Uma análise crua e perturbadora das ameaças às democracias em todo o mundo. Em “Como as Democracias Morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt investigam como a eleição de Donald Trump foi possível e como as democracias podem entrar em colapso. Ao comparar o caso de Trump com exemplos históricos de rompimento da democracia, como a ascensão de Hitler e Mussolini, os autores alertam que a democracia não termina mais com golpes violentos, mas sim com o enfraquecimento gradual de instituições cruciais como o judiciário e a imprensa, e a erosão de normas políticas. Este livro, um sucesso de público e crítica, serve como um guia essencial para entender e proteger as democracias ameaçadas em tempos conturbados como os que vivemos atualmente.
Editora: Zahar; 1ª edição (31 agosto 2018); Páginas: 272 páginas; ISBN-10: 9788537818008; ISBN-13: 978-8537818008; ASIN: 8537818003
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Biografia do autor: Steven Levitsky é professor de Ciência Política na Universidade Harvard, especializado na América Latina e no mundo em desenvolvimento. Autor de “Competitive Authoritarianism,” Levitsky ganhou vários prêmios por excelência no ensino. Daniel Ziblatt, também professor de Ciência Política em Harvard, estuda a Europa do século XIX até hoje. Seu livro mais recente é “Conservative Parties and the Birth of Democracy.” Ambos colaboram para publicações como The New York Times e Vox, compartilhando suas análises sobre política e democracia.
Resumo: Uma análise perturbadora das ameaças às democracias, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt comparam a eleição de Trump a eventos históricos como Hitler e Mussolini. Alertam sobre a erosão lenta de instituições e normas, essencial para entender e proteger democracias hoje.
Trecho do livro
A nossas famílias:
Liz Mineo e Alejandra Mineo-Levitsky & Suriya, Lilah e Talia Ziblatt
Sumário
Prefácio
Introdução
Alianças fatídicas
2. Guardiões da América
3. A grande abdicação republicana
4. Subvertendo a democracia
5. As grades de proteção da democracia
6. As regras não escritas da política noite-americana
7. A desintegração
8. Trump contra as grades de proteção
9. Salvando a democracia
Prefácio
Democracias tradicionais entram em colapso? Essa é a questão que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt — professores de Harvard e estudiosos importantes da área — respondem aqui. Publicado nos Estados Unidos e na. Inglaterra no começo de 2018, Como as democracias morrem rapidamente se transformou no trabalho com maior repercussão sobre o assunto, o que pode ser atestado pelas resenhas elogiosas nos principais jornais e pelo grande número de entrevistas dos autores disponíveis no YouTube. É sintomático que um estudo sobre a crise das democracias tenha despertado tanto interesse nas duas mais tradicionais democracias do mundo.
Para. nós brasileiros, essa é uma questão histórica que voltou a ser muito presente de 2013 para cá., período em que temos vivido com a sensação permanente de que algumas coisas estão fora de lugar no nosso sistema político. Por isso, é fundamental aprender sobre os riscos enfrentados pelas democracias tradicionais, em especial a norte-americana.
Lembro que quando comecei a cursar o mestrado, no final dos anos 1980, a literatura sobre transição democrática estava em alta. Uma das principais preocupações da ciência política na época era entender em que condições um regime político autoritário torna-se democrático. Os textos de Juan Linz e Guillermo O’Donnell eram lidos em todo o mundo, mas conquistaram interesse especial em países que, como o Brasil, faziam a passagem de um governo militar para um regime político aberto.
De lá para cá, o número de países democráticos não parou de crescer. O aumento se deveu, sobretudo, à transição dos países comunistas do Leste Europeu, ao fim das ditaduras latino-americanas e à criação de instituições democráticas em diversos países africanos recém-independentes. Segundo o Polity Project (projeto que classifica o regime político dos países ao longo do tempo), em 1985 havia 42 democracias, onde moravam 20% da população mundial. Em 2015, o número saltou para 103, com 56% da população mundial.
