Livro ‘Anne de Green Gables’ por Lucy Maud Montgomery

ANNE DE GREEN GABLES PDF
Livro 'Anne de Green Gables' por Lucy Maud Montgomery
Se você gostou de Pollyanna, vai se apaixonar por Anne de Green Gables. Quando os irmãos Marilla e Matthew Cuthbert, de Green Gables, na Prince Edward Island, no Canadá, decidem adotar um órfão para ajudá-los nos trabalhos da fazenda, não estão preparados para o "erro" que mudará suas vidas: Anne Shirley, uma menina ruiva de 11 anos, acaba sendo enviada, por engano, pelo orfanato. Apesar do acontecimento inesperado, a natureza expansiva, sempre de bem com a vida, a curiosidade, a imaginação peculiar e a tagarelice da menina conquistam rapidamente os relutantes pais adotivos...
Capa comum: 320 páginas
Editora: Autêntica; Edição: 1 (15 de setembro de 2019)
Idioma: Português
ISBN-10: 8551306006
Dimensões do produto: 22,8 x 16 x 1,6 cm

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Leia trecho do livro

Livro 'Anne de Green Gables' por Lucy Maud Montgomery

SUMÁRIO

Livro 'Anne de Green Gables' por Lucy Maud Montgomery

A senhora Rachel Lynde morava exatamente no ponto em que a estrada principal de Avonlea descia rumo a um pequeno vale, rodeado por bétulas e brincos-de-princesa e atravessado por um riacho cuja nascente ficava lá atrás, em um bosque, na propriedade do velho senhor Cuthbert. Esse riacho era um curso de água veloz e intrincado em seu percurso pelo bosque, com cascatas e poços secretos e sombrios. Entretanto, quando se aproximava do vale da família Lynde, o riacho ficava tranquilo e bem-comportado, pois nem mesmo um mero curso de água poderia passar diante da porta da senhora Rachel Lynde sem o devido respeito ao decoro e à decência. E é bastante provável que o riacho estivesse ciente de que a senhora Rachel estaria sentada perto da janela, mantendo os olhos bem atentos a tudo e a todos que passassem por ali – fossem riachos, crianças ou qualquer outra coisa –, e que, caso ela percebesse algo estranho ou fora do lugar habitual, nunca descansaria enquanto não descobrisse tudo a respeito.

Havia muita gente no pequeno povoado de Avonlea – e fora dele – que gostava de bisbilhotar a vida dos vizinhos, mesmo que para isso fosse preciso negligenciar os próprios assuntos; mas a senhora Rachel era uma daquelas criaturas capazes de cuidar de seus afazeres e ainda tomar conta da vida das outras pessoas. Ela era uma excelente dona de casa; sempre cumpria suas obrigações, e fazia isso muito bem. “Administrava” o Grupo de Costura, ajudava na gerência da escola dominical e era quem dava o mais valioso suporte para a Sociedade de Ajuda Humanitária da Igreja e ao Instituto para Missões Estrangeiras.

No entanto, com todas essas ocupações, a senhora Rachel ainda tinha tempo mais do que suficiente para permanecer durante horas sentada perto da janela de sua cozinha, tricotando colchas (já tinha feito dezesseis delas, como as donas de casa de Avonlea costumavam contar, sempre com muita admiração) e mantendo os olhos sempre bem atentos à estrada principal, que atravessava o vale e subia sinuosamente a colina íngreme e avermelhada mais adiante. Como Avonlea ocupava uma pequena península triangular no golfo de Saint Lawrence, com água dos dois lados, qualquer pessoa que entrasse ou saísse do povoado teria de passar por aquela estrada e, portanto, submeter-se ao julgamento severo e invisível de olhos que tudo viam.

E era assim que a senhora Rachel se encontrava certa tarde, no início do mês de junho. Os raios quentes e brilhantes do sol entravam pela janela; o pomar, na encosta abaixo da casa, estava coberto de flores brancas e cor-de-rosa, sobre as quais voavam e zumbiam muitas abelhas. Thomas Lynde – um homem pequeno e dócil, a quem o povo de Avonlea se referia como “o marido de Rachel Lynde” – estava plantando, na encosta da colina, no terreno atrás do celeiro, suas últimas sementes de nabo. E era quase certo que Matthew Cuthbert também estivesse semeando as dele no grande campo vermelho ao lado do riacho, bem mais à frente, na propriedade chamada Green Gables. A senhora Rachel sabia disso porque tinha escutado, no fim da tarde do dia anterior – na loja de William J. Blair, em Carmody – Matthew dizer a Peter Morrisson que plantaria suas sementes de nabo naquele horário. Obviamente, Peter havia perguntado isso a ele, pois nunca se soube de nenhuma ocasião em que Matthew Cuthbert tivesse oferecido, por sua própria iniciativa, alguma informação sobre qualquer coisa relativa a sua vida.

