Livro ‘Arriscando a própria pele’ por Nassim Nicholas Taleb

Livro 'Arriscando a própria pele' por Nassim Nicholas Taleb
Assimetrias ocultas no cotidiano
Best-seller do New York Times. Do mesmo autor de A lógica do cisne negro, uma obra corajosa, que desafia muitas das nossas crenças sobre risco, recompensa, política, religião e finanças. “Nunca confie em alguém que não arrisca a própria pele”, diz Taleb. Por que não devemos escutar pessoas que só falam em vez de agir? Por que empresas entram em falência? Por que existem mais escravos hoje do que nos tempos romanos? Por que impor a democracia em outros países nunca funciona? A resposta: muitas das pessoas que estão no comando do mundo não arriscam a própria pele. Neste livro provocativo, Nassim Nicholas Taleb mostra que colocar a pele em jogo... 
Capa comum: 312 páginas
Editora: Objetiva; Edição: 1 (14 de setembro de 2018)
Idioma: Português
ISBN-10: 9788547000707
ISBN-13: 978-8547000707
ASIN: 8547000704
Dimensões do produto: 22,6 x 16 x 1,6 cm
Peso de envio: 472 g

Melhor preço cotado ⬇️

Leia trecho do livro

Livro I

Introdução

Este livro, embora possa ser lido de forma independente, é uma continuação do projeto Incerto, que é uma combinação de a) discussões práticas, b) relatos filosóficos, e c) comentários científicos e analíticos sobre os problemas da aleatoriedade e sobre como viver, comer, dormir, discutir, lutar, fazer amigos, trabalhar, divertir-se e tomar decisões sob o domínio da incerteza. Ainda que acessível a uma boa gama de leitores, não se deixe enganar: o Incerto é um ensaio, e não uma popularização de obras entediantes publicadas em outros lugares (deixando de lado o manual técnico do Incerto).

Arriscando a própria pele trata de quatro tópicos em um: a) incerteza e confiabilidade do conhecimento (tanto prático como científico, pressupondo que haja essa diferença), ou, em palavras menos refinadas, detecção de baboseira e papo furado, b) simetria em assuntos humanos, isto é, imparcialidade, justiça, responsabilidade e reciprocidade, c) compartilhamento de informações em transações e negociações, e d) racionalidade em sistemas complexos e no mundo real. Que esses quatro não podem ser trabalhados separadamente é algo que se torna óbvio quando uma pessoa… arrisca a própria pele.*

* Para entender por que na vida real não é possível separar facilmente ética, obrigações morais e habilidades individuais, leve em consideração o seguinte. Quando você diz a alguém em uma posição de responsabilidade — o seu contador, por exemplo —: “Eu confio em você”, você quer dizer que 1) você confia na ética dele (ele não desviará seu dinheiro para o Panamá), 2) você confia na eficiência do trabalho dele ou 3) ambos? A questão central deste livro é que, no mundo real, é difícil desvencilhar os dois aspectos e colocar de um lado a ética e, do outro, o conhecimento e a competência

Não é apenas o fato de que se arriscar é necessário para promover a justiça, alcançar a eficiência comercial e um melhor gerenciamento de risco: dar a cara a tapa é essencial para entender o mundo.

Em primeiro lugar, este livro é sobre a importância de identificar e filtrar a baboseira, o papo furado, isto é, a diferença entre teoria e prática, conhecimento verdadeiro e cosmético, entre o mundo acadêmico (no pior sentido da palavra) e o mundo real. Para expressar na forma de um reflexivo ensinamento típico de Yogi Berra: na academia não existe diferença entre o mundo acadêmico e o mundo real; no mundo real, existe.

Em segundo lugar, trata-se das distorções da simetria e da reciprocidade na vida: se você obtém as recompensas, deve também correr alguns riscos, e não permitir que outros paguem o preço pelos seus erros. Se você inflige riscos a outras pessoas, e elas são prejudicadas, você deve pagar um preço por isso. Assim como deve tratar as outras pessoas da maneira como gostaria de ser tratado, você gostaria de compartilhar, sem má-fé, parcialidade e desigualdade, a responsabilidade pelos eventos.

