Ensaio sobre como a tecnologia pode nos conduzir para uma nova idade das trevas. Conforme o mundo à nossa volta se torna mais tecnológico, nosso entendimento sobre ele parece diminuir. Essa tendência é reforçada pela crença de que seria possível compreender a nossa existência através da computação, e que o acúmulo de dados será suficiente para construir um mundo melhor. Na realidade, estamos perdidos em um mar de informação, divididos pelo fundamentalismo, pelas narrativas simplistas e por teorias conspiratórias. Neste livro, o autor analisa a história da arte, da tecnologia e dos sistemas de informação e revela as nuvens escuras que se acumulam sobre nossos sonhos digitais.
ISBN-13 : 978-6580309528 ISBN-10 : 6580309520 Capa comum : 320 páginas Dimensões do produto : 14 x 2 x 21 cm Editora : Todavia; 1ª Edição (5 novembro 2019) Idioma: : Português
Leia trecho do livro
Para Navine
1. Cova
“Ah, se a tecnologia tivesse inventado um jeito de te achar em caso de emergência”, meu computador dizia sem parar.
Depois do resultado das eleições de 2016 nos Estados Unidos, assim como vários conhecidos, e quem sabe incitado pela mentalidade de manada das redes sociais, comecei a assistir de novo a West Wing: Nos bastidores do poder — um exercício de nostalgia diante da impotência. Não ajudou em nada, mas me rendeu o vício, quando estava sozinho, de assistir a um ou dois episódios por noite, na volta do trabalho ou durante viagens de avião. Depois de ler as últimas pesquisas apocalípticas sobre mudança climática, vigilância absoluta e incertezas no contexto político global, um teatrinho neoliberal da década passada não era o pior lugar para se esconder. Então chega a noite em que estou na metade de um episódio da terceira temporada e Leo McGarry, chefe de gabinete do presidente Bartlett, está arrependido por ter participado de uma reunião do AA e, em decorrência dela, ter perdido o estágio inicial de uma emergência.
“O que você teria feito há meia hora que já não fizeram?”, o presidente pergunta.
“Eu saberia há meia hora o que sei agora”, responde McGarry. “É exatamente por isso que eu nunca mais vou a essas reuniões: são um luxo.”
Bartlett circunda McGarry, provocando-o: “Eu sei. Ah, se a tecnologia tivesse inventado um jeito de te achar em caso de emergência! Quem sabe um aparato telefônico com número personalizado, para o qual pudéssemos ligar e informar que precisamos do senhor…”. O presidente enfia a mão no bolso de Leo e tira seu celular: “Quem sabe uma coisinha que nem esta, sr. Moto!”.
Só que o episódio não continuava. A imagem na tela mudava, mas meu laptop tinha travado e uma frase do áudio se repetia em loop: “Ah, se a tecnologia tivesse inventado um jeito de te achar em caso de emergência! Ah, se a tecnologia tivesse inventado um jeito de te achar em caso de emergência! Ah, se a tecnologia tivesse inventado um jeito de te achar em caso de emergência!”.
Este livro trata do que a tecnologia tenta nos dizer em caso de emergência. Também é um livro a respeito do que sabemos, de como sabemos e do que não temos como saber.
Ao longo do último século, a aceleração tecnológica transformou nosso planeta, nossa sociedade e nós mesmos, mas não conseguiu transformar o entendimento que temos dessas coisas. Os motivos são complexos e as respostas também, no mínimo porque estamos absolutamente emaranhados em sistemas tecnológicos que, por sua vez, moldam a maneira como agimos e pensamos. Não podemos viver à parte deles; não conseguimos pensar sem eles.
Nossas tecnologias são cúmplices nos maiores desafios atuais: um sistema econômico descontrolado que precariza milhões de pessoas e continua a ampliar o abismo entre ricos e pobres; o colapso do consenso político e social em todo o globo, que resulta na ascensão de nacionalismos, divisões sociais, conflitos étnicos e guerras nas sombras; e um clima em aquecimento, uma ameaça existencial a todos nós.
Perpassando ciência e sociedade, política e educação, guerra e comércio, as novas tecnologias não apenas incrementam nossas aptidões, mas também as moldam e nos dirigem com um propósito, que pode ser benéfico ou maléfico. Cada vez mais é necessário pensar as novas tecnologias de outras maneiras, criticá-las, para ter uma participação significativa nesse moldar e dirigir. Se não entendemos como as tecnologias complexas funcionam, como os sistemas tecnológicos se interconectam e como os sistemas de sistemas interagem, ficamos impotentes dentro desses sistemas, e o potencial que eles têm é aprisionado de maneira ainda mais fácil pelas elites egoístas e por corporações desumanas. Exatamente pelo fato de que as tecnologias interagem entre si de modos inesperados, em geral estranhos, e já que estamos completamente emaranhados nelas, esse entendimento não pode ser limitado aos aspectos práticos de como as coisas vieram a ser, e como elas continuam a funcionar no mundo de formas que costumam ser invisíveis e entrelaçadas. O que é necessário não é compreensão, mas alfabetização.
A alfabetização real em relação aos sistemas consiste em muito mais do que apenas entendê-los, e pode ser compreendida e praticada de várias maneiras. Vai além do uso funcional do sistema e abrange o contexto e suas consequências. Recusa-se a ver a aplicação de um só sistema como panaceia, insistindo na inter-relação de todos eles e nas limitações inerentes a qualquer solução única. O alfabetizado é fluente não só no idioma de um sistema, mas em sua metalinguagem — a linguagem que ele usa para falar de si e para interagir com outros sistemas —, e é sensível às limitações e aos usos e abusos potenciais da metalinguagem. O alfabetizado está, crucialmente, apto tanto a criticar quanto a responder às críticas.