No entanto, contrariando a previsão da senhora Rachel, lá estava Matthew Cuthbert, às três e meia da tarde de um dia de trabalho, atravessando o vale e subindo tranquilamente a colina do outro lado. E, ainda mais surpreendentemente, usando uma camisa de colarinho branco e seu melhor terno, o que era uma prova incontestável de que ele sairia de Avonlea. Além disso, viajava em sua charrete puxada pela égua alazã, o que significava que percorreria uma distância considerável. Ora, aonde Matthew Cuthbert estava indo, e por que se dirigia para tal lugar?

Caso se tratasse de qualquer outro homem em Avonlea, a senhora Rachel teria hábil e rapidamente chegado a uma ótima dedução que responderia plenamente a essas duas perguntas. No entanto , era tão raro Matthew sair de Green Gables que, sem dúvida nenhuma, ele estava fazendo aquilo por alguma razão realmente importante e extraordinária. Ele era o homem mais tímido que já existiu no povoado e odiava ter de ficar entre estranhos ou ir a qualquer lugar em que precisasse conversar. Portanto, ver Matthew Cuthbert elegantemente vestido, trajando colarinho branco e guiando a charrete era algo que não acontecia com frequência. E, por mais que a senhora Rachel se esforçasse, ela não conseguia chegar a nenhuma conclusão sobre aquilo, o que acabou por estragar sua diversão daquela tarde.

“Vou a Green Gables depois do chá; preciso descobrir, com a ajuda de Marilla, onde ele foi e por que motivo”, a digna senhora finalmente decidiu. “Geralmente, ele não vai à cidade nessa época do ano e nunca visita ninguém. Se estivesse precisando de mais sementes de nabo, não teria se vestido tão bem nem sairia na charrete, só pa ra buscar mais. Mas também não estava indo rápido o suficiente para alguém supor que pretendia procurar um médico. De fato, alguma coisa deve ter acontecido a partir da noite passada, para fazer com que ele saísse daquele jeito. Estou mesmo muito intrigada, essa é a verdade; não vou ter um minuto de paz ou sossego enquanto não souber o que levou Matthew Cuthbert a sair assim de Avonlea hoje.”

Então, conforme havia planejado, a senhora Rachel partiu depois do chá. Não precisava ir muito longe: a casa onde os irmãos Cuthbert moravam – grande, construída sobre uma área irregular e cercada por um pomar – ficava a menos de quinhentos metros acima do vale da família Lynde. No entanto, é preciso admitir que uma longa alameda deixava o caminho bem mais longo. Quando estabelecera sua propriedade, o pai de Matthew Cuthbert – tão tímido e calado quanto o filho – tinha construído a residência o mais longe possível de seus vizinhos, sem, no entanto, invadir o bosque. Green Gables foi construída na extremidade mais distante da área aberta e sempre permaneceu ali, quase invisível para quem estivesse na estrada principal, ao longo da qual todas as outras casas de Avonlea estavam tão sociavelmente situadas. Na opinião da senhora Rachel Lynde, viver naquele local afastado não era, de maneira nenhuma, viver.

– Isso é apenas ficar, essa é a verdade – ela disse para si mesma, enquanto caminhava pela antiga alameda coberta de relva e ladeada por arbustos de rosas silvestres. – Não é de admirar que Matthew e Marilla sejam ambos meio esquisitos … morando sozinhos aqui atrás… Árvores não são boa companhia; porém, se fossem, eles certamente estariam muito bem acompanhados. Não, eu prefiro ver pessoas. Mas, sem dúvida, eles parecem suficientemente satisfeitos; acho que estão acostumados a isso. Um ser humano pode se habituar a tudo, até mesmo a ser enforcado, como diz aquele provérbio sobre os irlandeses.

Nesse momento, a senhora Rachel saiu da alameda e entrou no quintal atrás de Green Gables. Era uma área muito verde, limpa e bem-cuidada, com grandes e respeitáveis salgueiros de um lado e imponentes álamos negros do outro. Não havia sequer um pedaço de galho seco ou uma pedra fora do lugar, pois, se houvesse, a senhora Rachel certamente teria visto. Particularmente, ela achava que Marilla Cuthbert varria aquele quintal tão frequentemente quanto varria sua casa, pois estava claro que seria possível comer uma refeição, colocada diretamente sobre aquele chão, sem, contudo, ingerir nenhuma sujeira.