A maré democrática motivou uma outra corrente de estudos: as pesquisas sobre a qualidade e a performance desses governos. O propósito era, sobretudo, comparar democracias, de modo a identificar fatores associados ao melhor desempenho de algumas delas em uma série de quesitos. Por que as mulheres e minorias étnicas são representadas em maior número em alguns países? Existe alguma relação entre as regras eleitorais e o grau de corrupção? Por que mais cidadãos comparecem para votar em alguns países do que em outros? O investimento em políticas sociais é maior em países federalista.s e descentralizados?
A última onda de entusiasmo com a transição de regimes fechados para a democracia foi a Primavera Árabe (fim de 2010 e começo de 2011). Naquele momento seria difícil imaginar que, poucos anos depois, um dos temas centrais da reflexão política seria a “recessão democrática” — expressão cunhada pelo cientista político norte-americano Lany Diamond para descrever o fim do processo contínuo de ampliação de democracias no mundo. O fracasso da democratização nos países que promoveram a Primavera Árabe (apenas a Tunísia conseguiu fazer uma passagem bem-sucedida) e a reversão de experiências similares incipientes na África, no Leste Europeu e na Ásia ensejaram um novo ciclo de análises, em geral pessimistas, sobre os Estados democráticos.
Inicialmente, a ideia de recessão democrática estava associada às dificuldades de surgimento de novos governos desse tipo desde meados da década de 2000. Nos últimos anos, porém, a preocupação dos estudiosos passou a ser a crise das democracias consolidadas. A pergunta agora é: democracias tradicionais entram em colapso? Há uma diferença fundamental entre saber por que ela não se consolidou no Egito e em que medida poderia entrar em colapso na Itália. Mas, de uma forma ou de outra, o teimo recessão democrática passou a designar os dois processos.
Em Como as democracias morrem, Levitsky e Ziblatt fazem referência a diversos contextos de declínio democrático no mundo, mas sua preocupação central é com a crise do sistema político norte-americano — sobretudo a partir das ameaças trazidas pela ascensão de Donald Trump. Dessa forma, a campanha eleitoral de Trump, em 2016, e seus primeiros meses de governo, em 2017, recebem atenção especial dos autores, ocupando espaço privilegiado em sua análise.
Entre os diversos achados do livro, destaco dois. O primeiro diz respeito à mudança nas regras de escolha dos candidatos a presidente e como isso teria “facilitado” a ascensão de um outsider como Trump. Durante décadas, os candidatos que concorriam pelos dois partidos eram escolhidos por um pequeno grupo de dirigentes partidários; escolha que, nas palavras dos autores, acontecia “em conversas de bastidores em salas enfumaçadas”. A partir de 1972 a vasta maioria dos delegados das convenções dos partidos Republicano e Democrata passou a ser escolhida em primárias. Ou seja, a decisão de quem será o candidato do partido deixou de ser feita por um pequeno grupo de dezenas de dirigentes para ser feita por milhões de eleitores.
Se as primárias garantem que cidadãos comuns influenciem na escolha do candidato que concorrerá pelo partido, por outro lado, elas podem ocorrer de modo tal que os líderes tradicionais percam o controle do processo de escolha do candidato Foi o que aconteceu com Trump. Embora sem suporte dos “caciques” do partido, ele garantiu sua indicação por conta do grande apoio que recebeu dos eleitores. Com a meteórica ascensão de Trump, dizem Levitsky e Ziblatt, os dirigentes republicanos acabaram por perder sua função de “guardiões da democracia”.
Sou de uma geração fortemente influenciada pelo institucionalismo, que é o nome de uma das principais correntes da ciência política contemporânea. A maioria dos estudos de corte institucionalista enfatiza o peso das normas legais e arranjos institucionais para explicar o comportamento político. Mas, contrariando um pouco essa ideia, os autores conferem um papel primordial às regras informais em Como as democracias morrem. Esse é o segundo ponto que destaco do livro.
