Livro ‘Teto Para Dois’ por Beth O’Leary

Livro 'Teto Para Dois' de Beth O’Leary
Tiffy e Leon dividem o apartamento. Tiffy e Leon dividem a cama.
Tiffy e Leon nunca se encontraram. Depois de três meses do fim do relacionamento, Tiffy finalmente sai do apartamento do ex-namorado. Agora ela precisa para ontem de um lugar barato onde morar. Contrariando os amigos, ela topa um acordo bastante inusitado. Leon está enrolado com questões financeiras e tem uma ideia pouco convencional para arranjar dinheiro rápido: sublocar seu apartamento de uma cama só, onde fica apenas no período da manhã, nos dias úteis, já que passa os finais de semana com a namorada e trabalha como enfermeiro no turno da noite...
Capa comum: 400 páginas
Editora: Intrínseca; Edição: 1 (9 de setembro de 2019)
Idioma: Português
ISBN-10: 8551005413
ISBN-13: 978-8551005415
Dimensões do produto: 23 x 16,2 x 1,8 cm
Peso de envio: 540 g

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Leia trecho do livro

Para San

Livro 'Teto Para Dois' de Beth O’Leary
Livro 'Teto Para Dois' de Beth O’Leary

1

Tiffy

É preciso dizer uma coisa sobre o desespero: ele deixa a cabeça da gente muito mais aberta.

Consigo ver muitos lados bons neste apartamento. Se eu esfregar bem, o mofo multicolorido na parede da cozinha vai desaparecer, pelo menos por um tempo. O colchão nojento pode ser substituído por outro baratinho. E a gente pode muito bem argumentar que os cogumelos crescendo atrás da privada dão certo frescor ao ambiente.

Gerty e Mo, no entanto, não estão desesperados nem tentando adotar uma postura positiva. Eu descreveria a expressão deles como “pasma”.

— Você não pode morar aqui.

Foi Gerty quem disse isso. Ela está de pé, os calcanhares grudados e os cotovelos junto ao corpo, como se tentasse ocupar o menor espaço possível para protestar contra o fato de estar aqui. Seu cabelo está preso em um coque baixo, já com os grampos que facilitam a colocação da peruca que ela usa no tribunal. Seu semblante seria cômico se no momento não estivéssemos discutindo minha vida.

— Tem que ter outro lugar que caiba no seu orçamento, Tiff — diz Mo, preocupado, levantando-se depois de examinar o armário onde fica o aquecedor. Ele parece ainda mais descabelado que de costume, mas talvez fosse só a teia de aranha presa em sua barba. — Este é pior ainda do que o que a gente viu ontem à noite.

Olho em volta, procurando o corretor. Por sorte, ele está longe demais para ouvir, fumando na “varanda” (ou melhor, no telhado bambo da garagem do vizinho, que definitivamente não foi construído para que alguém andasse em cima).

— Não vou mais me dar o trabalho de ver outro buraco que nem esse — diz Gerty, consultando o relógio. São oito da manhã. Ela precisa estar no Tribunal Real de Southwark às nove. — Deve ter outra opção.

— A gente pode dar um jeito de ela ficar no nosso — sugere Mo, pela quinta vez desde sábado.

— É sério, dá para parar com isso? — retruca Gerty. — Não é uma solução a longo prazo. E ela teria que dormir de pé para caber em algum lugar. — Ela me lança um olhar exasperado. — Você não podia ser mais baixa? Daria para dormir embaixo da mesa de jantar se tivesse menos de um e setenta e cinco.

Faço cara de quem pede desculpa, mas eu realmente preferiria ficar aqui a dormir no chão do apartamento minúsculo e ridiculamente caro que Mo e Gerty compraram no mês passado. Eles nunca moraram juntos, nem quando estávamos na faculdade. Tenho medo de que isso acabe com a amizade dos dois. Mo é bagunceiro, distraído e tem uma capacidade inacreditável de ocupar espaço, apesar de ser baixinho. Já Gerty passou os últimos três anos morando em um apartamento sobrenaturalmente limpo, tão perfeito que parecia gerado por computador. Não sei como esses estilos de vida vão coexistir sem que ocorra uma explosão em Londres.

Mas a grande questão é que, se for para dormir no chão, posso simplesmente voltar para o apartamento de Justin. E, às onze da noite da última quinta-feira, tomei de uma vez por todas a decisão de que essa não é mais uma opção. Preciso continuar minha vida e me comprometer com outro lugar para não ser obrigada a voltar para lá.

Mo esfrega a testa, desabando no sofá de couro encardido.

— Tiff, eu posso te emprestar um pouco…

— Não quero seu dinheiro — digo, mais ríspida do que pretendia. — Olha, eu quero muito resolver isso ainda esta semana. É este lugar ou o apartamento compartilhado.