Um dos argumentos que se costuma apresentar em reação ao entendimento fraco que o público tem da tecnologia é o apelo para que se incremente a instrução tecnológica — no modo mais simples, que se ensine programação. O apelo é feito com frequência por políticos, tecnologistas, eruditos e líderes empresariais, e costuma ser apresentado em termos abertamente funcionais e pró-mercado: a economia da informação precisa de mais programadores, e um dia as crianças vão precisar de emprego. É um bom começo. Mas aprender a programar não basta, assim como aprender a instalar uma pia não é suficiente para entender as complexas interações entre lençóis freáticos, geografia política, infraestrutura decadente e política social que define, molda e gera os verdadeiros sistemas de suporte à vida em sociedade. O mero entendimento funcional dos sistemas é insuficiente; também é necessário pensar em histórias e consequências. De onde vieram tais sistemas, quem os projetou e para quê, e quais dessas intenções ainda os espreitam hoje?
O segundo perigo no entendimento puramente funcional da tecnologia é o que eu chamo de pensamento computacional. O pensamento computacional é uma extensão do que os outros chamaram de solucionismo: a crença de que qualquer problema se resolve quando se aplica a computação. Seja qual for o problema prático ou social pelo qual passamos, existe um app. Mas o solucionismo também é insuficiente; essa é uma das coisas que a tecnologia tenta nos dizer. Além desse erro, o pensamento computacional pressupõe — muitas vezes em nível inconsciente — que o mundo é de fato como os solucionistas propõem. Ele internaliza o solucionismo a tal nível que é impossível pensar ou articular o mundo em termos que não sejam computáveis. O pensamento computacional é predominante no mundo atual, impulsionando as piores tendências em nossas sociedades e interações, e devemos nos opor a ele com a alfabetização efetiva em sistemas. Se a filosofia é aquela fração do pensamento humano que lida com o que a ciência não pode explicar, então a alfabetização em sistemas é o pensamento que lida com um mundo que não é computável, embora reconheça que ele é irrevogavelmente moldado e animado pela computação.
O ponto fraco de “aprender programação” por si só também pode ser discutido pelo lado oposto: você devia estar apto a entender sistemas tecnológicos sem ter de aprender a programar, assim como não é necessário ser encanador para usar o banheiro, e tampouco viver com medo de que seu encanamento queira matá-lo. Mas não se deve descartar a possibilidade de que seu encanamento deseje sua morte: os sistemas computacionais complexos embasam a maior parte da infraestrutura social contemporânea e, se eles não forem seguros para o uso do público, não há alfabetização e instrução suficiente sobre sua malignidade que vá nos salvar a longo prazo.
Neste livro, vamos falar um pouco do encanamento, mas a cada passo também precisamos ter em mente as necessidades dos que não são encanadores: a de entender e mesmo conviver com o que nem sempre entendemos. Costuma ser um suplício conceber e descrever o objetivo e a escala das novas tecnologias — ou seja, temos dificuldade até para pensar na tecnologia. Não precisamos de tecnologia nova, e sim de novas metáforas: uma metalinguagem para descrever o mundo que os sistemas complexos geraram. Uma nova abreviatura, que ao mesmo tempo reconheça e trate da realidade em um mundo no qual as pessoas, a política, a cultura e a tecnologia estão absolutamente emaranhadas. Sempre estivemos conectados — de maneira desigual, ilógica, alguns mais do que outros, mas de modo total e inevitável. O que muda na rede é que essa conexão fica visível e é inegável. A todo momento nos deparamos com a interconexão radical entre as coisas e nós, e devemos considerar essa percepção de novas maneiras. É insuficiente falar da internet e de tecnologias amorfas, à parte e sem responsabilização, como coisas que causam ou aceleram o abismo em nosso entendimento e mobilização. Na falta de um termo melhor, uso a palavra “rede” para incluir a nós e a nossas tecnologias em um só vasto sistema — que compreende mobilização e entendimentos humanos e não humanos, saber e não saber, na mesma sopa de mobilização. A cova não está em nós e em nossas tecnologias, mas dentro da própria rede, e é através da rede que passamos a conhecê-la.
Por fim, a alfabetização em sistemas possibilita, executa e reage a críticas. Os sistemas que vamos discutir são críticos demais para ser pensados, entendidos, projetados e aplicados por poucos, sobretudo quando esses poucos se alinham muito fácil com — ou são subordinados a — elites e estruturas de poder antiquadas. Há uma relação concreta e causal entre a complexidade dos sistemas com que nos deparamos todos os dias; a opacidade com que a maioria desses sistemas é montada ou descrita; e as questões fundamentais e globais de desigualdade, violência, populismo e fundamentalismo. Muitas vezes as novas tecnologias são apresentadas como se fossem inerentemente emancipatórias, mas isso é em si mesmo um exemplo do pensamento computacional, do qual somos culpados. Aqueles entre nós que fomos os primeiros usuários e apoiadores das novas tecnologias, que tivemos a experiência de seus diversos prazeres e que nos beneficiamos das oportunidades, e portanto defendemos, quase sempre por ingenuidade, sua realização mais ampla, não corremos menos risco diante de seu emprego acrítico. Mas a defesa da crítica não se faz a partir de ameaças individuais, tampouco da identificação com os menos afortunados e menos entendidos. O individualismo e a empatia são ambos insuficientes na rede. Tem de haver possibilidade de sobrevivência e solidariedade sem entendimento.
Não vamos e não podemos entender tudo, mas somos capazes de pensar. A capacidade de pensar sem reivindicar, ou mesmo buscar, um entendimento completo é a chave para a sobrevivência na nova idade das trevas porque, como veremos, em geral é impossível entender tudo. A tecnologia é e pode ser guia e auxiliar nesse pensamento, desde que não privilegiemos seu output: os computadores não estão aqui para nos dar respostas, mas são ferramentas para fazer perguntas. Como retomaremos ao longo do livro, entender uma tecnologia de maneira profunda e sistemática geralmente nos possibilita reconstruir suas metáforas a serviço de outros modos de pensar.
