepender

Literatura como tratamento

31/05/2003

Literatura serve para muitas coisas. Serve para informar, serve para divertir — e serve também para curar ou, ao menos, para minorar o sofrimento das pessoas. Duvidam? Pois então fiquem sabendo que desde 1981 existe nos Estados Unidos uma Associação Nacional para a Terapia pela Poesia, cuja finalidade é o uso da literatura para o desenvolvimento pessoal e o tratamento de situações patológicas. A associação edita o Journal for Poetry Therapy, realiza cursos e confere o título de especialista em biblioterapia. O biblioterapeuta trabalha em hospitais, instituições psiquiátricas e geriátricas, prisões. O método é relativamente simples: ele seleciona um poema, um conto, um trecho de romance que é lido para a pessoa. A resposta emocional desta é então discutida.

E respostas emocionais a textos podem ser muito intensas. Exemplo eloquente é Werther, de Goethe, cujo jovem personagem se suicida. A publicação da obra suscitou uma onda de suicídios por toda a Europa, coisa que até hoje é evocada quando se discute a veiculação de notícias similares pela mídia. O mecanismo básico que aí funciona é o da identificação, algo que começa muito cedo. Bruno Bettelheim mostrou que os contos de fadas exercem um papel importante na formação do psiquismo infantil, não apenas fornecendo modelos com os quais a criança pode se identificar, como também provendo uma válvula de escape para as tensões emocionais. Na adolescência, os modelos passam a ser outros. E houve época em que os jovens aprendiam a fazer sexo com a literatura conhecida como pornográfica (lembrança pessoal: jovens do Colégio Júlio de Castilhos devorando as páginas suspeitosamente amareladas de um velho livro cujo título não recordo, mas que falava na “grutinha do prazer”). E, no século xix, eram os grandes romances — aqueles de Balzac, por exemplo — que ensinavam as pessoas a viver. Esse papel foi assumido pelo cinema e pela tv, mas a proliferação das obras de autoajuda mostra que as pessoas continuam acreditando em livros como guias para a saúde e para a cura.

Por último, mas não menos interessante, a literatura é importante como fator de estabilidade emocional para os próprios escritores. A associação entre talento e distúrbio psíquico é antiga. Aristóteles já observava que o gênio com frequência é melancólico. Shakespeare dizia que se associam na imaginação o lunático, o poeta e o amante, o que tem contrapartida no dito popular: “De poeta e de louco todos nós temos um pouco”. Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria na Universidade Johns Hopkins, estudou a vida de numerosos poetas e escritores, concluindo que há “uma convincente associação, para não dizer real superposição”, entre temperamento artístico e distúrbio emocional ou mental (doença bipolar, no caso). Nessas condições, escrever pode ser uma forma de descarregar a angústia e de colocar (ao menos no papel) ordem no caos do mundo interno. Porque a palavra é um instrumento terapêutico, é o grande instrumento da psicanálise. E a palavra escrita tem a respeitabilidade, a aura mística que cerca textos fundadores de nossa cultura, como é o caso da Bíblia. Kafka dizia que era um absurdo trocar a vida pela escrita. Mas ele também reconhecia que sua própria vida era absurda e, nesse sentido, estava optando por uma alternativa com potencial para redimi-lo.

Não precisamos chegar ao extremo de um Kafka. Toda pessoa se beneficiará do ato de ler e de escrever. É terapia, sim, e é terapia prazerosa, acessível a todos. O que, em nosso tempo, não é pouca coisa.

A doença de Machado de Assis

27/09/2008

Machado de Assis, cujo centenário de falecimento será lembrado neste dia 29, não teve vida fácil. Mulato, pobre, descendente de escravos, órfão de mãe, ainda teve de enfrentar uma doença que para ele foi uma carga muito pesada. Machado sofria de epilepsia. A doença provavelmente teve início na infância; o escritor aludiu a “umas coisas esquisitas” que sentira quando menino, mas não esclareceu do que se tratava. Aliás, ele relutava muito em admitir seu problema, ainda que suas crises convulsivas tivessem sido testemunhadas por muitas pessoas.

Machado não falava da enfermidade nem mesmo para amigos íntimos e só a revelou à esposa, Carolina de Morais, depois do casamento. O embaraço aparece até mesmo em sua literatura. Na primeira edição de Memórias póstumas de Brás Cubas, ele diz, ao falar do sofrimento de uma personagem cujo amante morre: “Não digo que se carpisse; não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica…”. Nas edições posteriores a frase foi substituída por: “Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa…”. Por causa das convulsões, não raro mordia a língua, coisa que dificultava a fala, o que ele atribuía a “aftas”.