Se você dá uma opinião, e alguém a segue, você é moralmente obrigado a ser exposto às consequências do que falou. Caso esteja emitindo pontos de vista sobre economia:

Não me diga o que você “pensa”, apenas me diga o que está em seu portfólio.

Em terceiro lugar, é sobre a quantidade de informação que uma pessoa deve compartilhar em termos práticos com os outros, o que um vendedor de carros usados deveria — ou não deveria — dizer sobre o veículo no qual você está prestes a gastar um pedaço substancial de suas economias.

Em quarto lugar, o livro gira em torno da racionalidade e do teste do tempo. No mundo real a racionalidade não tem a ver com o que faz sentido para o seu jornalista da revista New Yorker ou algum psicólogo usando modelos ingênuos de lógica de primeira ordem, mas algo muito mais profundo e estatístico, vinculado à sua própria sobrevivência.

Não confunda arriscar a própria pele — na definição dada neste livro e aqui usada — com um mero problema de incentivo, tendo apenas uma parcela dos benefícios (o que é um entendimento comum nas finanças). Não. Trata-se de simetria, só que mais no sentido de arcar com parte do dano, pagando um preço se algo der errado. A mesma ideia estabelece o vínculo entre as noções de incentivos, compra de carros usados, ética, teoria do contrato, aprendizagem (vida real versus comunidade acadêmica), imperativo kantiano, poder municipal, ciência do risco, contato entre intelectuais e realidade, a responsabilidade dos burocratas, justiça social probabilística, teoria das opções, comportamento íntegro, vendedores e fornecedores papos-furados, teologia… Por enquanto, paro por aqui.

OS ASPECTOS MENOS ÓBVIOS DE ARRISCAR A PRÓPRIA PELE

Um título mais correto (embora mais canhestro) para o livro teria sido: Os aspectos menos óbvios de arriscar a própria pele: as assimetrias ocultas e suas consequências. Pois eu simplesmente não gosto de ler livros que me informem o óbvio. Gosto de me surpreender. Assim, de acordo com a reciprocidade do estilo-de-quem-arrisca-a-própria-pele, não vou conduzir o leitor através de uma jornada previsível tipo-palestra-de-faculdade, mas sim guiá-lo em meio ao tipo de aventura para a qual eu gostaria de ser levado.

Para tanto, o livro está organizado da seguinte maneira: não demora mais que cerca de sessenta páginas para que o leitor entenda a importância, a preponderância e ubiquidade de arriscar a própria pele (ou seja, simetria) na maior parte de seus aspectos. Mas nunca se prenda a explicações excessivamente detalhadas de por que algo importante é importante: justificar incessantemente um princípio é degradá-lo.

A rota não tediosa acarreta enfatizar o segundo passo: as implicações surpreendentes — aquelas assimetrias ocultas que não vêm de imediato à mente —, bem como as consequências menos óbvias, algumas das quais são bastante desconfortáveis, e muitas outras inesperadamente úteis. Compreender os mecanismos de arriscar a própria pele nos permite compreender sérios enigmas subjacentes a uma matriz de realidade de granulação fina.

Por exemplo:

Como é que as minorias tremendamente intolerantes mandam no mundo e nos impõem o seu gosto? Como o universalismo destrói as próprias pessoas que pretende ajudar? Como é possível que existam mais escravizados hoje do que durante o Império Romano? Por que os cirurgiões não deveriam ter a aparência de cirurgiões? Por que a teologia cristã continuou insistindo em um lado humano para Jesus Cristo que é necessariamente distinto do divino? Como os historiadores nos confundem ao fazer o relato da guerra e não da paz? Como é que a sinalização barata (sem qualquer risco) fracassa tanto nos ambientes econômico e religioso? Como os candidatos a cargos políticos com óbvias falhas de caráter parecem mais reais do que burocratas com credenciais impecáveis? Por que idolatramos Aníbal? Como as empresas vão à falência no momento em que contratam gerentes profissionais interessados em trabalhar direito e fazer o bem? Como o paganismo é mais simétrico de uma população para outra? Como as relações exteriores deveriam ser conduzidas? Por que nunca se deve doar dinheiro a instituições de caridade organizadas a menos que elas operem de forma altamente distributiva (o que no jargão moderno se chama “uberização”)? Por que os genes e os idiomas se espalham de forma diferente? Por que a escala das comunidades é importante (uma comunidade de pescadores se converte de colaborativa a concorrente assim que alguém move, minimamente, a escala, ou seja, o número de pessoas envolvidas)? Por que a economia comportamental não tem nada a ver com o estudo do comportamento dos indivíduos — e os mercados têm pouco a ver com as propensões e predisposições dos participantes? Como a racionalidade é sobrevivência e somente sobrevivência? Qual é a lógica fundamental da administração de riscos?

Mas, para este autor, arriscar a própria pele diz respeito principalmente a justiça, honra e sacrifício, coisas que são fundamentais para a própria existência dos seres humanos.

Arriscar a própria pele, aplicado como regra, reduz os efeitos das seguintes divergências que se desenvolveram com a civilização: aquelas entre a ação e a conversa fiada (papo furado), a consequência e a intenção, a prática e a teoria, a honra e a reputação, a expertise e o charlatanismo, o concreto e o abstrato, o ético e o legal, o genuíno e o cosmético, o comerciante e o burocrata, o empreendedor e o executivo-chefe, a força e a exibição, o amor genuíno e o interesse, Coventry e Bruxelas, Omaha e Washington, dc, os seres humanos os economistas, os autores e os editores, as bolsas de estudo e o mundo acadêmico, a democracia e a governança, a ciência e o cientificismo, a política e os políticos, o amor e o dinheiro, o espírito e a letra, Catão, o Velho e Barack Obama, a qualidade e a publicidade, o comprometimento e a sinalização e, de modo decisivo, o coletivo e o individual.

Vamos primeiro ligar alguns pontos dos itens na lista acima com duas vinhetas, apenas para dar um gostinho de como a ideia transcende categorias.

Prólogo, Parte 1

Anteu assassinado

Nunca se afaste da sua mãe — Continuo encontrando senhores da guerra — Bob Rubin e seu negócio — Sistemas são como acidentes de carro

Anteu era um gigante, ou melhor, um semigigante, filho da Mãe-Terra, Gaia, e Poseidon, o deus do mar. Tinha uma estranha ocupação, que consistia em obrigar as pessoas que passavam por sua terra, a Antiga Líbia, a lutar com ele, sendo que tais combates invariavelmente terminavam com a morte do adversário; o passatempo de Anteu era prender as vítimas contra o chão e esmagá-las. Essa atividade macabra era, aparentemente, a expressão de uma devoção filial: Anteu tinha como objetivo erguer um templo em homenagem ao pai, Poseidon, usando os crânios de suas vítimas como matéria-prima.

Anteu era considerado invencível, mas ele tinha um segredo. O gigante extraía sua força do contato com sua mãe, a terra. Extremamente forte quando estava em contato com o chão, Anteu perdia seus poderes se fosse erguido no ar. Hércules, como parte de seus doze trabalhos (em uma variação da lenda), recebeu a incumbência de derrotar Anteu. O herói conseguiu levantar Anteu do chão, esmagando-o até a morte enquanto os pés do gigante permaneciam afastados de sua mãe.

