Livro ‘A Canção da Órfã’ por Lauren Kate

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Uma canção os uniu. Um segredo os separou. Em A canção da órfã, Lauren Kate, autora de Fallen, convida o leitor a vestir uma máscara, embarcar em uma das gôndolas e navegar pelos canais da belíssima Veneza do século XVIII. Época em que os amantes erguiam seus disfarces sob pontes para trocar um beijo e quando a música era a maior de todas as artes. Em uma era de excessos, duas crianças abandonadas no Incuráveis, um hospital convertido em orfanato, cujo conservatório se dedica a ensinar música aos órfãos, sonham em ter uma família e um lugar que possam chamar de lar. A rigidez dentro dos muros do Incuráveis não é capaz de aprisionar o coração da sonhadora Violetta. À medida que a corista cresce, arde dentro dela o anseio de desbravar o mundo que avista apenas do telhado do orfanato. É ali que seu caminho se cruza com o de Mino, um talentoso violinista também sedento por escapar do claustro…

Páginas: 322 páginas; Editora: Record; Edição: 1 (9 de fevereiro de 2020); ISBN-10: 8501117102; ISBN-13: 978-8501117106; ASIN: B0842XJ3W7

Leia trecho do livro

Para Milo,
sempre comigo

Livro 'A canção da órfã' por Lauren Kate

VENEZA DEZEMBRO DE 1725 Em uma fenda ao norte do mar Adriático, sem qualquer lealdade a Bizâncio ou Roma, um império milenar afundava. Ninguém notava seu declínio, camuflado por séculos de riqueza e fama, assim como seus cidadãos, escondidos atrás de máscaras de carnevale.

Visualize-os em suas gôndolas, amantes erguendo os disfarces sob pontes para trocar um beijo. Imagine o senador pelos corredores do Palácio do Doge, votando sob a proteção do anonimato. E a menina no mercado, comprando alcachofras com a mãe, a fita preta de sua máscara balançando ao vento do verão.

Nos anos que antecederam a queda da república, este era o estilo veneziano: fazer mistério sobre tudo, esconder identidades e vidas, sem nunca prestar muita atenção no que jazia oculto. Por mil anos, Veneza resplandecera no centro do mundo mercantil, a joia do Mediterrâneo. Porém, quando as rotas de comércio mudaram, levando consigo o ouro, a cidade confundiu seu canto do cisne com uma canção de festa. Ela se esbaldou desenfreadamente. Veneza sempre estivera afundando; por que não vestir as máscaras por mais um dia e brindar a outro pôr do sol cor-de-rosa?

Mas não nas igrejas e nos hospitais, onde os disfarces eram proibidos. Na maioria dos dias, os doentes e os órfãos, os protegidos da Igreja, eram os únicos com rostos expostos pelas ruas da cidade.

Esta história começa em um orfanato, em uma noite solitária no bairro sonolento de Dorsoduro. Lá, na ala de enjeitados, uma menina de 5 anos estava deitada na cama, planejando sua fuga.

O inverno mais uma vez tomava conta da cidade, e uma ventania balançava a vidraça da janela com a lamentável vista para o prédio vizinho. Mesmo se Violetta pressionasse seu rosto contra o vidro, só veria uma janela acortinada, que ninguém jamais abriu.

Assim que as outras meninas dormissem, ela iria para o sótão. Atrás de caixas de roupas velhas e violinos quebrados, uma única janela alta se sobressaía aos telhados vizinhos. Violetta poderia observar Veneza se estendendo até o horizonte. Poderia ficar sozinha.

Esperou até que os últimos sussurros se tornassem respirações pesadas, aguardou a extraordinária quietude de três dúzias de crianças adormecidas. Havia um truque para manter a paciência enquanto esperava: mentalmente, explorava as ruas de Veneza. Vagava pelas pontes da cidade, piscando para o reflexo dourado e trêmulo do sol sobre o canal. Quando se concentrava, quase conseguia sentir o cheiro do mar.