Em uma passagem em que analisam o papel das regras informais, os autores lembram as normas que regem o basquete de meia quadra nos Estados Unidos. Impossível não fazer analogia com as regras informais que regem a famosa pelada jogada no Brasil. Na minha infância o esquema era dez minutos ou dois gois, o que acontecesse primeiro determinava o fim da partida; o time que ganha fica, o de fora entra; se nenhum jogador quiser ir para o gol, o rodízio é compulsório. Para Levitsky e Ziblatt, em um regime democrático é esperado que os dirigentes políticos acatem as normas informais do jogo: “A democracia, claro, não é basquete de rua”, dizem eles, “porém, regras escritas e árbitros funcionam melhor, e sobrevivem mais tempo, em países em que as constituições escritas são fortalecidas por suas próprias regras não escritas do jogo.”
As duas regras informais decisivas para o funcionamento de uma democracia seriam a tolerância mútua e a reserva institucional. Tolerância mútua é reconhecer que os rivais, caso joguem pelas regras institucionais, têm o mesmo direito de existir, competir pelo poder e governar. A reserva institucional significa evitar as ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito. Portanto, para além do texto da Constituição, uma democracia necessitaria de líderes que conheçam e respeitem as regras informais.
Outro tema central presente no livro é a reforma política. Para os brasileiros, que há duas décadas ouvem falar da reforma política no imperativo, as passagens sobre o assunto mostram como duas democracias podem ter desafios tão diferentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, um ponto fundamental é definir como os distritos eleitorais serão delineados, uma vez que evitar o gerrymandering – manipulação do desenho dos distritos para favorecer determinados grupos — é uma das principais questões para países que usam o voto distrital. Esse não é o nosso caso, já que escolhemos nossos deputados utilizando o sistema proporcional.
Os norte-americanos também precisam lidar com o grande número de adultos não registrados como eleitores, pois as regras de inscrição variam de estado para estado e são muito exigentes em alguns deles, excluindo um contingente expressivo de eleitores. Já. no Brasil, com o registro obrigatório e o cadastro nacional de eleitores, esse problema não existe. Para combater a situação, os autores defendem, entre outras medidas, a introdução do voto obrigatório nos Estados Unidos; esse mesmo que usamos desde os anos 1930, e que para muitos (não para mim) é um dos maiores problemas da democracia brasileira.
Como disse no início, estamos atravessando desde 2013 um momento turbulento que nos faz ter a sensação de que algo está fora da ordem em nossa democracia. E isso torna o livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ainda mais importante para nós. Entender o modo com que regimes democráticos tradicionais e consolidados são enfraquecidos de modo “legal”, por dentro, é fundamental. E Como as democracias morrem realmente nos ajuda nessa tarefa.
Jairo NICOLAU*
*Jairo Nicolau é cientista político, professor titular do Departamento de Ciência. Política da. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPq. Autor de diversos livros, publicou pela Zahar História do voto no Brasil (2002), Eleições no Brasil (2012) e Representantes de quem? (2017).
Introdução
A DEMOCRACIA NORTE-AMERICANA está em perigo? Essa é uma pergunta que nós nunca pensamos que faríamos. Somos colegas há quinze anos,
refletindo, escrevendo, ensinando aos alunos sobre fracassos da democracia em outros lugares e tempos — os sombrios anos 1930 na Europa, os repressivos anos 1970 na América Latina. Passamos anos pesquisando novas formas de autoritarismo que surgiam em todo o mundo. Para nós, tem sido uma obsessão estudar como e por que as democracias morrem.
Agora, contudo, voltamos a atenção para o nosso próprio país. Ao longo dos últimos dois anos, vimos políticos dizendo e fazendo coisas sem
precedentes nos Estados Unidos — mas que reconhecemos como precursoras de crises democráticas em outros países. Sentimos medo, como muitos de nossos compatriotas, mesmo quando tentamos nos tranquilizar, repetindo a nós mesmos que as coisas aqui não podem estar tão ruins assim. Afinal de contas, embora saibamos que as democracias são sempre frágeis, a democracia em que vivemos de certo modo conseguiu desafiar a
gravidade. Nossa Constituição, nosso credo nacional de liberdade e igualdade, nossa classe média historicamente robusta, nossos altos níveis de saúde e educação, nosso setor privado diversificado — tudo isso deveria nos imunizar contra o tipo de colapso democrático que aconteceu em outras
partes do mundo.