A partir dos anos 1950, um novo símbolo começou a surgir nos diagramas que os engenheiros elétricos desenhavam para descrever os sistemas que construíam. O símbolo era um círculo impreciso, ou um fungo, ou um balão de pensamento. Acabou se definindo na forma de uma nuvem. Seja lá em que coisa o engenheiro estivesse trabalhando, ela podia se conectar à rede, e isso era tudo que você tinha de saber. A outra nuvem podia ser um sistema elétrico ou uma troca de dados ou outra rede de computadores, ou o que fosse. Não fazia diferença. A nuvem era uma maneira de reduzir a complexidade: ela nos possibilitava pensar apenas no que estivesse próximo e à mão, e não nos preocupar com o que acontecia do lado de lá. Com o tempo, conforme as redes ficaram maiores e mais conectadas, a nuvem se tornou cada vez mais importante. Sistemas menores eram definidos por sua relação com a nuvem, pela velocidade com que podiam trocar informação com ela, pelo que podiam extrair dela. A nuvem estava ficando mais pesada, tornando-se um recurso: a nuvem podia fazer isso, podia fazer aquilo. A nuvem podia ser potente e inteligente. Tornou-se um jargão empresarial e um argumento de venda. Virou mais do que um código da engenharia; virou uma metáfora.
Hoje, a nuvem é a metáfora central da internet: um sistema global de grande potência e energia que ainda assim retém a aura do numenal e do numinoso, algo quase impossível de entender. Nós nos conectamos à nuvem; trabalhamos na nuvem; guardamos coisas na nuvem e recuperamos coisas dela; pensamos pela nuvem. Pagamos pela nuvem e só a notamos quando ela não funciona. É algo que vivenciamos o tempo todo sem entender de fato o que é e como funciona. Estamos nos treinando para depender da nuvem apenas a partir de uma noção nebulosa do que se confia a ela e o que se confia que ela vai fazer.
Além das vezes em que ela não funciona, a primeira crítica à nuvem é de que se trata de uma metáfora muito ruim. A nuvem não é imponderável; não é amorfa, nem mesmo invisível, se você souber onde procurar. A nuvem não é um lugar distante e mágico, feito de vapor d’água e ondas de rádio, onde tudo funciona. É uma infraestrutura física que consiste em linhas telefônicas, fibra óptica, satélites, cabos no leito oceânico e vastos depósitos cheios de computadores, que consomem imensas quantidades de água e energia e que habitam jurisdições nacionais e legais. A nuvem é um novo tipo de indústria, e é uma indústria voraz. A nuvem não tem só uma sombra; ela tem uma pegada. Foram absorvidos à nuvem muitos dos prédios anteriormente pesados da esfera cívica: os lugares onde compramos, fazemos transações bancárias, socializamos, fazemos empréstimos de livros e votamos. Obscurecidos, eles ficam menos visíveis e menos receptivos a críticas, investigações, preservação e regulamentação.
Outra crítica é que essa falta de compreensão é proposital. Há bons motivos, desde segurança nacional ao sigilo corporativo até vários tipos de infrações, para ofuscar o que há dentro da nuvem. O que evapora é a mobilização e a propriedade: a maioria de seus e-mails, fotos, updates, documentos empresariais, dados relativos a empréstimos na biblioteca e eleições, prontuários médicos, avaliações de crédito, likes, memórias, experiências, preferências personalizadas e desejos reprimidos está na nuvem, na infraestrutura de outra pessoa. Existe um motivo para o Google e o Facebook gostarem de construir data centers na Irlanda (impostos mais baixos) e na Escandinávia (luz e resfriamento mais baratos). Há um motivo para que impérios globais, supostamente pós-coloniais, se agarrem a pedacinhos de territórios em disputa (como Diego Garcia e Chipre): é porque a nuvem pousa nesses pontos e pode-se explorar o status ambíguo que eles têm. A nuvem se molda a geografias de poder e influência, e ajuda a reforçá-las. A nuvem é uma relação de poder, e a maior parte das pessoas não está no alto.
São críticas válidas, e uma maneira de interrogar a nuvem é ver onde está sua sombra: investigar a localização de data centers e cabos submarinos e ver o que eles nos dizem a respeito da disposição real do poder em ação hoje. Podemos semear a nuvem, condensá-la e obrigá-la a nos entregar algumas histórias. Conforme ela some, alguns segredos podem ser revelados. Ao entender o modo como a figura da nuvem é usada para ofuscar a verdadeira operação da tecnologia, temos como começar a entender de que maneiras a tecnologia em si esconde sua mobilização — através de máquinas opacas e código inescrutável, assim como distanciamento físico e construtos jurídicos. E, por sua vez, podemos aprender algo a respeito da operação do poder em si, que vinha fazendo esse tipo de coisa muito antes de haver nuvens e caixas-pretas para se ocultar.
Contudo, além dessa visão funcional da nuvem, além de seu reaterramento, podemos virar a figura da nuvem mais uma vez para gerar uma nova metáfora? É possível que a nuvem absorva não só nossa incapacidade de entender, mas nosso entendimento da falta de entendimento? Temos como suplantar o pensamento computacional de base com o pensamento de nuvem, que reconhece o desconhecimento e faz dele chuva produtiva? No século XIV , um autor desconhecido do misticismo cristão escreveu sobre “A nuvem do não saber” que paira entre a humanidade e a divindade: a encarnação da bondade, da justiça e da atitude justa. Essa nuvem não pode ser perfurada pelo pensamento, mas pelo desapego do pensamento, e através da insistência no aqui e agora — não no futuro previsto, computado — como domínio da mobilização. “Corra atrás da experiência, e não do conhecimento”, o autor insiste. “Por motivo de orgulho, o conhecimento pode enganá-lo, mas o afeto gentil e amável não o enganará. O conhecimento tende a alimentar a prepotência, mas o amor constrói. O conhecimento é tomado de trabalho, mas o amor, tomado de descanso.” [1] É essa nuvem que buscamos conquistar com a computação, mas que é frequentemente desfeita pela realidade de nosso empenho. O pensamento em nuvem, a adoção do não saber, talvez nos possibilitem reverter o pensamento computacional, e é o que a própria rede nos impulsiona a fazer.