Ela tivera quatro oportunidades de sair do orfanato, de caminhar pelas ruas de pedra em uma fila de órfãs para coletar donativos, entoar cânticos e orar para os santos. Violetta se agarrava àquelas memórias — gondoleiros cantando, artistas de rua jogando facas e engolindo fogo, aristocratas trajando máscaras brancas, todos tão diferentes das órfãs com rostos expostos que pareciam pertencer a uma espécie distinta. Como ela queria usar uma máscara.

As caminhadas sempre terminavam da mesma forma: com a abadessa mandando as meninas voltar para a Zattere, a ensolarada alameda de pedra golpeada pelo canal da Giudecca. Então elas apertavam o passo diante da estação dos traghettos, onde os gondoleiros assobiavam sob as abas dos chapéus de palha. Depois passavam direto pela entrada da ala oeste do prédio, pela cabeça esculpida de um menino órfão que marcava a porta do dormitório masculino. Em seguida, passavam direto pelas portas duplas centrais — a entrada pública, que se abria para um vestíbulo de pé-direito alto e levava diretamente à igreja. E, assim, imediatamente, chegavam à ala leste, onde a correspondente cabeça de uma menina órfã estava exposta sobre a porta do único lar que Violetta havia conhecido na vida.

Em sua imaginação, aquele era o momento em que se libertava, em que saía correndo pela calle estreita, desviando de vendedores ambulantes até encontrar uma solidão gloriosa.

Até deixar de ser órfã.

Mentalmente, ela vagava por uma ponte de pedra, seus passos eram barulhentos. Ela usava os saltos altos de madeira pintada de uma nobre dama. Estava de máscara. E embarcava em uma gôndola, o vento dançando com sua capa. Ela iria para a Giudecca, para um baile de máscaras em um dos palazzi majestosos do outro lado do canal. Ou talvez fosse para um lugar ainda mais distante. Onde? O que mais havia naquela cidade, na vida, que ela não tinha permissão para ver?

Sob as cobertas, Violetta passou o dedão sobre o calcanhar direito, onde um I azul e fino a marcava como uma pupila do Incuráveis. Aquela marca dizia ao universo que ela não tinha família, que não pertencia a lugar nenhum além daquele complexo murado, feito de pedras de Ístria, ao sul da cidade.

O Incuráveis fora construído em torno de um grande pátio quadrado, com uma igreja alta no centro. Depois da Basílica de São Marcos, a chiesa degli Incurabili, a igreja dos Incuráveis, era a casa de adoração mais famosa de Veneza. Apesar de ter recebido seu nome perturbador no século XVI, devido aos moribundos com sífilis que abrigava na enfermaria do primeiro andar, a instituição acabara se tornando um dos quatro hospitais renomados, devido a um objetivo mais alegre: educar órfãs em um conservatório musical.

Lá dentro, meninos e meninas eram desconhecidos um ao outro. Não havia apenas entradas separadas por gênero, mas também mundos separados: quartos, salas de jantar e de estudo em lados opostos do segundo andar do complexo. Os meninos cresciam e se tornavam aprendizes; não precisavam aprender música. Mas, para manter as meninas fora das ruas, elas eram ensinadas a cantar e a tocar instrumentos para a igreja. Com o tempo, suas apresentações enchiam o bolso da instituição, e o dinheiro pagava os melhores compositores para orientar a próxima geração de meninas mais talentosas. O Incuráveis era feito de música — a melhor da cidade e, portanto, do mundo.

Violetta amava música. Seu coração batia em compasso com os concertos sagrados que ecoavam pelas paredes do quarto, mas ela também ouvia o mistério silencioso de suas origens todos os dias. Dois dias após ter nascido, fora abandonada pela mãe. Ninguém sabia de onde ela viera, quem a deixara ali, nem sob quais circunstâncias. Desde muito jovem, a menina entendera que seus cuidadores — o padre e a abadessa; a cozinheira e o boticário; até as benevolentes zie, “tias” recolhidas no convento, outrora também enjeitadas — a viam apenas como uma obrigação.