— A cama compartilhada, você quer dizer — lembra Gerty. — Posso saber por que você tem que fazer isso agora? Não que eu não esteja adorando essa sua decisão. É que, da última vez que conversamos sobre isso, você estava sentadinha naquele apartamento, esperando aquele- -que-não-deve-ser-nomeado se dignar a aparecer.

Eu me encolho, surpresa. Não com a opinião deles — Mo e Gerty nunca gostaram de Justin e sei que eles odeiam o fato de eu ainda estar morando na casa dele, apesar de ele quase nunca estar lá. Só não é normal ouvir Gerty falar dele diretamente. Depois que a última tentativa de ter um jantar tranquilo terminou com uma briga violenta entre nós quatro, desisti de me esforçar para fazer todos se entenderem e apenas parei de falar sobre Justin com Gerty e Mo. Não é fácil se livrar de velhos hábitos — e, mesmo após o término, todos evitamos falar dele.

— E por que tem que ser tão barato? — continua Gerty, ignorando o olhar de repreensão de Mo. — Eu sei que você ganha uma ninharia, mas, sério, Tiffy, quatrocentos por mês é impossível em Londres. Você já parou para pensar em tudo isso? De verdade?

Engulo em seco. Vejo que Mo está me observando com atenção. Este é o problema de ser amiga de um psicólogo: Mo é basicamente formado em leitura de mentes e parece incapaz de desligar seus superpoderes.

— Tiff? — chama ele, carinhoso.

Ah, droga, vou ter que mostrar a eles. Não tenho mais como escapar disso. Depressa e de uma vez só, essa é a melhor maneira — como arrancar um curativo, entrar na água fria ou contar à minha mãe que quebrei um bibelô da cômoda da sala.

Pego o telefone e abro a mensagem no Facebook.

Tiffy,
Fiquei muito decepcionado com sua reação ontem à noite. Você ultrapassou todos os limites. O apartamento é meu, Tiffy. Posso vir para cá quando quiser, com quem eu quiser.
Achei que receberia mais gratidão de sua parte por eu ter deixado você ficar. Sei que o nosso término foi difícil e que você não está pronta para sair de casa. Mas se acha que isso lhe dá o direito de tentar “estabelecer regras”, está na hora de me pagar os últimos três meses de aluguel. E vai ter que pagar todos os meses daqui para a frente também. Patricia disse que você está se aproveitando de mim, já que está morando basicamente de graça na minha casa. Apesar de eu sempre ter defendido você, é impossível não achar que ela talvez esteja certa depois do seu showzinho de ontem.
Bjs,
Justin

Meu estômago se revira quando releio o trecho você está se aproveitando de mim, porque essa nunca foi a minha intenção. Só não sabia que, desta vez, ele tinha mesmo saído de casa.

Mo termina de ler primeiro.

— Ele “apareceu” de novo na quinta? Com a Patricia?

Evito olhar para eles.

— Ele está certo. Foi muita gentileza me deixar ficar tanto tempo…

— Engraçado… — diz Gerty, séria. — Sempre tive a impressão de que ele gostava de manter você lá.

Soa estranho como ela falou, mas eu meio que tenho a mesma sensação. Enquanto estiver no apartamento de Justin, nosso namoro não vai ter terminado de verdade. Afinal, ele acabou voltando todas as outras vezes. Mas aí… conheci a Patricia na quinta-feira. A mulher real, extremamente atraente e muito simpática por quem Justin me trocou. Ele nunca esteve com outra mulher antes.

Mo pega minha mão; Gerty pega a outra. Nós três ficamos ali, ignorando o corretor fumando na varanda, e me permito chorar por um instante — apenas uma lágrima pesada em cada bochecha.

— Bom, é isso! — digo, animada, largando as mãos deles para secar os olhos. — Preciso me mudar. Agora. Mesmo que quisesse ficar e correr o risco de ele levar a Patricia lá outra vez, não consigo pagar o aluguel. Estou devendo um monte de dinheiro ao Justin e não quero pedir emprestado para ninguém. Para ser sincera, estou cansada de não conseguir me sustentar, então… sim. É isto aqui ou o apartamento compartilhado.

Mo e Gerty se encaram. Gerty fecha os olhos, dolorosamente resignada.

— Bom, de jeito nenhum você vai morar aqui. — Ela abre os olhos e estende a mão. — Me mostre o anúncio de novo. Entrego o telefone, passando da mensagem de Justin para o anúncio de um apartamento compartilhado.

Aluga-se cama de casal em apartamento ensolarado de um quarto em Stockwell. Aluguel: 350 libras por mês com taxas inclusas. Disponibilidade imediata, contrato de no mínimo seis meses.
O apartamento (e quarto/cama) será compartilhado com profissional de cuidados paliativos de vinte e sete anos que trabalha à noite e fica fora nos fins de semana. Está em casa apenas de nove da manhã às seis da tarde. De segunda a sexta. No resto do tempo, o imóvel será todo seu! Perfeito para alguém que trabalha de nove às cinco.
Para visitar, entre em contato com L. Twomey — informações abaixo.