No entanto, estamos preocupados. Os políticos norte-americanos agora tratam seus rivais como inimigos, intimidam a imprensa livre e ameaçam rejeitar o resultado de eleições. Eles tentam enfraquecer as salvaguardas institucionais de nossa democracia, incluindo tribunais, serviços de inteligência, escritórios e comissões de ética. Os estados norte-americanos, outrora louvados pelo grande jurista Louis Brandeis como “laboratórios de democracia”, correm o risco de se tornar laboratórios de autoritarismo, à medida que os que estão no poder reescrevem regras eleitorais, redesenham distritos eleitorais e até mesmo rescindem direitos eleitorais para garantir que não perderão. E em 2016, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um homem sem nenhuma experiência em cargos públicos, com aparente pouco compromisso no que diz respeito a direitos constitucionais e dono de claras tendências autoritárias foi eleito presidente.
O que significa tudo isso? Estamos vivendo o declínio e queda de uma das mais velhas e mais bem-sucedidas democracias do mundo?
AO MEIO-DIA DE 11 de setembro de 1973, depois de meses de tensão crescente nas ruas de Santiago, no Chile, jatos Hawker Hunter de fabricação britânica mergulharam em rasantes, lançando bombas sobre La Moneda, o palácio presidencial neoclássico no centro da cidade. Enquanto as bombas continuavam a cair, o edifício ardeu em chamas. O presidente Allende, eleito três anos antes como líder de uma coalizão de esquerda, estava entrincheirado no palácio. Ao longo do seu mandato, o Chile estivera tomado pela inquietação social, a crise econômica e a paralisia política. Allende dissera que não abandonaria o posto até ter cumprido seu dever — mas agora chegara o momento da verdade. Sob o comando do general Augusto Pinochet, as forças armadas chilenas estavam tomando o controle do país. De manhã cedo naquele dia fatídico, Allende propôs palavras de desafio num pronunciamento em cadeia nacional de rádio, esperando que seus muitos apoiadores fossem às ruas em defesa da democracia. Mas a resistência nunca se materializou. A polícia militar que guardava o palácio o abandonara; seu pronunciamento foi recebido com silêncio. Em poucas horas, Allende estava morto. E, desse modo, também a democracia chilena.
É assim que tendemos a pensar na morte de democracias: nas mãos de homens armados. Durante a Guerra Fria, golpes de Estado foram responsáveis por quase três em cada quatro colapsos democráticos. As democracias em países como Argentina, Brasil, Gana, Grécia, Guatemala, Nigéria, Paquistão, Peru, República Dominicana, Tailândia, Turquia e Uruguai morreram dessa maneira. Mais recentemente, golpes militares derrubaram o presidente egípcio Mohamed Morsi em 2013 e a primeira-ministra tailandesa Yingluck Shinawatra em 2014. Em todos esses casos, a democracia se desfez de maneira espetacular, através do poder e da coerção militares.
Porém, há outra maneira de arruinar uma. democracia. É menos dramática, mas igualmente destrutiva. Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos — presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. Alguns desses líderes desmantelam a democracia rapidamente, como fez Hitler na sequência do incêndio do Reichstag em 1933 na Alemanha. Com mais frequência, porém, as democracias decaem aos poucos, em etapas que mal chegam a ser visíveis.’
Na Venezuela, por exemplo, Hugo Chávez era um outsider político que atacava o que ele caracterizava como uma elite governante corrupta, prometendo construir uma democracia mais “autêntica”, que usasse a imensa riqueza em petróleo do país para melhorar a vida dos pobres. Com habilidade, e tirando proveito da ira dos venezuelanos comuns, muitos dos quais se sentiam ignorados ou maltratados pelos partidos políticos estabelecidos, Chávez foi eleito em 1998. Como disse uma mulher em Barinas, o estado natal de Chávez, na noite da eleição: “A democracia está infectada. E Chávez é o único antibiótico que temos.”