As outras meninas buscavam a afeição das zie, mas Violetta não conseguia fingir vínculos. Ela precisava de comida, de aconchego e de um abrigo tanto quanto qualquer outra criança, mas queria amor — amor de verdade, ou nada. Aquele desejo a contagiava como uma doença. E não parecia haver cura.

Finalmente: um pouco de silêncio no quarto. Pela cadência da respiração das outras meninas, o ouvido treinado de Violetta detectou que elas, enfim, haviam dormido. Ela se levantou da cama. Os pés descalços não fizeram nenhum som no mosaico frio de azulejos enquanto caminhavam para fora do quarto, desciam o corredor escuro e subiam a escada.

A menina se fechou no sótão, esfregou as mãos nas coxas para se aquecer e foi verificar seus tesouros sobre o peitoril da janela: o soldo de prata que um padre de Roma que visitara o orfanato deixara cair; a pena de pavão soprada contra as paredes; a tigela de mel lascada, feita de porcelana, que a cozinheira descartara e que havia muito fora completamente lambida (mesmo assim, ela enfiava um dedo lá dentro todas as noites, sugando a lembrança da doçura). E sua posse mais preciosa, Letta. Violetta resgatara a boneca das águas frias do canal atrás do orfanato. Alguns meses antes, as órfãs voltavam de uma caminhada para angariar donativos quando ela viu uma menina em um casaco de renda com resplandecentes bordados dourados discutindo com a mãe por causa de um doce. Tomada pela raiva, a menina simplesmente soltou a boneca. Antes que qualquer pessoa conseguisse perceber o que estava acontecendo, Violetta já a havia resgatado da água.

Decidira batizar a boneca de Letta, uma abreviação do próprio nome — apesar de nunca ter ganhado um apelido. No sótão, com a boneca apertada junto ao peito, ela se pressionou contra a janela e sentiu a noite fria lá fora. Sua respiração embaçou o vidro enquanto ela ficava na ponta dos pés para observar a vista.

A água fazia a noite parecer mais obscura, e uma variedade de telhados de terracota, inclinados em todos os ângulos, se estendia ao longe, até uma distância que ela nem conseguia imaginar. Violetta queria esticar a mão e tocar as videiras que subiam pela treliça da varanda vizinha. Queria explorar cada ruela estreita até chegar ao mar. Em algumas noites, tentava contar as gôndolas pretas balançando no canal. Em outras, encarava a água até os olhos lacrimejarem.

A cidade estava escura, e excepcionalmente silenciosa. Era o começo do Advento, duas semanas em que o carnevale fazia um intervalo para o Natal, talvez para deixar Veneza recuperar o fôlego. Não havia óperas nem bailes. A missa do Incuráveis atraía mais pessoas que o normal, porque as igrejas dos quatro ospedali eram os únicos locais na cidade onde se ouvia música. Naquela noite, os foliões mascarados — frequentadores assíduos da Zattere — haviam desaparecido. As calli estavam vazias. Quase vazias.

— Lá está ele — arfou a menina.

Na Zattere, um homem de tricórnio se aproximava. Era seu artista de rua favorito, caminhando, atravessando a ponte, agora descendo a alameda. E, ao lado dele, vinha um cachorrinho malhado, a quem Violetta batizara de Giacomo.

— Você acha que ele teve um bom dia? — perguntou ela a Letta.

Como seria se apresentar em uma enorme piazza, a voz ecoando pelos prédios, sentindo a multidão se aproximar? Aonde um homem assim iria à noite? Será que levaria Giacomo a uma das tabernas que ela observara, desejosa, pelas frestas das portas fechadas em suas caminhadas?

— O que você pediria em uma taberna, Letta? Conhaque? — A menina franziu o nariz, pensando no copinho horrível que a abadessa levava para o quarto toda noite. — Eu pediria acqaioli.