Educadamente, a senhora Rachel deu uma batida rápida na porta, e entrou quando Marilla autorizou. A cozinha de Green Gables era um cômodo alegre – ou, pelo menos, seria, se não fosse tão dolorosamente limpo, a ponto de ter uma aparência similar à de um lugar que nunca foi usado. As duas janelas davam vista para o leste e para o oeste, respectivamente; através da que mostrava o oeste, pela qual era possível ver o quintal, entrava um feixe da luz suave do sol de junho. Já pela do leste, podiam ser avistadas as flores brancas das cerejeiras do pomar à esquerda e, mais adiante, bétulas delgadas nas margens do riacho, que atravessava o vale verdejante e coberto por um emaranhado de videiras. Era perto dessa janela que Marilla Cuthbert se sentava, o que raramente acontecia, pois estava sempre ligeiramente desconfiada dos raios de sol, que lhe pareciam demasiadamente dançantes e irrespons áveis , em um mundo que deveria ser levado bem mais a sério. Entretanto, naquele momento, lá estava ela, sentada, tricotando.

A mesa, que ficava atrás de onde Marilla se encontrava, já estava posta para o jantar, e, antes de fechar completamente a porta, a senhora Rachel já tinha feito uma nota mental de tudo o que estava sobre ela. Havia três pratos distribuídos, indicando que sua vizinha esperava que alguém viesse com Matthew para a refeição. Porém, eram pratos de uso diário, e havia sobre a mesa apenas geleia de maçã silvestre e um só tipo de bolo; portanto, a pessoa esperada não era ninguém especial. Então, por que Matthew usava colarinho branco e saiu em sua charrete puxada pela égua alazã? A senhora Rachel já estava ficando tonta com esse enigma incomum na pacata e nada misteriosa Green Gables.

– Boa tarde, Rachel – Marilla falou imediatamente. – A tarde está realmente bonita hoje, não acha? Não quer se sentar? Como vai sua família?

Algo que, por falta de outro nome, poderia ser chamado de amizade, existia, e sempre havia existido, entre Marilla Cuthbert e a senhora Rachel, apesar – ou talvez por causa – de suas diferenças.

Marilla era uma mulher alta e magra, com muitos ângulos e nenhuma curva; seu cabelo escuro apresentava algumas mechas grisalhas e estava sempre penteado, formando um pequeno coque atrás da cabeça, preso muito firmemente por dois grampos de metal. Parecia uma mulher pouco experiente e muito rígida, o que ela realmente era. Entretanto, havia, às vezes , uma expressão em sua boca que, se tivesse sido um pouco mais praticada, poderia ser indicativa de algum senso de humor.

– Estamos muito bem – a senhora Rachel respondeu. – Mas, quando vi Matthew sair hoje, tive receio de que você não estivesse bem. Pensei que talvez ele estivesse indo em busca do médico.

Os lábios de Marilla se contraíram, demonstrando que ela já esperava por aquela pergunta. Ela sabia que a senhora Rachel viria, pois a visão de Matthew partindo daquela maneira tão inexplicável seria estímulo demais para a curiosidade de sua vizinha.

– Oh, não, estou perfeitamente bem, embora tenha tido uma dor de cabeça bastante desagradável ontem – disse. – Matthew foi a Bright River. Vamos adotar um garoto de um orfanato em Nova Escócia, e ele vem no trem de hoje à tarde.

Se Marilla tivesse falado que Matthew tinha ido a Bright River se encontrar com um canguru australiano, a senhora Rachel não teria ficado tão perplexa; na verdade, a mulher ficou paralisada por uns cinco segundos. Embora fosse absolutamente impensável que Marilla estivesse zombando dela, a senhora Rachel foi quase forçada a supor isso.

– Está falando sério, Marilla? – perguntou, assim que sua voz retornou.

– Sim, claro – Marilla respondeu naturalmente, como se adotar garotos de um orfanato em Nova Escócia fizesse parte de uma rotina normal de primavera em qualquer fazenda bem-administrada de Avonlea, e não uma inovação da qual nunca se tinha ouvido falar.

A senhora Rachel sentiu que havia recebido um severo golpe mental. Seus pensamentos eram só exclamações: “Um garoto! De um orfanato! Ora, com certeza, o mundo está virado de cabeça para baixo! Depois disso, nada mais me surpreenderia! Nada!”.