A grande qualidade significante da rede é a falta de uma intenção única e sólida. Ninguém se determinou a criar a rede, ou o maior modelo que se construiu dela, a internet. Com o passar do tempo, sistemas e mais sistemas, culturas e mais culturas foram conectados através de programas públicos e investimentos privados; através de relações pessoais e protocolos tecnológicos; com aço, vidro e elétrons; no espaço físico e no espaço da mente. Por sua vez, a rede deu expressão aos ideais mais abjetos e mais altivos, conteve e alvoroçou os desejos mais mundanos e mais radicais, e praticamente nada disso foi previsto por seus progenitores — que somos todos nós. Não havia e não há problemas a resolver, apenas o empreendimento coletivo: a geração emergente, inconsciente de uma ferramenta para a geração inconsciente. Pensar a rede revela a insuficiência do pensamento computacional e a interconexão de todas as coisas, assim como sua infinitude; ela insiste na necessidade constante de repensar e refletir sobre os pesos e contrapesos, sobre intenção e falhas coletivas, sobre papéis, responsabilidades, preconceitos e possibilidades. É isto que a rede ensina: nada basta, fora tudo. [2]
Nosso grande fracasso em pensar a rede até o momento foi supor que suas ações eram inerentes e inevitáveis. Por inerentes, falo da noção de que emergiram, ex nihilo, das coisas que criamos em vez de envolver nossas próprias ações como parte de sua cocriação. Por inevitável, falo da crença em uma linha direta de progresso tecnológico e histórico à qual nossa resistência é inútil. Tal crença foi atacada repetidamente por pensadores das ciências sociais e da filosofia durante décadas, mas ainda não foi derrotada. Em vez disso, ela foi reificada pela própria tecnologia: em máquinas que supostamente devem levar a cabo seus desejos incrustados. Assim abdicamos de nossas objeções ao progresso linear, caindo na cova do pensamento computacional.
A onda que mais carrega o progresso dos últimos séculos tem sido a ideia central do próprio Iluminismo: que mais conhecimento — mais informação — conduz a melhores decisões. Pode-se, é claro, aplicar qualquer conceito de “melhores” que se queira. Apesar das investidas da modernidade e da pós-modernidade, esse pilar central passou a definir não apenas o que é praticado, mas o que é considerado possível a partir das novas tecnologias. Falava-se da internet, em sua juventude, como a “superestrada da informação” — um canal de conhecimento que, pela luz cintilante dos cabos de fibra óptica, ilumina o mundo. Qualquer fato, qualquer quantum de informação, está disponível a um toque no teclado — ou assim nos levaram a crer.
Portanto estamos, hoje, conectados a vastos repositórios de conhecimento, e ainda assim não aprendemos a pensar. Aliás, vale o oposto: aquilo que se pensava para iluminar o mundo, na prática, o escurece. A abundância de informação e a pluralidade de visões de mundo que hoje nos é acessível através da internet não renderam uma realidade consensual coerente, mas a despertada pela insistência fundamentalista em narrativas simplistas, teorias da conspiração e política pós-factual. É em torno dessa contradição que gira a nova idade das trevas: uma era na qual o valor que depositamos no conhecimento é aniquilado pela abundância desse produto rentável, e na qual procuramos em nós mesmos novas maneiras de entender o mundo. Em 1926, H.P. Lovecraft escreveu:
A coisa mais misericordiosa do mundo, penso eu, é a incapacidade da mente humana em correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos em uma ilha plácida da ignorância em meio a mares negros de infinito, e não se pensou que íamos viajar longe. As ciências, cada uma progredindo em sua direção à parte, até o momento pouco dano nos causaram; mas algum dia a junção do conhecimento dissociado abrirá perspectivas tão apavorantes da realidade, e da posição temível que nela temos, que ou ficaremos loucos com a revelação ou fugiremos da luz mortal na paz e segurança de uma nova idade das trevas. [3]
O modo como entendemos e pensamos nosso lugar no mundo, assim como nossa relação um com o outro e com as máquinas, acabará decidindo se é à loucura ou à paz que nossas tecnologias nos conduzirão. As trevas sobre as quais escrevo não são trevas literais, tampouco representam ausência ou oclusão do conhecimento, como afirma a visão popular da idade das trevas. Não é uma expressão de niilismo nem de desesperança. É, isso sim, uma referência tanto à natureza quanto à oportunidade da crise presente: a aparente incapacidade de enxergar com clareza o que está à nossa frente e agir de forma significativa, com mobilização e justiça, no mundo — e, reconhecendo essas trevas, buscar novas maneiras de ver sob outra luz.