Quando Chávez lançou a sua prometida revolução, ele o fez democraticamente. Em 1999, realizou eleições para uma nova Assembleia Constituinte, na qual seus aliados conquistaram uma maioria esmagadora. Isso permitiu que os chavistas escrevessem sozinhos uma nova Constituição. Foi uma Constituição democrática, contudo, e, para fortalecer sua legitimidade, novas eleições presidenciais e legislativas foram realizadas no ano 2000. Chávez e seus aliados também as ganharam. O populismo de Chávez desencadeou uma intensa oposição, e, em abril de 2003, ele foi brevemente derrubado pelos militares. Mas o golpe falhou, permitindo que reivindicasse para si uma legitimidade ainda maior.
Foi somente em 2003 que Chávez deu seus primeiros passos claros rumo ao autoritarismo. Com o apoio público enfraquecendo, ele postergou um referendo liderado pela oposição que o teria destituído — adiando-o para o ano seguinte, quando os preços do petróleo, em forte alta, impulsionaram sua posição o bastante para que ele ganhasse. Em 2004, o governo fez uma lista negra dos que tinham assinado a petição para o referendo e aparelhou a Suprema Corte, alterando sua composição, mas a reeleição esmagadora de Chávez em 2006 permitiu que ele mantivesse um verniz democrático. O regime chavista se tornou mais repressivo depois de 2006, fechando uma importante emissora de televisão, prendendo ou exilando políticos, juízes e figuras da mídia oposicionistas com acusações dúbias e eliminando limites aos mandatos presidenciais para que Chávez pudesse permanecer indefinidamente no poder. Quando Chávez, então morrendo de câncer, foi reeleito em 2012, a disputa foi livre, mas não justa: o chavismo controlava grande parte da mídia e desdobrou a vasta máquina do governo em seu favor. Após a morte de Chávez um ano depois, seu sucessor, Nicolás Maduro, ganhou outra eleição questionável, e, em 2014, seu governo prendeu um dos principais líderes da oposição. Ainda assim, a vitória acachapante da oposição nas eleições legislativas de 2015 pareceu desmentir a afirmação dos críticos de que a Venezuela não era mais democrática. Só quando uma Assembleia Constituinte unipartidária usurpou o poder do Congresso em 2017, quase duas décadas depois de Chávez ter sido eleito presidente pela primeira vez, a Venezuela foi amplamente reconhecida como uma autocracia.
É assim que as democracias morrem agora. A ditadura ostensiva — sob a forma de fascismo, comunismo ou domínio militar — desapareceu em grande parte do mundo.3 Golpes militares e outras tomadas violentas do poder são raros. A maioria dos países realiza eleições regulares. Democracias ainda morrem, mas por meios diferentes. Desde o final da Guerra Fria, a maior parte dos colapsos democráticos não foi causada por generais e soldados, mas pelos próprios governos eleitos. Como Chávez na Venezuela, líderes eleitos subverteram as instituições democráticas em países como Geórgia, Hungria, Nicarágua, Peru, Filipinas, Polônia, Rússia, Sri Lanka, Turquia e Ucrânia. O retrocesso democrático hoje começa nas urnas.
A via eleitoral para o colapso é perigosamente enganosa. Com um golpe de Estado clássico, como no Chile de Pinochet, a morte da democracia é imediata e evidente para todos. O palácio presidencial arde em chamas. O presidente é morto, aprisionado ou exilado. A Constituição é suspensa ou abandonada. Na via eleitoral, nenhuma dessas coisas acontece. Não há tanques nas ruas. Constituições e outras instituições nominalmente democráticas restam vigentes. As pessoas ainda votam. Autocratas eleitos mantêm um verniz de democracia enquanto corroem a sua essência.
Muitos esforços do governo para subverter a democracia são “legais”, no sentido de que são aprovados pelo Legislativo ou aceitos pelos tribunais. Eles podem até mesmo ser retratados como esforços para aperfeiçoar a democracia — tornar o Judiciário mais eficiente, combater a corrupção ou limpar o processo eleitoral. Os jornais continuam a ser publicados, mas são comprados ou intimidados e levados a se autocensurar. Os cidadãos continuam a criticar o governo, mas muitas vezes se veem envolvidos em problemas com impostos ou outras questões legais. Isso cria perplexidade e confusão nas pessoas. Elas não compreendem imediatamente o que está acontecendo. Muitos continuam a acreditar que estão vivendo sob uma democracia.’ Em 2011, uma pesquisa da Latinobarómetro perguntou aos venezuelanos que nota dariam a seu país de 1 (“nada democrático”) a 10 (“completamente democrático”), e 51% das respostas deram nota 8 ou mais.