Ela não sabia o que havia na bebida que escutava as damas aristocratas pedindo na calçada das cafeterias, mas adorava seu brilho opalescente e a forma como as mulheres erguiam as máscaras apenas o suficiente para levá-la aos lábios. Imaginava que acqaioli fosse como a chuva de uma nuvem adocicada. Algum dia, ela provaria a bebida.

Quando o homem e o cachorro saíram de seu campo de visão, Violetta suspirou.

— Eles vão voltar amanhã — garantiu a Letta, querendo atravessar a janela, pular para a rua e correr atrás dos dois para fazer carinho nas orelhas de Giacomo e sentir seu focinho entre os pulsos. Nunca havia encostado em um cão.

Mas, então, uma canção — uma voz feminina — chamou sua atenção para a calle abaixo da janela. Violetta se inclinou para a frente, observando a escuridão. Ela ouvia música o tempo todo, mas aquela era diferente. No Incuráveis, as órfãs cantavam para se comunicar com Deus. Mas aquela canção a aproximava da cantora, não do Todo-Poderoso.

Em tom e volume baixos, a canção soava como um segredo. Não era como a cantiga assobiada pelo artista de rua nem como a barcarola atrevida dos gondoleiros. Aquilo era amor e tristeza, unidos de tal maneira que Violetta mal conseguia respirar.

Quando localizou a cantora sob o luar, a menina arfou. A mulher se dirigia para a roda.

Para quem estivesse caminhando pela calle, a roda parecia algo discreto, metade de um cilindro de metal enferrujado que se projetava para fora do muro, na parte oeste do prédio. Porém, se você puxasse a pesada alavanca de ferro para girá-la, revelaria uma plataforma de madeira, tão pequena quanto o espaço formado pelos braços esticados e unidos de Violetta. Do outro lado, a roda se abria para a cozinha, onde seu conteúdo seria descoberto pela cozinheira, que acordava cedo para acender a lareira.

A menina já ouvira histórias sobre o que costumava acontecer antes de a roda ser construída. Bebês abandonados eram encontrados congelados, com a pele azulada, do lado de fora dos portões ao nascer do sol. A roda permitia que as mães deixassem os filhos protegidos da chuva e do vento. Seria possível se manter anônima — e a criança, viva.

Violetta fazia aniversário no início de fevereiro. Ela sabia que estaria morta se não fosse pela roda. O dispositivo a atormentava, mas, em todas as noites que ficara espionando do sótão, nunca o vira ser aberto. Agora, a cantora se aproximava e ficava de joelhos.

Seu rosto não estava coberto por uma máscara, apenas por uma capa, sob a qual havia um volume. Um bebê.

Não, implorou Violetta para a mulher. Era impossível não pensar na própria mãe diante da roda.

A cantora abriu a capa, e a menina ficou chocada ao ver que a criança não era um bebê. Uma onda de alívio a inundou. Um menino daquele tamanho não caberia lá dentro. A mãe seria obrigada a mudar de ideia.

A canção ficou mais alta. Agora, era possível ouvir as palavras.

Eu sou sua, você é meu…

Os dedos da mulher afastaram o cabelo louro dos olhos fechados do menino. Então passaram por seus ombros, seus cotovelos, desceram para as mãos. E as seguraram. Os batimentos no peito de Violetta se aceleraram, e ela invejou aquela criança por receber tais carinhos, apesar de saber que seriam breves.

Lágrimas brilhavam nas bochechas da mulher. Sua voz falhou, mas ela continuou cantando, virando a face antes de sua tristeza molhar a pele do filho. Então ergueu o rosto para o céu, e Violetta a viu. Memorizou o nariz pequeno e reto daquela mãe, as bochechas redondas, os lábios. Uma pedra grande pendia de seu pescoço, presa por um colar. Ela era linda. Sua expressão estava tomada pela vergonha.

A mulher virou a alavanca da roda para o lado, deitou o menino no círculo de madeira, dobrou os joelhos dele contra o peito. Esfregou seus pés de leve, depois com mais desespero, como se fosse impossível aquecê-lo o suficiente. O filho continuou dormindo.