Em seu diário particular, em 18 de janeiro de 1915, nas horas mais cruéis da Primeira Guerra Mundial, Virginia Woolf observou que “o futuro é escuro, o que acredito que seja o melhor que o futuro pode ser”. Como Rebecca Solnit escreveu:
É extraordinário declarar que o desconhecido não precisa ser transformado no conhecido através da falsa divinação, ou da projeção de sinistras narrativas políticas ou ideológicas; é uma celebração das trevas, disposta — como indica o “ eu creio ” — a ser incerta até sobre sua própria afirmação. [4]
Donna Haraway aprimora esse raciocínio, [5] observando que Woolf insistiu sobre isso em Três guinéus, publicado em 1938:
Devemos pensar. Que pensemos em escritórios; em ônibus; enquanto estamos na multidão assistindo a Coroações e Desfiles do Lorde Prefeito; pensemos ao passar pelo Cenotáfio; e por Whitehall; na galeria da Casa dos Comuns; nos Tribunais de Justiça; pensemos em batismos e casamentos e funerais. Que nunca cessemos de pensar — o que é essa “civilização” em que nos encontramos? O que são essas cerimônias e por que devíamos fazer parte delas? O que são essas profissões e por que deveríamos ganhar dinheiro com elas? Aonde, em resumo, nos leva essa procissão dos filhos de homens instruídos? [6]
Os conflitos sociais e de classe, as hierarquias e injustiças históricas a que Woolf faz referência em suas procissões e cerimônias em medida alguma se atenuaram hoje, mas alguns dos lugares para pensar nelas mudaram. As multidões que em 1938 forravam os desfiles do lorde prefeito de Londres e da coroação hoje são distribuídas pela rede, e as galerias e os pontos de adoração igualmente migraram para data centers e cabos submarinos. Não podemos dispensar a rede; podemos apenas pensar através dela e dentro dela. E podemos escutá-la, quando ela tenta nos alertar em caso de emergência.
Nada aqui é argumento contra a tecnologia: fazer isso seria discutir contra nós mesmos. Na verdade, é um argumento a favor do envolvimento mais atencioso com a tecnologia, acoplado a um entendimento radicalmente diferente do que é possível pensar e saber do mundo. Sistemas computacionais, como ferramentas, enfatizam um dos aspectos mais potentes da humanidade: nossa capacidade de agir efetivamente no mundo e moldá-lo aos nossos desejos. Mas revelar e articular esses desejos, e garantir que eles não rebaixem, sobreponham, eliminem ou apaguem os desejos dos outros, continua sendo nossa prerrogativa.
Tecnologia não é meramente criar e usar ferramentas: é criar metáforas. Ao criar uma ferramenta, instanciamos uma certa compreensão do mundo que, assim reificado, é capaz de alcançar certos efeitos no próprio mundo. Assim ela se torna outro componente mobilizável de nosso entendimento do mundo — mesmo que costume ficar inconsciente. Podemos dizer que é uma metáfora oculta: alcança-se uma espécie de transferência, mas ao mesmo tempo uma espécie de dissociação, ao atribuir um pensamento ou um modo de pensar a uma ferramenta que não precisa mais do pensamento para se ativar. Para pensar de novo ou de forma nova, precisamos reencantar nossas ferramentas. O relato presente é apenas a primeira parte do reencantamento, uma tentativa de repensar nossas ferramentas — não reaproveitá-las nem redefini-las, necessariamente, mas ter consideração por elas.
Quando se tem um martelo, diz o ditado, tudo parece prego. Mas isso não é pensar o martelo. O martelo, propriamente concebido, tem muitos usos. Ele pode tanto puxar quanto pregar pregos; pode forjar ferro, moldar madeira e pedra, revelar fósseis e consertar âncoras para as cordas de escalada. Pode dar uma sentença, pedir ordem ou ser arremessado em uma disputa de força atlética. Manejado por um deus, ele gera o clima. O martelo de Thor, Mjölnir, que criava trovões e relâmpagos quando batido no chão, também deu luz a amuletos em forma de martelo pensados para proteger contra a ira do deus — ou, dada sua semelhança com cruzes, contra a conversão forçada. Martelos e machados pré-históricos, revelados no trabalho com a terra por gerações posteriores, eram chamados de “pedras do trovão” e se acreditava que haviam caído do céu durante tempestades. Essas ferramentas misteriosas se tornaram objetos mágicos: quando seus propósitos originais passaram, eles estavam aptos a assumir um novo significado simbólico. Temos de reencantar nossos martelos — todas as nossas ferramentas — para que sejam menos como a do carpinteiro e mais como a de Thor. Mais como pedras do trovão.
A tecnologia também não é feita totalmente — ex nihilo — pelos humanos. Ela depende, assim como depende nossa vida (bactérias, lavouras, material de construção, roupas e espécies domesticadas), das possibilidades das coisas não humanas. A infraestrutura das transações de alta frequência (que vamos explorar no Capítulo 5), e o sistema econômico que ela acelera e caracteriza, é um ajuste ao aço e ao silício, à velocidade da luz no vidro, à neblina, aos passarinhos e aos esquilos. A tecnologia pode dar uma lição excelente sobre a mobilização de atores não humanos, de rochas a insetos, sempre que eles obstruem ou autorizam, mastigam ou resolvem, nossas linhas de comunicação e poder.
Essa relação, entendida corretamente, também é uma percepção da instabilidade inerente à tecnologia: seu alinhamento ou ressonância temporal e temporário com certas outras propriedades incertas dos materiais e animais sujeitos a mudança. Em resumo, de sua nebulosidade. A exploração, no Capítulo 3, das affordances mutantes dos materiais para computação em resposta a tensões ambientais é um exemplo: as coisas fazem coisas de modo diferente conforme o tempo. A tecnologia vem com uma aura de fixidez: uma vez atreladas às coisas, as ideias parecem assentadas e inexpugnáveis. Martelos, devidamente empregados, podem rachá-las de novo. Ao reencantar algumas ferramentas, podemos ver os vários modos pelos quais a percepção é imanente dentro de várias modalidades da vida contemporânea e cotidiana. Ao longo do caminho, o que pode ser apresentado como “revelações” sobre a “verdade” do mundo deve sempre se manter a um braço de distância, como meros (ou não meros; desprezíveis) repensares daquele mundo. Aliás, o braço de distância deveria ser um gesto ressonante, representativo da obra, pois manter algo a um braço de distância gera, de outra perspectiva, o efeito de apontar para algo à distância, algo além da percepção imediata, e promete mais.