O que aprendemos com essa primeira vinheta é que, assim como Anteu, não se pode separar o conhecimento do contato com o chão. Na verdade, não se pode separar coisa alguma do contato com o chão. E o contato com o mundo real é feito arriscando a própria pele — expondo-se ao mundo real e pagando um preço pelas consequências, sejam elas boas ou ruins, dessa exposição. As feridas resultantes de tais experiências orientam a aprendizagem e descoberta, um mecanismo de sinalização orgânica que os gregos chamavam de pathemata mathemata (“norteie seu aprendizado por meio da dor”, algo que mães de crianças pequenas conhecem muito bem). Em meu livro Antifrágil*, mostrei que a maioria das coisas que acreditamos terem sido “inventadas” por universidades foram na verdade descobertas por improviso e depois legitimadas por algum tipo de formalização. O conhecimento que obtemos por meio da improvisação, fuçando e bisbilhotando, via tentativa e erro, experiência e repetição — em outras palavras, o contato com a terra — é imensamente superior àquele obtido por meio do raciocínio, algo que instituições egoístas têm se dedicado a esconder de nós.

A seguir, aplicaremos isso ao que é erroneamente conhecido como “elaboração de políticas”.

A LÍBIA DEPOIS DE ANTEU

Segunda vinheta. Enquanto escrevo estas linhas, alguns milhares de anos depois, a Líbia, a suposta terra de Anteu, agora comercializa escravos, como resultado de uma fracassada tentativa do que é chamado de “mudança de regime” a fim de “destituir um ditador”. Sim, em 2017, mercados de escravos improvisados em estacionamentos, onde africanos subsaarianos capturados são vendidos a quem fizer a maior oferta.

Um conjunto de pessoas classificadas como intervencionistas (para dar nome aos bois: Bill Kristol, Thomas Friedman e outros)** e que promoveram a invasão ao Iraque em 2003, bem como a deposição do líder líbio em 2011, estão defendendo a imposição dessa mudança de regime em uma outra porção de países, incluindo a Síria, porque lá há um “ditador”.

* Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos. Trad. Eduardo Rieche. Rio de Janeiro: Best Business, 2015. (N. T.) ** Os intervencionistas têm em comum um atributo principal: geralmente não são halterofilistas.

Os intervencionistas e seus amigos no Departamento de Estado dos Estados Unidos ajudaram a criar, treinar e apoiar rebeldes islâmicos, então “moderados”, mas que acabaram se tornando parte da Al-Qaeda, a mesmíssima Al-Qaeda que explodiu as torres da cidade de Nova York durante os eventos do Onze de Setembro. Curiosamente, eles pareceram ter se esquecido de que a própria Al-Qaeda era composta de “rebeldes moderados” criados (ou fomentados) pelos Estados Unidos para ajudar a combater a Rússia soviética. Como veremos, o raciocínio dessas pessoas instruídas não implica tais recorrências.

Então, tentamos aquela coisa chamada mudança de regime no Iraque, e fracassamos miseravelmente. Tentamos aquela coisa de novo na Líbia, e lá agora há tráfico de escravizados. Mas satisfizemos o objetivo de “destituir um ditador”. Seguindo o mesmo raciocínio, um médico injetaria células cancerígenas “moderadas” em um paciente a fim de melhorar suas taxas de colesterol e, cantaria vitória alegremente depois que o paciente morresse, em especial se o exame post-mortem mostrasse excelentes taxas de colesterol. Mas sabemos que médicos não infligem “curas” fatais aos pacientes, ou pelo menos não de maneira tão descarada, e há uma razão para isso. Os médicos costumam arriscar uma quantidade módica da própria pele, têm uma vaga compreensão de sistemas complexos e mais do que um par de milênios de valores éticos em constante evolução determinando sua conduta.

E nem é preciso abrir mão da lógica, do intelecto e da educação: um raciocínio lógico rígido, mas de ordem superior, mostraria que, a menos que se encontre alguma maneira de rejeitar toda a evidência empírica, defender mudanças de regime implica defender também a escravidão ou alguma degradação semelhante do país (uma vez que essas têm sido resultados típicos). Portanto, esses intervencionistas não só carecem de senso prático e jamais aprendem com a história, como deixam a desejar até mesmo quanto ao raciocínio puro, que eles abafam em um rebuscado e semiabstrato discurso carregado de modismos e jargão técnico.