Violetta ergueu Letta até a janela, paralisada de horror, incapaz de desviar o olhar enquanto a mulher virava a roda. Quando o dispositivo emperrou, ela pressionou os ombros do filho, empurrando-o para dentro com tanta violência que a menina ficou chocada com a cena.

— É o que as mães fazem — disse Violetta. — É assim que as mães são. — Suas mãos tremiam enquanto ela colocava a boneca novamente no peitoril e encontrava o reflexo dos próprios olhos no vidro. — Nunca se torne mãe.

1

— Violetta!

A garota se virou, dando as costas para a janela de seu quarto, para a gaivota empoleirada sobre o telhado de terracota da casa vizinha. Estava torcendo para que as asas decolassem e abandonassem aquela ruela cheia de sombras. Se ela fosse um pássaro, estaria sobrevoando o oceano. Nunca pousaria no mesmo navio mais de uma vez.

Lá fora, a manhã de setembro era tão brilhante, e seu pedaço de céu, tão azul, que, ao deixarem a janela, seus olhos levaram um instante para conseguir enxergar a silhueta ofegante parada à porta.

— O que foi, Laura? — perguntou ela, liberando espaço na cama para a amiga. As duas tinham 16 anos. Eram vizinhas, compartilhavam a parede que havia entre seus quartos individuais no segundo andar desde que saíram da ala infantil, aos 10 anos. — Ora, pare um pouco para recuperar o fôlego. Aprenda com a gaivota preguiçosa.

Mas não era do feitio de Laura parar para recuperar o fôlego. Ela ficava preocupada com todo detalhe, desde a possibilidade de uma tempestade arruinar uma festa até o que poderia acontecer com os ovos de um pardal, se a mãe engolisse um caco de vidro. Preocupava-se com o suor nas mãos enquanto tocava uma composição difícil no violino, secando meticulosamente a madeira com um pano de linho para que não empenasse. Preocupava-se com a melhor maneira de se destacar entre as outras violinistas do conservatório. Preocupava-se muito em ser promovida para o coro, e preocupava-se por Violetta não se preocupar o suficiente em ser promovida também. Nunca perdia a oportunidade de lembrar à amiga que só havia 33 vagas no coro, menos da metade do total de alunas do conservatório. A cada ano, apenas algumas vagas ficavam disponíveis, conforme as coristas mais velhas se casavam ou se recolhiam em conventos.

Laura se preocupava com os exercícios vocais de Violetta e com as partituras de seus libretos — com frequência largadas pelo chão. Com o passar dos anos, Laura se aperfeiçoara em inventar desculpas para a abadessa quando a amiga se atrasava para uma aula, mas jamais deixava de se preocupar com a possibilidade de que ela fosse expulsa. O relacionamento das duas era um dueto: quanto mais Laura se preocupava, mais Violetta lhe dava motivos para isso.

Não que Violetta fosse despreocupada; era Laura que a via assim. Laura remoía tanto suas preocupações como a amiga tentava fugir das próprias. Era por isso que Violetta passava tanto tempo na janela, se imaginando do outro lado do vidro.

Laura prendeu uma mecha solta no seu grande coque.
— Bem, você não sabe da notícia.
— Que notícia?

Violetta não sabia quanto tempo havia passado na frente da janela. Isso acontecia nos dias em que tinha o sonho.

A roda, a mulher. Aquela música. Onze anos haviam se passado desde a fatídica noite, mas ela se lembrava de descer a escada, correndo na escuridão, como se fosse ontem. Ninguém mais sabia que ele estava lá, preso. Ela era a única pessoa que podia ajudar. Nunca tinha chegado tão perto do corpo desconhecido de um menino. Ele ainda dormia quando ela o puxou para fora da roda.

Anos depois, Violetta entendera que a mãe devia ter drogado o filho. Que ele nem ouvira a canção.