– Afinal de contas, como foi que essa ideia veio parar na sua cabeça, Marilla? – ela perguntou, com tom de completa reprovação. Afinal, aquela decisão havia sido tomada sem que sua opinião fosse consultada e, por isso, era digna de reprovação.

– Bem, já vínhamos pensando nisso há algum tempo… Melhor dizendo, durante todo o inverno – Marilla explicou. – A senhora Alexander Spencer esteve aqui um dia antes do Natal e nos contou que, na primavera, ia trazer uma garotinha do orfanato de Hopeton. A prima dela mora lá, e a senhora Spencer visitou esse orfanato; ela sabe tudo sobre ele. Desde então, Matthew e eu começamos a falar sobre isso, de tempos em tempos. Pensamos em buscar um garoto. Matthew est á envelhecendo, sabe como é … Já tem 60 anos… Não é mais tão ágil como era antes e, além do mais, está com problemas sérios no coração. Você sabe como é desesperadamente difícil contratar trabalhadores para nos ajudar: nunca se acha ninguém, a não ser aqueles adolescentes franceses estúpidos. E, assim que você consegue ensiná-los a fazer as coisas do jeito apropriado, vão embora para trabalhar nas fábricas de carne de lagosta enlatada, ou se mudam para os Estados Unidos. No início, Matthew sugeriu que trouxéssemos um rapaz da Inglaterra, mas eu disse “não” categoricamente. “Eles podem ser bons… não estou dizendo que não são … mas não quero meninos de rua londrinos”, falei com ele. “Ao menos, que seja um garoto nascido aqui. De qualquer modo, vamos correr um risco, mas vou me sentir mentalmente melhor, e dormir melhor à noite, se tivermos conosco um rapazinho canadense.” Por fim, decidimos pedir à senhora Spencer que escolhesse um para nós quand o ela fosse buscar sua menina. E, na semana passada, quando soubemos que ela estava indo, lhe enviamos uma mensagem – pelos parentes de Richard Spencer que vivem em Carmody –, na qual pedíamos que nos mandasse um garoto apropriado e esperto, de 10 ou 11 anos. Decidimos que essa seria a melhor idade: suficientemente crescido para ser logo útil no cumprimento das tarefas e, ao mesmo tempo, suficientemente jovem para ser treinado adequadamente. Pretendemos lhe oferecer um lar e uma boa educação. Ent ão, hoje , o carteiro trouxe da estação ferroviária um telegrama da senhora Alexander Spencer dizendo que eles viriam no trem das 17h30; por isso, Matthew foi a Bright River: para buscar o garoto. Depois de deixá-lo lá, a senhora Spencer vai seguir com a menina para a estação de White Sands.

Como a senhora Rachel tinha orgulho de sempre dizer francamente o que pensava, foi o que ela fez naquele momento, após haver definido mentalmente qual seria sua reação diante daquela notícia surpreendente. – Escute, Marilla, vou lhe dizer sinceramente que acho isso uma grande besteira… É uma atitude arriscada, essa é a verdade. Você não sabe o que está fazendo. Está trazendo uma criança desconhecida p ara dentro de sua casa… de seu lar. Não sabe nada sobre esse garoto, nem sobre seu temperamento, muito menos que tipo de pais ele teve, ou em que espécie de pessoa ele pode se transformar. Ora, ainda na semana passada, li no jornal que um homem e sua esposa, moradores do oeste da ilha, levaram para seu lar um menino de um orfanato, e, durante a noite, o garoto pôs fogo na casa … e fez isso de propósito, Marilla… quase transformou o casal em carvão… em sua própria cama! E sei também de outro caso em que um menino adotado costumava chupar todos os ovos da casa… e ninguém nunca conseguiu lhe tirar esse hábito. Se você tivesse me pedido um conselho… o que você não fez, Marilla… eu teria lhe dito para, por tudo o que há de mais sagrado, nem pensar em fazer uma coisa dessas… essa é a verdade.

Contudo, tais comentários “reconfortantes” pareceram não ofender nem alarmar Marilla, que continuou a tricotar tranquilamente.