Suas três falhas: 1) eles pensam em estáticas, não em dinâmicas, 2) pensam em dimensões baixas, não altas, 3) pensam em termos de ações, nunca interações. Ao longo do livro examinaremos com maior profundidade esse defeito do raciocínio mental por parte de idiotas instruídos (ou, antes, trouxas semiletrados). Por enquanto, posso substanciar os aspectos essenciais dos três defeitos.

A primeira falha é que eles são incapazes de pensar em segundas etapas e desconhecem sua necessidade — e praticamente todos os camponeses da Mongólia, todos os garçons de Madri e todos os mecânicos de oficinas automotivas em San Francisco sabem que na vida há segundas, terceiras, quartas, n etapas. A segunda falha é que também são incapazes de perceber a diferença entre problemas multidimensionais e suas representações unidimensionais — como distinguir a saúde, que é multidimensional, de sua redução à medição de taxas de colesterol. Eles não conseguem entender a ideia de que, empiricamente, sistemas complexos não têm óbvios e unidimensionais mecanismos de causa e efeito, e que, sob a opacidade, não se mexe com um sistema desses. Uma extensão desse defeito: comparam as ações do “ditador” às do primeiro- -ministro da Noruega ou da Suécia, e não às da alternativa local. A terceira falha é que não são capazes de antever a evolução por que passam aqueles que são ajudados por meio de ataques, ou o crescimento que uma pessoa obtém a partir de feedback.

LUDIS DE ALIENO CORIO*

E, quando ocorre uma explosão, eles invocam a incerteza, algo chamado de Cisne Negro (um evento improvável de alto impacto) em homenagem ao livro de um sujeito (muito) teimoso,** sem perceber que não se deve alterar um sistema se os resultados estiverem rodeados de incerteza ou, em termos mais gerais, deve-se evitar ações com consequências desvantajosas se não tiver certeza dos resultados. O ponto crucial é que a desvantagem não afeta o intervencionista. Ele continua sua prática no conforto de sua casinha termicamente regulada no subúrbio, com uma garagem para dois carros, um cachorro e um pequeno quintal com grama livre de pesticidas onde brincam seus 2,2 filhos mimados.

* Brincando com a vida de outrem. ** O autor se refere a seu livro A lógica do Cisne Negro: O impacto do altamente improvável. Rio de Janeiro: Best Seller, 2008. (N. T.)

Imagine pessoas com deficiências mentais semelhantes, pessoas que não entendem a assimetria, pilotando aviões. Comandantes incompetentes incapazes de aprender com as experiências, ou que não se importam de correr riscos que não compreendem, podem acabar matando muita gente. Mas eles mesmos acabarão no fundo, digamos, do Triângulo das Bermudas, e deixarão de representar uma ameaça para os outros e para a humanidade. Esse não é o caso aqui.

Então, acabamos por povoar o que chamamos de intelligentsia com pessoas delirantes e mentalmente perturbadas (literalmente) apenas porque nunca precisam pagar pelas consequências das próprias ações, repetindo slogans modernistas desprovidos de qualquer profundidade (por exemplo, continuam usando o termo “democracia” ao mesmo tempo em que incentivam degoladores; democracia é algo sobre o qual eles leem em cursos de pós-graduação). Em geral, quando se ouve alguém invocando noções modernistas abstratas, pode-se pressupor que se trata de uma pessoa que recebeu alguma educação formal (mas não o suficiente, ou na disciplina errada), porém não precisa se responsabilizar por nada.