Sempre que ela sonhava com aquilo, passava o dia calada e pálida. Era difícil cumprir as tarefas rotineiras: acordar ao nascer do sol, rezar em voz alta seguindo a ordem que sabia de cor — primeiro o Ângelus, depois uma oração pela supressão das heresias, uma pela devotíssima república, outra pelos benfeitores e pelos governati do Incuráveis, e assim por diante — da mesma forma que todas as outras vozes sussurrantes nos quartos à esquerda e à direita do seu.

Antes da missa, Violetta tomava seu desjejum de mingau e leite enquanto o quadril largo da abadessa passava entre as mesas de madeira áspera, declamando as leituras sagradas em um sussurro cáustico, desafiando qualquer uma das pupilas a fofocar ou rir. E então a manhã era preenchida com três horas de aulas de música — primeiro com o conservatório todo, depois com um grupo menor de cantoras e, então, finalmente, com sua professora particular, Giustina.

A bela Giustina tinha 24 anos e era a primeira soprano do coro. Era conhecida pelos moradores locais e além dos limites da República de Veneza como bella voce. A cidade recebia turistas da Europa inteira que pagavam caro para ouvi-la cantar. No verão anterior, Violetta ficara bastante surpresa quando a moça a escolhera como uma de suas duas alunas. A jovem ainda não entendia o que Giustina tinha visto nela, mas a generosidade paciente de sua sottomaestra a inspirava a se esforçar ao máximo.

No momento, ela deveria estar revendo as últimas correções em sua partitura, treinando a modulação da voz e os passaggios. Giustina a reavaliaria mais tarde, antes da compline, a oração do fim do dia. Mas ela nem olhara para as folhas. Assim que conseguiu se isolar no quarto, seguiu para a janela a fim de sentir o calor do outro lado e deixar a mente vagar.

A canção do sonho a assombrava com aquelas palavras que jamais conseguira cantar em voz alta.

Eu sou sua, você é meu…

A música se tornara sua. Mas a quem ou ao que se dirigia? Às vezes, Violetta ainda pensava no menino que tirara da roda naquela noite. Antes de deixá-lo perto das brasas da lareira da cozinha, encolhido sob uma toalha de mesa dobrada, ela descobrira uma pequena pintura presa em uma de suas mãos.

Era metade de uma pintura, na verdade, um pedaço fino de madeira cheio de farpas por ter sido partido ao meio, na diagonal. Estava pendurado em um cordão quebrado, como se fosse um pingente. E exibia uma mulher nua. Metade de uma mulher. Rosto, seios e barriga cobertos por uma cascata de cabelo louro ondulado, da mesma cor dos fios do menino. Olhos escuros fitando algo ao longe, a boca aberta contra o céu azul, em meio a uma canção.

A mãe do menino provavelmente ficara com a outra metade. A maioria dos órfãos do Incuráveis tinha algum tipo de recordação — parte de uma pintura ou um retalho de pano estampado —, provas de uma conexão, para o caso de o destino decidir juntar mãe e filho algum dia.

Violetta não tinha nenhuma. Não acreditava nessas fantasias.

O cotidiano dos meninos e das meninas no Incuráveis era tão separado que ela nunca mais vira o garoto. Não queria vê-lo, apesar de ele jamais sair de seus pensamentos. Aquela música a assombrava, dava voz à parte de si que mais desejava ignorar — o fato de que alguém fizera o mesmo com ela. Violetta esperava que ele não tivesse nenhuma recordação de ter sido abandonado, que nunca se lembrasse daquela noite. Era bem provável que, àquela altura, ele já tivesse saído do orfanato para trabalhar como aprendiz em algum lugar da cidade.

— Violetta! — Laura segurou o braço da amiga. — Porpora voltou.

Ela levantou com um pulo.

Naquele ano, o Incuráveis contratara o famoso compositor napolitano Nicola Porpora como maestro do coro. Era ele quem determinava quais meninas seriam promovidas ou não. Até mesmo as alunas mais jovens, meninas pequenas, de 6 anos, se empertigavam e baixavam a voz ao mencionar seu nome.