Como não há um momento único — nenhum golpe, declaração de lei marcial ou suspensão da Constituição — em que o regime obviamente “ultrapassa o limite” para a ditadura, nada é capaz de disparar os dispositivos de alarme da sociedade. Aqueles que denunciam os abusos do governo podem ser descartados como exagerados ou falsos alarmistas. A erosão da democracia é, para muitos, quase imperceptível.
ATÉ QUE PONTO a democracia norte-americana é vulnerável a essa forma de retrocesso? Suas fundações são sem dúvida mais fortes do que as de países como Venezuela, Turquia ou Hungria. Mas serão fortes o bastante?
Responder a essa pergunta exige que nos afastemos das manchetes e plantões de notícias cotidianos para ampliar nossa visão, tirando lições das experiências de outras democracias mundo afora e ao longo da história. Estudar crises em outras democracias permite uma melhor compreensão dos desafios enfrentados pela própria democracia americana. Com base na experiência histórica de outras nações, por exemplo, fomos capazes de conceber uma prova dos nove para ajudar a identificar potenciais autocratas antes de eles chegarem ao poder. Nós podemos aprender com os erros cometidos por líderes democráticos do passado ao abrirem a porta para intenções autoritárias, mas também com as estratégias usadas por outras democracias para manter os extremistas fora do poder. Uma abordagem comparativa também revela como autocratas eleitos em diferentes partes do mundo empregam estratégias notavelmente semelhantes para subverter as instituições democráticas. À medida que esses padrões se tornam visíveis, os passos rumo ao colapso se tornam menos ambíguos — e mais fáceis de combater. Saber como cidadãos em outras democracias resistiram com sucesso a autocratas eleitos, ou por que tragicamente não conseguiram fazê-lo, é essencial para aqueles que procuram defender a democracia norte-americana hoje.
Nós sabemos que demagogos extremistas surgem de tempos em tempos em todas as sociedades, mesmo em democracias saudáveis. Os Estados Unidos tiveram o seu quinhão, incluindo Henry Ford, Huey Long, Joseph McCarthy e George Wallace. O teste essencial para a democracia não é se essas figuras surgem, mas, antes de tudo, se líderes políticos e especialmente os partidos políticos trabalham para evitar que eles acumulem poder —mantendo-os fora das chapas eleitorais dos partidos estabelecidos, recusando-se a endossar ou a se alinhar com eles e, quando necessário, juntando forças com rivais para apoiar candidatos democráticos. Isolar extremistas populares exige coragem política. Porém, quando o medo, o oportunismo ou erros de cálculo levam partidos estabelecidos a trazerem extremistas para as correntes dominantes, a democracia está em perigo.
Uma vez que um aspirante a ditador consegue chegar ao poder, a democracia enfrenta. um segundo teste crucial: irá ele subverter as instituições democráticas ou ser constrangido por elas? As instituições isoladamente não são o bastante para conter autocratas eleitos. Constituições têm que ser defendidas — por partidos políticos e cidadãos organizados, mas também por normas democráticas. Sem normas robustas, os freios e contrapesos constitucionais não servem como os bastiões da democracia que nós imaginamos que eles sejam. As instituições se tornam armas políticas, brandidas violentamente por aqueles que a.s controlam contra aqueles que não as controlam. É assim que os autocratas eleitos subvertem a democracia — aparelhando tribunais e outras agências neutras e usando-os como armas, comprando a mídia e o setor privado (ou intimidando-os para que se calem) e reescrevendo as regras da política para mudar o mando de campo e virar o jogo contra os oponentes. O paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam a.s próprias instituições da democracia — gradual, sutil e mesmo legalmente — para matá-la.