Por isso, algumas pessoas inocentes — iazidis, minorias cristãs no Oriente Próximo (e Médio), mandeístas, sírios, iraquianos e líbios — tiveram que pagar o preço pelos erros de intervencionistas sentados em seus confortáveis escritórios com ar-condicionado. Veremos mais adiante que isso viola a própria noção de justiça desde a sua origem pré-bíblica, babilônica — bem como a estrutura ética, essa matriz subjacente graças à qual a humanidade sobreviveu.

O princípio da intervenção, como o juramento de Hipócrates, é, em primeiro lugar, nunca causar mal ou dano a alguém (primum non nocere); e mais ainda, conforme argumentaremos, aqueles que não se expõem a riscos nunca deveriam se envolver na tomada de decisões.

Ademais,

Sempre fomos loucos, mas não tínhamos experiência e capacidade suficientes para destruir o mundo. Agora podemos.

Voltaremos aos intervencionistas “pacificadores” e examinaremos como seus processos de paz criam impasses, a exemplo do problema israelense-palestino.

OS SENHORES DA GUERRA AINDA ESTÃO POR AÍ

A ideia de arriscar a própria pele permeia a história: tradicionalmente, todos os senhores da guerra e belicistas eram eles próprios guerreiros e, com poucas e curiosas exceções, as sociedades eram administradas por quem corria riscos e não por quem transferia riscos.

Pessoas importantes e em posições de destaque corriam riscos, muitas vezes até mais do que os cidadãos comuns. O imperador romano Juliano, o Apóstata, morreu no campo de batalha lutando uma guerra sem fim na fronteira persa enquanto ainda era imperador. Pode-se apenas especular sobre Júlio César, Alexandre, O Grande, e Napoleão, que muito se deve à usual fabricação de lendas por parte dos historiadores, mas nesse caso a prova é robusta. Não existe melhor evidência histórica de um imperador assumindo uma posição na linha de frente da batalha do que uma lança persa alojada no peito de Juliano (que não usava armadura). Um dos seus predecessores, Valeriano, foi capturado na mesma fronteira, e reza a lenda que foi usado como um escabelo humano sobre o qual o xá Shapur se apoiava ao montar seu cavalo. E o último imperador bizantino, Constantino XI Paleólogo, foi visto pela última vez quando removeu sua toga roxa e se juntou a Ioannis Dalmatus e seu primo Teófilo Paleólogo para atacar as tropas turcas, brandindo suas espadas, orgulhosamente rumando para a morte. A lenda diz que Constantino recebeu a oferta de um acordo caso se rendesse. Mas esse tipo de negociação não é para reis de respeito.

Esses relatos não são isolados. O autor que vos escreve está bastante convencido sobre as estatísticas: menos de um terço dos imperadores romanos morreu na cama. Pode-se argumentar que, uma vez que pouquíssimos deles morreram de velhice, se tivessem vivido mais tempo teriam sido derrubados por um golpe de Estado ou sucumbiriam em batalha.

Até hoje, monarcas derivam sua legitimidade de um contrato social que exige assumir riscos físicos. A família real britânica fez questão de que um dos seus herdeiros, o príncipe Andrew, corresse mais riscos do que os “plebeus” durante a Guerra das Malvinas de 1982, com seu helicóptero estando na linha de frente. Por quê? Porque noblesse oblige (a nobreza obriga); o próprio status de um lorde tradicionalmente derivava do ato de proteger outros, trocando risco pessoal por posição de poder — e parece que a família real britânica ainda se lembra desse contrato. Uma pessoa não pode ser um lorde se não for um lorde.

NEGÓCIO ESTILO BOB RUBIN

Alguns pensam que nos livrarmos de líderes guerreiros significa civilização e progresso. Não é bem assim. Enquanto isso,

A burocracia é uma construção pela qual uma pessoa é convenientemente separada das consequências de suas ações.

E, talvez alguém pergunte, o que podemos fazer, já que um sistema centralizado necessariamente precisará de pessoas que não estão diretamente expostas às consequências dos erros?

Bem, para que haja menos desses tomadores de decisões não temos outra escolha senão descentralizar ou, em termos mais refinados, localizar.