As escolhidas para o coro passariam anos trabalhando intensamente com o brilhante e nervoso compositor, apresentando-se com regularidade para plateias deslumbradas. As coristas tinham folgas, saíam do orfanato com mais frequência, faz que viajavam só para vê-las cantar. Uma parte dos generosos ganhos dos concertos era separada em um dote especial.

As moças que não entravam para o coro se tornavam figlie di commun, as mulheres comuns do orfanato. Trabalhavam como enfermeiras, tratando dos sifilíticos no primeiro andar, ou cuidavam de tarefas domésticas, lavando roupa e confeccionando passamanaria, costurando e tingindo casacos grossos de lã no tom inimitável de azul-cobalto do uniforme do orfanato. Algumas se tornavam zie e cuidavam dos órfãos. As figlie di commun trabalhavam para o Incuráveis até completarem 40 anos, quando entravam para um convento. A única outra possibilidade de sair dali era ser vendida como criada. Mas a pior parte era que a música simplesmente parava. Se você se tornasse figlie di commun, todas as oportunidades de ensaiar ou de se apresentar desapareciam.

A ideia deixava Violetta horrorizada. Aquelas meninas não conheciam nada além de música. Elas precisavam perder até isso? Ela e Laura haviam jurado que não aceitariam tal destino. No fundo, Violetta suspeitava que as duas sabiam que Laura não encontraria problemas, mas ela, com sua tendência a sonhar acordada, talvez não conseguisse se classificar.

O maestro passara agosto inteiro e metade de setembro no exterior. As aulas ficaram mais tranquilas em sua ausência, mas, agora, seria diferente. Porpora permaneceria no conservatório durante todo o outono, durante o festival do carnevale, quando o coro se preparava para a temporada de apresentações mais importantes, o Advento. Para as duas garotas, e para cada uma das 62 órfãs no conservatório, o retorno do maestro significava que chegara a hora da prova de fogo.

— Achei que ele voltaria na próxima semana — confessou Violetta.

— Ele voltou antes — explicou Laura. — E quer nos escutar. Na galeria.

— Na galeria?

Era lá que as coristas se apresentavam. Violetta já fora à antessala muitas vezes, para buscar partituras para Giustina, mas nunca botara os pés no enclave especial com vista para a igreja inteira, protegido por uma grade dourada. As alunas do conservatório ensaiavam em uma sala abafada e sem janelas acima dos aposentos do boticário. O lugar fedia ao chá de guaiaco que era preparado para os sifilíticos do andar inferior.

— Você já está atrasada — argumentou Laura — e não vai sair desse quarto com o cabelo assim.

— O que há de errado com o meu cabelo?

Violetta puxou a trança grossa e escura que batia em sua cintura. Não havia espelho no quarto. Ela nem lembrava quando fora a última vez que penteara as madeixas rebeldes.

— Vou dar um jeito nele — afirmou Laura, se colocando atrás da amiga, subindo sobre a cama barulhenta, a ponta dos sapatos roçando as coxas de Violetta. — Comece a se aquecer. Com as escalas. E, Madonna, coloque suas meias!

Violetta esticou as meias de lã ásperas sobre as pernas, prendendo-as acima do joelho com uma fita. Ela resmungou quando a amiga desfez sua trança de dias, desembaraçando enormes nós.

Enquanto os dedos de Laura ajeitavam e penteavam os fios, Violetta se empertigou e respirou fundo, estava uma pilha de nervos. Então puxou a língua, usando os dedos para esticá-la enquanto cantava três oitavas de escalas, como Giustina lhe ensinara.

— Quando você cantar — orientara a sottomaestra —, pense no que quer dizer ao mundo.

Quando Violetta cantava, ela mal se sentia confiante o suficiente para querer ser ouvida, que dirá passar uma mensagem. Era difícil imaginar que o mundo a escutaria.

Ela lançara a pergunta de volta para a professora.

— O que você quer dizer ao mundo?

Giustina pressionara as mãos contra o peito e suspirara.

— O amor está aqui.