– Não nego que o que está dizendo tenha algum fundamento, Rachel. Eu mesma tive algumas inquietações a esse respeito. Mas Matthew estava totalmente decidido. Vi isso claramente e, portanto, resolvi ceder. É tão raro Matthew cismar com alguma coisa que, quando isso acontece, sempre acho que tenho a obrigação de concordar com ele. Quanto aos riscos, eles existem em praticamente qualquer coisa que seja feita neste mundo. Se pensarmos bem, há riscos até em se ter filhos próprios… nem sempre eles se tornam boas pessoas. Além disso, Nova Escócia é muito perto de nossa ilha. Não é como se estivéssemos trazendo o garoto da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Portanto, ele não pode ser muito diferente de nós mesmos.

– Bem, espero que tudo dê certo – disse a senhora Rachel, com um tom de voz que mostrava claramente sua s tristes dúvidas. – Mas não diga que não avisei, caso o menino incendeie Green Gables ou jogue veneno no poço… Ouvi contar uma história que aconteceu em New Brunswick, onde uma criança de um orfanato fez isso e toda a família morreu, e com muito sofrimento; s ó que , nesse caso, era uma menina.

– Ora, não estamos trazendo uma menina – Marilla afirmou, como se envenenar poços fosse um comportamento exclusivamente feminino e, por isso, não fosse necessário temer que um menino fizesse isso. – Eu jamais pensaria em trazer uma garota para criarmos. Acho até admirável a senhora Alexander Spencer fazer isso, mas, pensando bem, ela não hesitaria em adotar até um orfanato inteiro, se pusesse essa ideia na cabeça.

A senhora Rachel gostaria de permanecer ali até Matthew voltar com seu órfão importado, mas, ao concluir que ainda teria de esperar umas duas horas, decidiu subir a rua para contar a novidade ao senhor Bell, o superintendente. Certamente, isso causaria uma sensação sem precedentes no povoado, e a senhora Rachel realmente adorava causar sensação. Sendo assim, foi embora, deixando Marilla um tanto aliviada, pois havia sentido suas dúvidas e medos renascerem por influência do pessimismo da vizinha.

– Por tudo o que há nesse mundo – a senhora Rachel murmurou, quando já se sentia em segurança na alameda –, parece até que estou sonhando… Ora, tenho é pena desse pobre garoto, muita pena. Marilla e Matthew não sabem nada sobre crianças e esperam que ele seja mais sábio e mais equilibrado que seu próprio avô, se é que ele algum dia teve um avô, o que é duvidável. De qualquer modo, acho esquisito imaginar uma criança em Green Gables. Nunca houve nenhuma nesse lugar… Matthew e Marilla já eram crescidos quando a casa nova foi construída… Se é que algum dia eles foram crianças, o que também é difícil acreditar ao olharmos para eles. Não queria estar no lugar desse órfão por nada… oh, tenho muita pena dessa criança… Essa é a verdade!

Foi isso que a senhora Rachel falou, do fundo de seu coração, para os arbustos de rosas silvestres. Mas se ela pudesse ter visto a criança que esperava pacientemente na estação ferroviária de Bright River, naquele exato momento, sua piedade seria ainda maior e mais profunda.

Matthew Cuthbert e a égua alazã trotavam confortavelmente sobre os quase treze quilômetros de estrada até Bright River. Era uma estrada bonita, margeada por propriedades rurais bem-cuidadas e, ocasionalmente, atravessada por um bosque de abetos * ou um vale onde havia ameixas silvestres pendentes em galhos cobertos de flores. O ar estava perfumado com o doce aroma dos muitos pomares de macieiras, e os prados distantes estavam cobertos por uma névoa semelhante a um manto púrpura e pérola. Enquanto isso,

os passarinhos cantavam como se aquele fosse o único dia de verão em todo o ano **

Matthew gostava de viajar assim, à sua maneira, com exceção dos momentos em que encontrava mulheres pelo caminho e tinha de acenar para elas com a cabeça. Era preciso fazer isso, porque, naquela ilha do Canadá – Prince Edward Island –, as pessoas tinham o costume de cumprimentar todos que encontrassem, independentemente de serem conhecidos ou não.

Matthew temia todas as mulheres – com exceção de Marilla e da senhora Rachel –, pois sempre tinha uma sensação desconfortável de que aquelas criaturas misteriosas estavam rindo secretamente dele. E pode até ser que ele estivesse certo quando pensava assim, pois sua aparência era mesmo estranha. Era um homem desajeitado, com cabelos grisalhos tocando os ombros caídos e com uma barba castanha, espessa e macia, que ele cultivava desde os 20 anos de idade. De fato, o aspecto que apresentava aos 20 anos era bem parecido com o que possuía aos 60, não fosse pelo tom agora acinzentado do cabelo.