A descentralização é baseada na noção simples de que a macrobaboseira é mais fácil do que a microbaboseira.

A descentralização reduz as grandes assimetrias estruturais.

Mas não se preocupe, se não descentralizarmos e não distribuirmos responsabilidades, isso acontecerá por si só e do jeito mais difícil: um sistema que não nos permite arriscar a própria pele, com um acúmulo de desequilíbrios, no fim das contas acabará indo pelos ares e estará fadado a autorregenerar-se dessa maneira. Se sobreviver.

Por exemplo, a crise de 2008, em que várias instituições financeiras quebraram, ocorreu devido ao acúmulo de riscos ocultos e assimétricos no sistema: banqueiros, mestres na transferência de risco, poderiam ganhar um bom dinheiro a partir de um tipo de riscos explosivos ocultos, usar modelos acadêmicos de risco que só funcionam no papel (porque acadêmicos não sabem praticamente nada sobre riscos) e então invocar a incerteza depois da falência (aquele mesmo Cisne Negro invisível e imprevisível e aquele mesmíssimo autor muito, muito teimoso) e manter a renda — o que eu chamei de negócio estilo Bob Rubin.

Que história é essa de negócio estilo Bob Rubin? Robert Rubin, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, e um dos que assinam o nome na cédula que você acabou de usar para pagar pelo café, arrecadou mais de 120 milhões de dólares em indenização do Citibank na década anterior à crise de 2008. Quando o banco, literalmente insolvente, foi resgatado pelo contribuinte, ele não preencheu cheque algum, apenas invocou a incerteza como uma desculpa. Cara, ele ganha; coroa, ele berra “Cisne negro!”. Rubin tampouco reconheceu que transferia o risco para os contribuintes: especialistas em gramática da língua espanhola, professores-assistentes do ensino fundamental, supervisores em fábricas de latinhas de alumínio, consultores de nutrição vegetariana e escriturários de assistentes de promotores de justiça estavam “prevenindo as perdas dele”, isto é, assumindo os riscos de Rubin e pagando por seus prejuízos. Mas a pior desgraça foram os livres mercados, à medida que o público, já propenso a odiar os financistas, começou a confundir os livres mercados e as formas superiores de corrupção — fisiologismo, nepotismo e compadrio —, quando na verdade é exatamente o oposto: é o governo, não os mercados, que propicia essas coisas por meio dos mecanismos de ajuda econômica aos bancos. Não são apenas as intervenções públicas no setor financeiro: a interferência do governo em geral tende a eliminar o fator “arriscar a própria pele”.

A boa notícia é que, apesar dos esforços da administração Obama — cúmplice em proteger o sistema e os banqueiros rent-seeking* —, o negócio dos investimentos de alto risco começou a se deslocar na direção de pequenas estruturas independentes conhecidas como fundos hedge.** A mudança ocorreu principalmente por conta da excessiva burocratização, à medida que funcionários (cuja ideia de trabalho é principalmente exigir carimbos em papéis) fazem imperar a dificuldade e a morosidade em função do excesso de documentação e de intermediários envolvidos na resolução de processos, sobrecarregando os bancos de regras — mas, de alguma forma, nas milhares de páginas de regulamentos adicionais, eles evitaram levar em consideração o fator “arriscar a própria pele”. No descentralizado espaço dos fundos hedge, por outro lado, os proprietários-operadores têm pelo menos metade do seu patrimônio líquido nos fundos, o que os torna relativamente mais expostos do que qualquer um de seus clientes, e eles afundam com o navio.