O argumento proposto neste livro é de que, tal como a mudança climática, os efeitos da tecnologia estão dispersos pelo globo e já afetam todas as áreas de nossa vida. Os efeitos são potencialmente catastróficos e resultam da incapacidade de compreender os produtos turbulentos e conectados de nossas próprias invenções. Assim, eles perturbam o que nós ingenuamente passamos a esperar como ordem natural das coisas, e exigem que repensemos de forma radical a maneira como vemos o mundo. Mas o outro ímpeto deste livro é dizer que nem tudo está perdido: se somos mesmo capazes de pensar de outras maneiras, então também somos capazes de repensar o mundo, e assim entender e viver de modo diferente dentro dele. E como nossa compreensão atual decorre de nossas descobertas científicas, nosso novo pensamento deve emergir das e junto às nossas invenções tecnológicas, que são manifestações bastante reais do estado contestado, complexo e contraditório do mundo em si. Nossas tecnologias são extensões de nós, codificadas em máquinas e infraestruturas, em armações de conhecimento e ação; se realmente pensadas, elas sugerem o modelo de um mundo mais verdadeiro.
Fomos condicionados a pensar nas trevas como espaço de perigo, até de morte. Mas as trevas também podem ser espaço de liberdade e possibilidade, um espaço de igualdade. Para muitos, o que é discutido aqui será óbvio, pois sempre viveram nas trevas que parecem tão ameaçadoras aos privilegiados. Temos muito a aprender sobre o não saber. A incerteza pode ser produtiva, até mesmo sublime.
A cova final e mais crucial é a que se abre a nós como indivíduos quando não conseguimos reconhecer e articular as condições atuais. Não se engane: há aspectos da nova idade das trevas que são ameaças reais e existenciais imediatas, sendo os mais óbvios o aquecimento global e os ecossistemas em choque no planeta. Há também os efeitos correntes do consenso em colapso, da ciência que fracassa, horizontes de previsão truncados, e paranoia pública e privada — todos os quais evidenciam discórdia e violência. As disparidades de renda e de entendimento são ambas mortais em um prazo nem tão longo assim. Todos estão conectados: todos são fracassos no pensar e no falar.
Escrever sobre a nova idade das trevas, mesmo que eu consiga impregnar o texto da esperança em rede, não é agradável. Exige dizer coisas que preferiríamos não dizer, pensar em coisas que preferiríamos não pensar. Fazer isso muitas vezes nos deixa com uma sensação oca na barriga, uma espécie de desespero. E não conseguir fazer isso seria o fracasso em reconhecer o mundo tal como ele é, continuar a viver na fantasia e na abstração. Penso em meus amigos, e nas coisas que nos dizemos quando somos honestos e, em certo nível, como isso nos apavora. Há certa vergonha em falar das exigências do presente, assim como uma vulnerabilidade profunda, mas isso não pode fazer com que paremos de pensar. Não podemos fracassar uns com os outros.
Computação
Em 1884, o crítico de arte e pensador John Ruskin deu uma série de palestras na London Institution com o título “A nuvem de tormenta do século XIX ”. Ao longo das noites de 14 a 18 de fevereiro, ele apresentou uma retrospectiva de descrições do céu e das nuvens a partir da arte clássica e europeia, assim como relatos de montanhistas nos Alpes que ele tanto amava, além de observações próprias dos céus no sul da Inglaterra nas últimas décadas do século XIX .
Nessas palestras, ele propôs a ideia de que o céu apresentava um novo tipo de nuvem, que ele chamou de “nuvem de tormenta” ou às vezes de “nuvem da peste”. Essa nuvem
nunca foi vista por olhos que não os hoje vivos […] Não há descrição dela, até onde li, da parte de observadores da Antiguidade. Nem Homero nem Virgílio, nem Aristófanes nem Horácio reconhecem alguma dessas nuvens entre as arrastadas por Júpiter. Chaucer não tinha termo para elas, nem Dante, Milton ou Thomson. Nos tempos modernos, Scott, Wordsworth e Byron também ficam inscientes; e o mais observador e descritivo dos homens da ciência, De Saussure, é absolutamente silente em relação a elas. [1]
A “observação atenta e constante” dos céus por parte de Ruskin o levara a crer que havia novos ventos soprando distantes da Inglaterra e do continente, um “vento da peste” que trazia uma nova situação climática. Citando uma anotação de seu próprio diário em 1º de julho de 1871, ele informa que:
o céu está coberto por uma nuvem cinza; não é uma nuvem de chuva, mas um véu negro e seco, que raio de sol algum penetrará; parcialmente difusa em névoa, uma névoa fraca, o bastante para deixar objetos distantes ininteligíveis, mas ainda sem substância, ou enrugada, ou de cor própria…
E é algo novo para mim, assim como temível. Tenho cinquenta anos, mais do que isso; desde os cinco, dediquei as melhores horas de minha vida ao sol das manhãs da primavera e do verão; e, até hoje, nunca vi nada assim.
E os homens da ciência estão agitados como formigas, examinando o sol, a lua e as sete estrelas, e agora já podem me contar tudo a respeito, creio eu; e como se movimentam e do que são constituídos.
E eu, de minha parte, não dou dois tostões furados para o movimento desses astros, tampouco do que são constituídos. Não posso fazê-los se movimentarem de um modo diferente de como já se movimentam, nem consigo constituí-los de algo melhor do que já são. Mas eu me importo muito, e daria tudo para me dizerem de onde vem esse vento amargo e do que ele se constitui. [2]
Ele então passa a esclarecer muitas observações similares: de ventos fortes que surgem do nada a nuvens negras que cobrem o sol ao meio-dia, e chuvas de breu que putrefizeram seu jardim. E embora ele reconheça — em comentários aos quais os ambientalistas começaram a se ater — a presença de várias e múltiplas chaminés industriais na região de suas observações, a maior preocupação de Ruskin é com o caráter moral das nuvens e a maneira como elas pareciam emanar de campos de batalha e locais de inquietação social.