Machado não foi a única pessoa famosa a sofrer dessa doença muito frequente. O escritor russo Fiódor Dostoiévski teve cerca de quatrocentas crises epilépticas generalizadas convulsivas na fase madura de sua vida. As crises eram sempre seguidas de confusão mental, depressão e distúrbios transitórios de memória e fala. Mas o fato de a doença ser comum não eliminava o penoso estigma que representava, mesmo porque à época praticamente não havia tratamento eficaz.

Parece que Machado de Assis consultou o famoso dr. Miguel Couto e que tomou brometo, um fraco tranquilizante então usado, que não funcionou, causando inclusive efeitos indesejáveis. Mas Miguel Couto afirmava que a epilepsia se constituiu em um desafio para o escritor, um desafio que ele venceu com sua magnífica obra. Neste sentido, ele se identifica com outro grande autor que também foi epiléptico, Gustave Flaubert, e que também enfrentou com bravura o problema.

A epilepsia continua sendo uma doença muito comum, afetando, segundo se calcula, cerca de 50 milhões de pessoas no mundo. Mas a situação hoje é bem diferente daquela que ocorria na época de Machado. Há cerca de duas dezenas de medicamentos capazes de controlar as convulsões e, em certos casos, a cirurgia é eficaz. Após dois a cinco anos de tratamento bem-sucedido, a medicação pode ser suspensa em 70% das crianças e em 60% dos adultos. Machado de Assis certamente ficaria feliz com esta mudança.

Medicina e ficção

23/01/2010

Sherlock Holmes, de Guy Ritchie, com Robert Downey Jr. vivendo Sherlock, e Jude Law no papel de dr. Watson, é o mais novo lançamento numa longa série de filmes. O que não deixa de surpreender. O personagem foi criado há mais de um século — e sobrevive. Por quê?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que Holmes é um produto da Inglaterra vitoriana, uma sociedade em que a repressão, sexual, inclusive, era a regra. Os instintos reprimidos emergiam sob a forma de violência física e de crimes misteriosos, como aqueles de Jack, o Estripador. Diante disso, o raciocínio passava a ser a principal arma do detetive. E este raciocínio, por sua vez, tinha uma base científica. Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock, era médico, e inspirou-se num famoso cirurgião de Edimburgo, o dr. Joseph Bell, com quem trabalhou. Bell era capaz de fazer diagnósticos antes mesmo que os pacientes abrissem a boca, graças a seu notável poder de observação e a seu arguto raciocínio.

Sherlock Holmes igualmente parte de pequenos detalhes para suas deduções. Curiosamente, o dr. Watson, o amigo de Sherlock, é médico, mas não tem nenhuma habilidade especial. Na verdade, funciona mais como um interlocutor do que qualquer outra coisa. Mas Sherlock Holmes serve, sim, de modelo para um médico: o dr. House, da já longa série House, que foi escolhida como a melhor série televisiva no People’s Choice Awards, realizado em Los Angeles, e que, diferentemente do Oscar, resulta da votação do público via internet. Interpretado por Hugh Laurie, antropólogo de formação, House é um gênio do diagnóstico, mas um homem cínico, sarcástico, que não mostra muita simpatia para com os pacientes.

O dr. Bell sabia que era o modelo de Holmes. E não gostava disso. House explica a razão. Bell sabia que medicina não é apenas fazer diagnósticos, muito menos fazer diagnósticos brilhantes. Na maioria das vezes, isso não é necessário — nem difícil, com a avançada tecnologia hoje disponível. Difícil é tratar a doença, difícil é cuidar do paciente. Ao fim e ao cabo, a medicina é isso, uma relação especial entre pessoas.

Não são poucos os médicos que se transformaram em personagens, seja da literatura, seja do cinema, seja da tv, que gosta muito do hospital como cenário para seus dramas e ali coloca figuras como as de Ben Casey, do dr. Kildare, Marcus Welby, Meredith Grey (de Grey’s Anatomy). Funciona: na Inglaterra, um curioso estudo mostrou que as pessoas conheciam mais o dr. Kildare, e mesmo o dr. Watson, do que médicos ingleses cujo trabalho beneficiou extraordinariamente a humanidade: Joseph Lister, que introduziu a assepsia, e Edward Jenner, pioneiro da vacinação.

O dr. Bell tinha razão: ao menos em termos de medicina, há uma longa distância entre a realidade e a ficção. E a ficção às vezes ganha a briga.


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