OS ESTADOS UNIDOS FRACASSARAM no primeiro teste em novembro de 2016, quando elegemos um presidente cuja sujeição às normas democráticas é dúbia. A surpreendente vitória de Donald Trump foi viabilizada não apenas pela insatisfação das pessoas, mas também pelo fracasso do Partido Republicano em impedir que um demagogo extremista em suas próprias fileiras conquistasse a indicação.
Até que ponto a ameaça é séria agora? Muitos analistas se fiam na Constituição, que foi projetada justamente para frustrar e conter demagogos como Donald Trump. O sistema madisoniano de freios e contrapesos do país já durou mais de dois séculos. Sobreviveu à Guerra Civil, à Grande Depressão, à Guerra Fria e a Watergate. Então, com certeza será capaz de sobreviver a Trump.
Não temos tanta certeza. Historicamente, o sistema de freios e contrapesos tem funcionado bastante bem — mas não, ou não inteiramente, em função do sistema constitucional projetado pelos fundadores. As democracias funcionam melhor — e sobrevivem mais tempo — onde as constituições são reforçadas por normas democráticas não escritas. Duas normas básicas preservaram os freios e contrapesos dos Estados Unidos, a ponto de as tomarmos como naturais: a tolerância mútua, ou o entendimento de que partes concorrentes se aceitem umas às outras como rivais legítimas, e a contenção, ou a ideia de que os políticos devem ser comedidos ao fazerem uso de suas prerrogativas institucionais. Essas duas normas sustentaram a democracia dos Estados Unidos durante a maior parte do século XX. Os líderes dos dois maiores partidos se aceitaram como legítimos e resistiram à tentação de usar seu controle temporário das instituições em favor da máxima vantagem partidária. Normas de tolerância e comedimento serviam como grades flexíveis de proteção da democracia norte-americana, ajudando a evitar o tipo de luta sectária mortal que destruiu democracias em outras partes do mundo, inclusive a Em-opa nos anos 1930 e a América do Sul nos anos 1960 e 1970.
Hoje, contudo, as grades de proteção da democracia nos Estados Unidos estão se enfraquecendo. A erosão das normas democráticas começou nos anos 1980 e 1990 e se acelerou nos anos 2000. Na época em que Barack Obama foi eleito presidente, muitos republicanos questionaram a legitimidade de seus rivais do Partido Democrata e abandonaram a contenção em nome de uma estratégia de ganhar por quaisquer meios necessários. Donald Trump pode ter acelerado esse processo, mas não o causou. Os desafios que confrontam a democracia norte-americana são de um nível mais profundo. O enfraquecimento de nossas normas democráticas está enraizado na polarização sectária extrema — uma polarização que se estende além das diferenças políticas e adentra conflitos de raça e cultura. Os esforços dos Estados Unidos para alcançar a igualdade racial enquanto a sociedade norte-americana se torna cada vez mais diversa alimentaram uma reação insidiosa e a intensificação da polarização.6 E, se uma coisa é clara ao estudarmos colapsos ao longo da história, é que a polarização extrema é capaz de matar democracias.
Portanto, há, sim, razões para alarme. Não apenas os noite-americanos elegeram um demagogo em 2016, mas o fizeram numa época em que as normas que costumavam proteger a nossa democracia já estavam perdendo suas amarras. Contudo, se as experiências de outros países nos ensinam que a polarização é capaz de matar as democracias, elas nos ensinam também que esse colapso não é inevitável nem irreversível. Tirando lições de outras democracias em crise, este livro sugere estratégias que os cidadãos devem — e não devem — seguir para defender a democracia nos Estados Unidos.
Muitos norte-americanos estão amedrontados, e não sem motivo, pelo que está acontecendo com o nosso país. Porém, proteger nossa democracia exige mais do que medo ou indignação. Nós temos que ser humildes e ousados. Precisamos aprender com a experiência de outros países a ver os sinais anunciadores — e a reconhecer os alarmes falsos. Temos que estar vigilantes e cientes das condutas equivocadas que arruinaram outras democracias. E temos que ver como os cidadãos se levantaram para responder às crises democráticas do passado, superando divisões profundamente arraigadas entre si para evitar o colapso. Dizem que a história não se repete, mas rima. A promessa da história e a esperança deste livro é que possamos encontrar as rimas antes que seja tarde demais.