“Qual a melhor coisa a se fazer?, você me pergunta. A resposta é simples. Possa ou não assimilar os sinais do céu, você pode assimilar os sinais dos tempos.” [3] As metáforas que usamos para descrever o mundo, como a nuvem da peste de Ruskin, formam e moldam a compreensão que temos do mundo. Hoje, outras nuvens, que geralmente ainda emanam de espaços de manifestação e contestação, proveem as maneiras que temos para pensar o mundo.
Ruskin tratou a fundo da qualidade divergente da luz quando afetada pela nuvem de tormenta, pois a luz também possui qualidade moral. Em suas palestras, ele defendeu a tese de que o “ fiat lux da criação” — o momento em que o Deus do Gênesis diz: “Faça-se a luz” — é também o fiat anima , a criação da vida. A luz, insistiu ele, é “tanto o ordenamento da Inteligência quanto o ordenamento da Visão”. Aquilo que vemos molda não só o que pensamos, mas como pensamos.
Poucos anos antes, em 1880, Alexander Graham Bell demonstrara pela primeira vez um aparelho chamado photophone. Invenção para fazer companhia ao telefone, o photophone possibilitou a primeira transmissão “sem fio” da voz humana. Ele funcionava com o repicar de um feixe de luz em uma superfície reflexiva, que vibrava com a voz do falante, recebida por uma célula fotovoltaica primitiva que fazia as ondas de luz voltarem a ser som. Nos telhados de Washington, Bell conseguiu se fazer entender apenas com a luz a uma distância de duzentos metros.
Tendo aparecido anos antes da divulgação da primeira luz elétrica efetiva, o photophone era totalmente dependente de céus límpidos que projetassem luz no refletor. Ou seja, as condições atmosféricas podiam afetar o som que se produzia, alterando a saída. Bell, animado, escreveu ao pai: “Ouvi conversas articuladas ao nascer do sol! Ouvi um raio de sol rir, tossir e cantar! Consegui ouvir uma sombra e percebi até de ouvido a passagem de uma nuvem pelo disco do Sol”. [4]
A reação inicial à invenção de Bell não foi promissora. Um analista do New York Times perguntou, sarcástico, se “um fio de raios de sol” podia ser pendurado nos postes de telégrafo e se precisariam de isolamento. “Até que se veja um homem passando pelas ruas com um rolo de raios de sol nº 12 no lombo, para suspendê-los de poste a poste, ficará a sensação geral de que o photophone do professor Bell força tremendamente a credulidade humana”, escreveu. [5]
Esse fio de raios de sol é exatamente o que vemos hoje disposto globo afora. A invenção de Bell foi a primeira a empregar a luz como meio de transporte de informação complexa — como observou o crítico, sem querer, ela exigiria apenas o isolamento do raio de sol para que pudesse transportá-los por distâncias inimagináveis. Hoje, os raios de sol de Bell organizam os dados que passam sob as ondas do oceano na forma de cabos de fibra óptica que transmitem luz, e por sua vez organizam a inteligência coletiva do mundo. Eles possibilitam o agrupamento de vastas infraestruturas de computação que organizam e governam todos nós. O fiat lux de Ruskin, como fiat anima , é reificado na rede.
Pensar através de máquinas é uma coisa que antecede as próprias máquinas. A existência do cálculo prova que alguns problemas podem ser manejáveis antes da possibilidade de resolvê-los na prática. A história, vista como um desses problemas, pode ser transformada em equação matemática e, quando resolvida, dar o resultado do futuro. Era nisso que acreditavam os primeiros pensadores computacionais do século XX . Sua persistência em nossa época, praticamente não questionada e até mesmo inconsciente, é o tema deste livro. Hoje personalizada em nuvem digital, a história do pensamento computacional começa com a meteorologia.
Em 1916, o matemático Lewis Fry Richardson trabalhava no front ocidental; sendo um quacre, tinha compromisso com o pacifismo e por isso se inscrevera na Unidade de Ambulâncias dos Amigos (Friends’ Ambulance Unit), uma divisão quacre que incluía também o artista Roger Penrose e o filósofo e escritor de ficção científica Olaf Stapledon. Ao longo de vários meses, entre visitas ao front e períodos de descanso em choupanas úmidas na França e na Bélgica, Richardson fez o primeiro cálculo total de condições atmosféricas por processo numérico: a primeira previsão diária computada sem um computador.
Antes da guerra, Richardson fora superintendente do Observatório Eskdalemuir, uma estação meteorológica remota no oeste da Escócia. Entre os documentos que levou consigo quando foi para a guerra estavam os registros completos de um dia de observações na Europa, compilados em 20 de maio de 1910 por centenas de observadores no continente. Richardson acreditava que, aplicando-se uma série de operações matemáticas complexas a anos de coleta de dados climáticos, seria possível sugerir numericamente as observações para prever como as condições evoluiriam em horas sucessivas. Para tanto, ele preparou uma pilha de formulários de cálculo, com uma sequência de colunas para temperatura, velocidade do vento, pressão e outras informações, cuja confecção levou semanas. Ele dividiu o continente em uma série de pontos de observação uniformemente espaçados e executou seus cálculos com caneta e papel, sendo seu escritório “um monte de feno em um alojamento gelado”. [6]
Quando terminou, Richardson testou sua previsão diante dos dados observados e descobriu que seus números estavam exagerados em nível absurdo. Mesmo assim, provou-se a utilidade do método: decomponha-se o mundo em uma série de perímetros e aplique uma série de técnicas matemáticas para resolver as equações atmosféricas em cada quadradinho. O que faltava era a tecnologia para executar esse pensamento na escala e na velocidade das condições climáticas.