Quando Matthew chegou a Bright River, não havia nenhum de sinal de trem algum. Pensou que ainda estava cedo e, portanto , amarrou seu cavalo no pátio do pequeno hotel da cidade e se dirigiu à estação ferroviária. A longa plataforma estava quase deserta. A única criatura à vista era uma garota pequena sentada sobre uma pilha de telhas em uma das extremidades dela. Porém, tendo notado que se tratava de uma menina, Matthew passou por ela o mais depressa que pôde, sem sequer lhe dirigir um olhar. Se tivesse feito isso, dificilmente deixaria de perceber a tensão e a expectativa que reinavam em sua postura e na expressão de seu rosto. Com certeza, ela estava sentada ali esperando por alguém, ou por alguma coisa, e, como sentar e esperar eram sua única opção naquele momento, ela fazia isso com toda a sua força e energia.

Matthew encontrou o oficial responsável pela estação, que estava fechando a bilheteria e se preparando para ir para casa jantar, e lhe perguntou se o trem das 17h30 ia demorar a passar por ali.

– O trem das 17h30 veio e foi embora há meia hora – o homem, apressado, respondeu. – Mas deixou um passageiro para o senhor… uma menina. Está sentada ali, sobre as telhas. Pedi que ficasse na sala feminina de espera, mas ela falou que preferia ficar do lado de fora. Disse que aqui havia “mais oportunidades para usar a imaginação”. Ora, eu diria que ela parece uma personagem bastante rara…

– Não estou aguardando uma menina – Matthew afirmou, sem dar muita atenção ao que o homem dizia. – Vim buscar um garoto. Ele deveria estar aqui. A senhora Alexander Spencer ia trazê-lo de Nova Escócia para mim.

O oficial deu um assovio curto, mostrando-se admirado.

– Imagino que haja algum engano – falou. – A senhora Spencer saiu do trem junto com essa menina e a deixou sob minha guarda. Disse que o senhor e sua irmã estavam adotando a garota; que ela vinha de um orfanato e que o senhor viria buscá-la agora. Isso é tudo o que sei… e não existe nenhum outro órfão escondido por aqui.

– Não estou entendendo nada – afirmou Matthew, sem saber como agir e desejando que Marilla estivesse por perto para lidar com aquela situação.

– Bem, é melhor o senhor conversar com a menina – o oficial da estação respondeu, calmamente. – Aposto que ela vai saber explicar isso… essa garota tem o que dizer, está claro. Talvez eles não tivessem um menino como o que o senhor queria.

Assim dizendo, o homem foi embora rapidamente, pois estava com fome, e deixou o pobre Matthew com a tarefa de fazer o que para ele era mais difícil do que tirar um leão de seu covil, puxando-o pela barba: dirigir-se a uma menina… uma menina desconhecida… uma menina órfã… e lhe perguntar por que ela não era um menino. Lamentando-se internamente, Matthew se virou e se arrastou lentamente pela plataforma, em direção à garota.

Esta tinha começado a observá-lo no momento em que ele passara por ela, e continuava a fazer isso. Matthew não estava olhando para ela e, mesmo se estivesse, não teria visto como a menina era : uma criança de mais ou menos 11 anos de idade, usando um vestido amarelo-acinzentado muito curto, muito apertado e muito feio. Trazia na cabeça um chapéu de marinheiro marrom, desbotado, e sobre suas costas se estendiam duas tranças grossas de cabelo indiscutivelmente ruivo. Seu rosto era pequeno, pálido, magro e coberto de sardas. A boca era grande, assim como os olhos, que pareciam verdes em algumas luzes e alguns estados de espírito, e cinzas, em outros.

Essas seriam as características vistas por um observador qualquer. Já um observador mais atento teria visto que o queixo era bastante pontiagudo e proeminente; que os olhos grandes eram cheios de ânimo e disposição; que a boca era expressiva e revelava certa doçura; que a testa era alta e larga. Em resumo, nosso observador atento e perspicaz poderia ter concluído que não era uma alma comum que habitava o corpo daquela garota solitária, a quem o tímido Matthew temia ridiculamente.

No entanto, Matthew foi poupado do sofrimento de falar primeiro, pois assim que ela concluiu que ele vinha em sua direção, levantou-se, pegando, com uma das mãos – magras e brancas –, a alça de uma bolsa de viagem velha e surrada, e estendendo a outra para ele.