* Rent-seeking é tentar usar regulamentos (ou “direitos”) de proteção para obter renda sem adicionar nada à atividade econômica, sem aumentar a riqueza dos outros. Como Tony Gordo (que entrará em cena algumas páginas mais adiante) definiria, é como ser forçado a pagar à máfia em troca de proteção sem obter os benefícios econômicos da proteção. ** Associado a investimentos especulativos e de alto risco, o conceito de fundos hedge (fundos de cobertura ou de proteção de risco) pode ser definido como fundos multimercados que adotam um número de estratégias que não podem ser postas em prática por fundos tradicionais de investimento (como a Bolsa de Valores, renda fixa e investimento em ações) — como regras menos exigentes que as aplicáveis aos fundos de investimento harmonizados. (N. T.)

OS SISTEMAS APRENDEM POR ELIMINAÇÃO

Agora, se você vai realçar apenas uma única seção deste livro, é esta aqui. O caso intervencionista é fundamental para nossa história porque mostra como não colocar em risco a própria pele tem tanto efeitos éticos como epistemológicos (isto é, relacionados ao conhecimento). Vimos que os intervencionistas não aprendem porque não sofrem consequências por seus erros, e, conforme apontamos com o pathemata mathemata:

O mecanismo de transferência de risco também impede a aprendizagem.

Em termos mais práticos,

Você jamais convencerá completamente uma pessoa de que ela está errada; somente a realidade é capaz disso

Na verdade, para ser preciso, a realidade não dá a mínima para vencer discussões: a sobrevivência é o que importa.
Pois

A maldição da modernidade é que estamos cercados por uma classe de pessoas que são melhores para explicar do que para entender,

ou melhores em explicar do que em fazer.

Então, aprendizagem não é exatamente o que ensinamos aos presos trancafiados nos presídios de segurança máxima chamados escolas. Na biologia, a aprendizagem é algo que, por meio do filtro da seleção intergeracional, fica impresso a nível celular — e posso afirmar: arriscar a própria pele está mais para um filtro do que para um impedimento. A evolução só pode acontecer se o risco de extinção estiver presente. Além disso,

Não há evolução sem que se arrisque a própria pele.

Este último ponto é bem óbvio, mas continuo vendo acadêmicos que não dão a cara a tapa defender a evolução, ao mesmo tempo em que rejeitam a ideia de arriscar a própria pele e o compartilhamento de risco. Eles recusam a noção de propósito por parte de um criador onisciente, enquanto querem impor o desígnio humano como se soubessem de todas as suas consequências. Em geral, quanto mais as pessoas veneram o sacrossanto Estado (ou, de forma equivalente, as grandes corporações), mais odeiam a ideia de arriscar a própria pele. Quanto mais acreditam em sua capacidade de prever, mais odeiam arriscar a própria pele. Quanto mais usam ternos e gravatas, mais odeiam arriscar a própria pele.

Voltando aos intervencionistas, vimos que as pessoas não aprendem tanto com boa parte de seus erros — e com os erros de outras pessoas; pelo contrário, é o sistema que aprende, selecionando pessoas menos propensas a cometer uma certa classe de erros e eliminando outras.

Os sistemas aprendem eliminando peças, usando a via negativa.*

Muitos pilotos ruins, como já mencionamos anteriormente, estão atualmente no fundo do oceano Atlântico; muitos motoristas perigosos e incompetentes estão no tranquilo cemitério local, com belas e agradáveis aleias margeadas por árvores. O transporte não ficou mais seguro apenas porque as pessoas aprendem com os erros, mas porque o sistema aprende. A experiência do sistema é diferente da dos indivíduos; é fundamentada na filtragem.

Para resumir até aqui,

Arriscar a própria pele mantém a soberba humana sob controle.

Vamos agora nos aprofundar na segunda parte do prólogo e examinar a noção de simetria.

* Via negativa é o princípio de que sabemos o que está errado com mais clareza do que o que está certo, e esse conhecimento cresce por subtração. Além disso, é mais fácil saber que algo está errado do que encontrar uma solução para o problema. As ações que eliminam são mais robustas do que as que adicionam, pois a adição pode ter complicados e invisíveis circuitos cíclicos de reações negativas. Isso é discutido com alguma profundidade em Antifrágil.

fim da amostra…


Tags: ,