Os olhos de Violetta haviam se enchido de lágrimas, pois ela acreditava que não havia maior aspiração para uma cantora. E também porque se sentia completamente perdida. Ela jamais conseguiria cantar algo tão corajoso e essencial. Queria ver e ouvir e se inspirar com o mundo. Mas não se imaginava fazendo o mesmo por ele.

Giustina apertara seu ombro e dissera baixinho:

— Não se preocupe, você vai descobrir a resposta.

Será que descobriria mesmo? Violetta era uma soprano, mas sem vigor, e, apesar de anos de ensaios e preces, ainda era difícil alcançar as notas mais altas das árias complicadas que tanto amava. Às vezes, sentia que o medo a segurava. Se conseguisse entrar para o coro e se livrar daquela ansiedade, talvez sua voz alcançasse seu potencial. Ela imaginava como seria cantar perfeitamente uma ária, se apresentar da forma como Porpora queria — ou melhor. Porém, quando pensava em perguntar essas coisas para Giustina, sabia que não saberia expressar suas dúvidas em palavras, da mesma forma que não conseguiria explicar as origens reprimidas de seus desejos.

Os melhores momentos se revelavam quando sentia a voz misturada às das outras cantoras. Quando sentia que fazia parte da música ao invés de estar sozinha. Nessas horas, queria permanecer exatamente onde estava, embalada pelo prazeroso abraço de uma canção.

Hoje, porém, o sonho a aprisionava, e ela não se sentia digna da música. Por que o maestro voltara logo agora?

Pelo menos a presença de Laura a reconfortava. Logo, as duas entraram em um ritmo: enquanto Violetta chegava às escalas mais altas, Laura prendia seu cabelo em uma trança mais elegante, mais apertada. A música estava tão entranhada nas garotas que transparecia em tudo que faziam: no tilintar sincopado de suas colheres batendo contra as tigelas no jantar, na percussão suave de seus passos a caminho da confissão noturna, no sussurro tenor de sua urina batendo contra as comadres de porcelana.

— Sustente as notas. Está tudo bem? — perguntou Laura enquanto prendia o cabelo da amiga. Ela deu a volta e parou diante de Violetta, alisou uma mecha rebelde e assentiu para sua obra. Então ergueu o queixo da amiga, olhou em seus olhos e perguntou: — Você teve o sonho?

Violetta assentiu, ainda em silêncio, mas não por vergonha. Laura sabia que ela era frequentemente assombrada pelo mesmo sonho, algo que sempre lhe trazia muito sofrimento, mas nunca pedira detalhes. E Violetta nunca lhe contara; nunca perguntara a Laura sobre os sonhos tristes da amiga. De que adiantaria? Todas as órfãs sabiam tão pouco sobre o próprio passado, sobre a época em que eram figlia di mamma — filhas de uma mãe — e não figlia degli incurabili — filhas do Incuráveis.

Para Laura, era suficiente saber que Violetta tivera o sonho e que seu dia seria assombrado por aquele fantasma. Então, ela lhe deu a mão, criando uma reconfortante música secreta na pressão de uma palma contra a outra, no som de seus sapatos contra o piso enquanto corriam até a ponte.

A ponte era uma passagem curta, sem janelas, menor que uma gôndola, acessada pelo terceiro andar do dormitório. Ela se arqueava sobre o pátio e se conectava com o centro da igreja, dando em uma pequena antessala onde as coristas aqueciam as vozes, afinavam os violinos e testavam novas palhetas de oboé antes das apresentações.

Na extremidade da antessala, atrás de uma porta branca, ficava o cobiçado espaço do coro: a galeria musical. Um parapeito de mármore que batia na altura do peito circundava a galeria, e sobre ele ficava a famosa grade de latão com laranjeiras esculpidas, alvo do fascínio de grande parte do público. A grade servia para ocultar as artistas dos olhos da igreja lá embaixo — e vice-versa —, mas, sentada no andar inferior com as outras órfãs do conservatório, Violetta sempre conseguia identificar as coristas quando erguia o olhar.

fim da amostra…


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