– Suponho que seja o senhor Matthew Cuthbert, de Green Gables – ela disse, com uma voz peculiarmente clara e doce. – Estou muito contente em ver o senhor. Estava começando a temer que não viesse me buscar e a imaginar todas as coisas que poderiam ter acontecido para impedir sua vinda. Já tinha decidido que, se o senhor não aparecesse hoje, eu caminharia pelos trilhos até aquela cerejeira grande ali na curva e subiria nela, para passar a noite lá. Não sentir ia medo algum, e penso até que seria muito agradável dormir em uma cerejeira coberta de flores brancas, sob o luar. O senhor não concorda? Poderia imaginar que estava morando em um salão de mármore, não é verdade? Mas eu tinha certeza de que o senhor viria me buscar amanhã de manhã, se não pudesse vir hoje.

Matthew tinha segurado desajeitadamente aquela mão pequena e magricela e, exatamente naquele lugar e naquele momento, havia resolvido o que faria. Ele não poderia contar para aquela criança de olhos brilhantes que tinha ocorrido um engano. Ele a levaria para casa, onde Marilla falaria com ela. De qualquer modo, a menina não poderia ficar abandonada em Bright River, fosse qual fosse o erro cometido; portanto, todas as perguntas e explicações deveriam ser adiadas para quando ele estivesse seguramente de volta a Green Gables. – Desculpe o atraso – ele disse timidamente. – Venha, o cavalo está ali no pátio daquele hotel. Me dê sua bolsa.

– Oh, eu posso carregar – a criança respondeu, alegremente. – Não está pesada. Todos os meus pertences materiais estão dentro dela, mas não está pesada. E se a gente não segurar de determinada maneira, a alça se desprende… Por isso, é melhor eu carregar, porque eu sei exatamente onde é que tenho de pegar. É uma bolsa muito, muito velha. Oh, estou tão contente porque o senhor veio!… Mesmo sabendo que ia ser bom dormir em cima de uma cerejeira… Temos de viajar por um bom tempo, não temos? A senhora Spencer falou que era uma distância de uns treze quilômetros. Estou satisfeita, porque adoro viajar. Oh, é tão maravilhoso pensar que vou morar com o senhor e sua irmã… e pertencer a vocês… Nunca pertenci a ninguém… pelo menos assim, de verdade. O orfanato era horrível. Fiquei lá só quatro meses, mas foi tempo suficiente. Acho que o senhor nunca foi um órf ão num orfanato ; então, não pode entender como é isso. É pior do que qualquer coisa que puder imaginar. A senhora Spencer falou que eu estava sendo má quando eu disse isso para ela, mas eu não queria ser má. É tão fácil ser má sem saber, não é? Elas eram boas, sabe… as pessoas lá do orfanato . Mas há tão poucas oportunidades para usar a imaginação num orfanato … só mesmo com os outros órfãos. Era muito interessante imaginar coisas sobre eles… Imaginar que a menina que sentava do seu lado era, na verdade, a filha de um conde muito importante, que tinha sido roubada de seus pais quando era muito pequena, por uma enfermeira cruel que tinha morrido antes de poder confessar seu crime. Eu costumava ficar acordada de noite, imaginando essas coisas, porque não tinha tempo pra isso durante o dia. Acho que é por esse motivo que sou tão magra… sou horrivelmente magra, não sou? Não tem nada em cima dos meus ossos. Adoro imaginar que sou bonita e cheia de carne, com curvas nos cotovelos.

A menina parou de falar; em parte, porque já estava sem fôlego, e, em parte, porque chegaram à charrete. Não disse mais nenhuma palavra até deixarem a cidade e descerem uma pequena colina íngreme, um pedaço da estrada cujo solo macio tinha sido escavado tão profundamente que as encostas, ladeadas por cerejeiras floridas e por delgadas bétulas brancas, estavam pouco acima da cabeça deles.

A menina esticou o braço e arrancou um galho da cerejeira que havia trombado em uma parte lateral da charrete.

– Isso não é lindo? Em que aquela árvore inclinada para fora da encosta, toda branca, parecendo uma renda, fez o senhor pensar? – ela perguntou.

– Bem… ah, não sei – Matthew respondeu.