Em Weather Prediction by Numerical Process [Previsão do tempo pelo processo numérico], publicado em 1922, Richardson revisou e resumiu seus cálculos, e traçou um pequeno experimento intelectual para obtê-los com mais eficiência com a tecnologia à disposição. No experimento, os “computadores” ainda eram seres humanos, e as abstrações do que viríamos a entender como computação digital foram dispostas na escala da arquitetura:
Depois de tanto raciocínio pesado, podemos brincar com uma fantasia? Imagine um salão grande como um teatro, mas no qual círculos e galerias circundam o espaço geralmente ocupado pelo palco. As paredes dessa câmara são pintadas de forma a montar um mapa do globo. O teto representa as regiões do Norte polar, a Inglaterra fica na galeria, os trópicos no círculo superior, a Austrália no primeiro andar e a Antártida no poço.
Um enorme número de computadores trabalha no clima, cada um na parte do mapa onde se localiza, mas cada computador trata de uma equação ou parte de uma equação. O trabalho de cada região é coordenado por um oficial de alta patente. Vários “sinais noturnos” apresentam valores instantâneos, para que os computadores vizinhos possam consultá-los. Cada número é assim mostrado em três zonas adjacentes para manter a comunicação com o norte e o sul no mapa.
Do chão do poço se ergue um pilar que vai até a metade da altura do salão. No alto há um grande púlpito. Ali fica o homem encarregado de todo o teatro; ele é cercado de assistentes e mensageiros. Uma de suas funções é manter uma velocidade uniforme de progresso em todas as partes do globo. Nesse aspecto, ele é tal como o condutor de uma orquestra em que os instrumentos são réguas de cálculo e calculadoras. Mas, em vez de acenos com um bastão, ele dispara um feixe de luz rósea na região que estiver à frente das demais e um feixe de luz azul na que estiver atrasada.
Quatro escrivães veteranos no púlpito captam o clima futuro na velocidade em que é computado, e despacham-no por tubos pneumáticos a uma sala em silêncio total. Lá ele será codificado e telefonado à estação de transmissão por rádio. Mensageiros carregam pilhas de formulários de cálculo usados para o depósito no porão.
No prédio vizinho há um departamento de pesquisa, onde se desenvolvem melhorias. Mas há muita experimentação em pequena escala antes que se faça qualquer alteração na rotina complexa do teatro computacional. No porão, um entusiasta observa redemoinhos no forro líquido de uma grande vasilha giratória, mas até o momento a aritmética se mostra o melhor caminho. Em outro prédio ficam todas as salas usuais: financeiro, correspondência e administração. Do lado de fora, quadras esportivas, casas, montanhas e lagos, pois se considera que aqueles que computam o clima deveriam respirá-lo com liberdade. [7]
No prefácio do relatório, Richardson escreve:
Talvez algum dia, no turvo futuro, seja possível avançar as computações de modo a serem mais velozes do que as previsões climáticas e a um custo menor do que a economia que a humanidade ganharia com a informação. Mas isso é um sonho. [8]
E continuaria sendo um sonho por mais cinquenta anos, que talvez fosse resolvido pelo uso de tecnologias militares que o próprio Richardson rejeitaria. Depois da guerra, ele se filiou ao Departamento de Meteorologia com a intenção de prosseguir a pesquisa, mas se demitiu em 1920, quando o local foi tomado pelo Ministério da Aeronáutica. A pesquisa sobre previsão climática numérica ficou estagnada por anos, até ser incitada pela explosão de potência computacional que emanou de outro conflito, a Segunda Guerra Mundial. A guerra desatou vastos recursos financeiros para pesquisa, além da sensação de urgência em sua aplicação, mas também criou problemas complexos: uma fluxo vasto, devastador, de informação que caía de um mundo recém-conectado e um sistema de produção de conhecimento em expansão veloz.
No artigo intitulado “As We May Think” [Como podemos pensar], publicado na revista Atlantic em 1945, o engenheiro e inventor Vannevar Bush escreveu:
Há um volume de pesquisas que só cresce. Mas é cada vez mais evidente que, enquanto a especialização se amplia, já estamos saturados. O pesquisador fica pasmo com as descobertas e conclusões de milhares de colegas — conclusões que surgem e não temos tempo de entender, quanto menos lembrar. Entretanto, a especialização se torna cada vez mais necessária ao progresso, e o esforço para criar pontes entre disciplinas continua superficial. [9]
Bush, durante a guerra, teve o cargo de diretor do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento Científico (o OSRD , Office of Scientific Research and Development) dos Estados Unidos, o veículo primordial de pesquisa e desenvolvimento militar. Foi um dos progenitores do Projeto Manhattan, o projeto de pesquisa altamente confidencial da guerra que levou ao desenvolvimento da bomba atômica norte-americana.
A solução que Bush apresentou para estes dois problemas — a informação avassaladora disponível às mentes questionadoras e os fins cada vez mais destrutivos da pesquisa científica — foi um aparelho que ele chamou de “memex”:
Um memex é um aparelho no qual o indivíduo armazena todos os seus livros, registros e comunicações, e que é mecanizado de forma a ser consultado com grande velocidade e flexibilidade. É um suplemento ampliado e íntimo de sua memória. Consiste em uma escrivaninha, e embora se suponha que possa ser operado à distância, é no móvel que funciona primariamente. No topo ficam telas translúcidas inclinadas, nas quais se pode projetar material para leitura. Há um teclado e um conjuntos de botões e alavancas. No mais, lembra uma escrivaninha comum. [10]
Em essência, e tendo a vantagem do retrospecto, Bush propunha o computador eletrônico conectado. Sua grande sacada foi combinar, exatamente do modo como um memex possibilitaria à pessoa, múltiplas descobertas em múltiplas disciplinas — avanços em telefonia, máquinas operatrizes, fotografia, armazenagem de dados e estenografia — em uma máquina só. A incorporação do próprio tempo à matriz rende o que hoje identificaríamos como hipertexto: a capacidade de vincular documentos coletivos de maneiras múltiplas e criar associações entre domínios do conhecimento em rede: “Formas totalmente novas de enciclopédias surgirão, trazendo uma malha de trilhas associativas, prontas para ser jogadas no memex e ali ampliadas”. [11]
Algumas imagens do livro
fim da amostra…