– Ora, uma noiva, claro… Uma noiva toda de branco, com um lindo véu esvoaçante. Nunca vi uma, mas posso imaginar como seria. Não tenho nenhuma esperança de ser uma noiva um dia. Sou tão sem graça que ninguém jamais vai querer se casar comigo… a não ser, talvez, um missionário estrangeiro. Suponho que um missionário estrangeiro não seja muito exigente. Mas realmente espero que um dia eu possa ter um vestido branco. Esse é o meu maior desejo de felicidade na Terra… adoro roupas bonitas!… Nunca tive um vestido bonito em minha vida… pelo menos, não me lembro de nenhum… É claro que isso é um ótimo motivo para desejar um, não é? Posso imaginar que estou vestida maravilhosamente. Hoje de manhã, me senti tão envergonhada de ter que usar esse vestido velho e horroroso… Sabe, todas as órfãs tinham de usar um desses. No inverno passado, um mercador de Hopeton doou para o orfanato quase cem metros desse tecido. Algumas pessoas disseram que foi porque ele não tinha conseguido vender o pano, mas eu prefiro acreditar que foi por bondade de seu coração; o senhor não ia preferir também? Quando subi no trem, senti como se todos estivessem olhando com piedade pra mim. Mas então, simplesmente pus minha imaginação para trabalhar e pensei que estava usando o mais belo vestido azul-claro de seda… Pois quando a gente está imaginando , tem de pensar em coisas que valham a pena… não tem razão pra não ser assim … um vestido de seda, um chapéu grande coberto de flores e com plumas balançando, um relógio de ouro e luvas e botas de pelica. Fiquei alegre imediatamente e apreciei a viagem de trem o máximo que pude. Depois, não senti nenhum enjoo no barco; nem a senhora Spencer, que geralmente fica enjoada. Ela disse que não teve tempo para sentir enjoo, porque tinha de me vigiar para eu não cair do barco. Falou que nunca conheceu ninguém que andasse tanto pra lá e pra cá quanto eu. Mas, se isso impediu que ela ficasse enjoada, foi bom eu ter perambulado, não foi? Tudo o que eu queria era ver todas as coisas que podiam ser vistas naquele barco, pois não sabia quando ia ter outra oportunidade… Olhe! Tem mais uma porção de cerejeiras cheias de flores! Esta ilha é o lugar mais florido de todos os que existem! J á estou amando este lugar… e estou tão contente porque vou morar aqui com o senhor e sua irmã! Sempre ouvi dizer que Prince Edward Island era o lugar mais bonito do mundo, e eu costumava imaginar que estava morando aqui, mas nunca esperei que isso se tornaria realidade um dia. É delicioso quando as coisas que a gente imagina se tornam realidade, não é?… Olhe, aquelas estradas vermelhas são tão engraçadas, não são? Quando entramos no trem, em Charlottetown, e as estradas vermelhas começaram a passar depressa por nós, perguntei à senhora Spencer por que elas eram daquela cor; ela disse que não sabia e pediu, pelo que há de mais sagrado, que eu não fizesse mais nenhuma pergunta; falou que até aquele momento eu provavelmente já tinha feito mil perguntas. Acho que tinha mesmo, mas como é que a gente vai saber as coisas, se não perguntar? E por que as estradas são vermelhas?

– Bem… ah, não sei – Matthew falou.

– É uma das coisas que tenho de descobrir algum dia. Não é maravilhoso pensar em todas as coisas que ainda temos de aprender? Isso só me faz sentir feliz por estar viva… o mundo é tão interessante… Não ia ser nem metade tão interessante se a gente soubesse tudo sobre todas as coisas, não acha? Não ia m existir muitas oportunidades para a imaginação, não é? Estou falando demais? As pessoas sempre dizem que eu falo demais. O senhor prefere que eu fique calada? Se disser que sim, eu paro de falar. Eu consigo parar quando decido isso, apesar de ser bastante difícil.

Matthew, para sua própria e grande surpresa, estava se divertindo. Assim como a maioria das pessoas caladas, ele gostava de gente tagarela que se encarregava de manter a conversa sem esperar que ele participasse. Contudo, ele nunca tinha pensado que gostaria da companhia de uma menina. As mulheres eram suficientemente desagradáveis em todos os sentidos, mas as meninas eram piores. Ele detestava o jeito como elas passavam por ele discreta e timidamente, desviando o olhar, como se esperassem que ele as engolisse inteiras, caso se aventurassem a dizer uma só palavra. Assim eram as meninas bem-educadas de Avonlea. No entanto, aquela pestinha sardenta era muito diferente. E, embora fosse um pouco difícil para ele – com sua inteligência meio lenta – acompanhar os rápidos processos mentais dela, Matthew pensou que, “de alguma forma, ele gostava da tagarelice daquela menina”. Portanto, falou, acanhado como de costume:

fim da amostra…


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