— Você não iria só dividir um apartamento, Tiff. Dividiria uma cama. Isso é muito estranho — diz Mo, preocupado.

— E se esse L. Twomey for um homem? — pergunta Gerty.

Estou preparada para essa pergunta.

— Não importa — respondo, mantendo a calma. — Não é como se a gente fosse usar a cama ao mesmo tempo. Na verdade, nem o apartamento.

A frase soa estranhamente parecida com a que eu disse para justificar o fato de que ficaria no apartamento de Justin no mês passado, mas tudo bem.

— Você vai dormir com o cara, Tiffany! — exclama Gerty. — Todo mundo sabe que a principal regra para se dividir um apartamento é não dormir com o colega de quarto.

— Acho que as pessoas não estão pensando nesse tipo de acordo quando dizem isso — respondo, seca. — Olha, Gerty, às vezes, quando as pessoas falam “dormir juntas”, elas se referem a…

Gerty olha no fundo dos meus olhos por um bom tempo.

— Eu sei, obrigada, Tiffany.

Mo abafa uma risada quando Gerty dirige seu olhar frio para ele. — Eu diria que a principal regra para se dividir um apartamento é ter certeza de que se dá bem com a pessoa que vai morar com você — diz Mo, espertamente redirecionando o olhar de Gerty para mim. — Sobretudo nessas circunstâncias.

— É óbvio que eu vou conhecer esse tal de L. Twomey primeiro. Se a gente não se der bem, não vou alugar o quarto.

Depois de alguns segundos, Mo assente e aperta meu ombro. Todos mergulhamos no tipo de silêncio que acompanha um assunto difícil — estamos gratos por ter acabado e aliviados por termos conseguido falar a respeito.

— Está bem — concorda Gerty. — Tudo bem. Faça o que tiver que fazer. Só pode ser melhor que morar nesta imundície. — Ela sai marchando do apartamento, mas se vira no último instante para falar com o corretor quando ele sai da varanda. — E você — diz em voz alta — é uma maldição para a sociedade.

Ele pisca quando ela bate a porta. Um silêncio longo e constrangedor toma a sala.

O corretor amassa a bituca do cigarro.

— Isso quer dizer que você está interessada? — pergunta.

Chego ao trabalho cedo e desabo na cadeira. No momento, minha mesa é a coisa mais próxima que tenho de um lar. É o paraíso dos projetos de artesanato semiprontos, coisas que acabaram sendo pesadas demais para se levar de ônibus e vasos de plantas numa configuração que me permita ver as pessoas se aproximando antes que elas saibam se estou ou não na minha mesa. A parede de plantas é vista por toda a equipe como um exemplo inspirador de design de interiores. (A dica é escolher plantas da mesma cor do seu cabelo — ruivo, no meu caso — e se esconder/fugir quando vir alguém cheio de determinação se aproximando.)

Minha primeira tarefa do dia é uma reunião com Katherin, uma das minhas autoras favoritas. Ela escreve livros sobre tricô e crochê. O público que compra essas obras pertence a um nicho, mas este é o forte da Butterfingers Press: adoramos um bom nicho. Nós nos especializamos em livros de artesanato e do tipo “faça você mesmo”. Lençóis de batique, vestidos, luminárias de crochê, móveis criados a partir de escadas… Esse tipo de coisa.

Adoro o meu trabalho. É a única explicação possível para eu ser editora assistente há três anos e meio, ganhar menos de um salário-mínimo e nunca ter tentado corrigir essa situação, arrumando, por exemplo, uma entrevista em uma editora que lucre de verdade. Gerty diz que não tenho ambição, mas não é bem isso. A verdade é que adoro essas coisas. Quando criança, eu passava os dias lendo ou remexendo nos meus brinquedos até deixá-los mais com a minha cara: tingindo o cabelo da Barbie, decorando meu caminhão-escavadeira… Agora ganho a vida lendo e fazendo artesanato.

Bom, na verdade, não chego a ganhar a vida. Mas recebo um pouquinho de dinheiro. O bastante para pagar os impostos.

— É sério, Tiffy, os livros de crochê são os próximos livros de colorir — diz Katherin, depois de se sentar em nossa melhor sala de reuniões e falar sobre seu próximo projeto.

Examino o dedo que ela está balançando em minha direção. Katherin tem cerca de cinquenta anéis em cada mão, mas ainda tenho que descobrir se algum é uma aliança de noivado ou de casamento (acho que, caso ela tenha algum deles, deve ter mais de um).

Katherin é uma pessoa que vive dentro do espectro aceitável da excentricidade: usa trança no cabelo louro-claro, tem um daqueles bronzeados que, de alguma forma, fica bem em pessoas mais velhas e guarda várias histórias sobre os lugares que invadiu nos anos 1960 para mijar nas coisas. Foi uma verdadeira rebelde. Se recusa a usar sutiã até hoje, apesar de os sutiãs terem se tornado muito mais confortáveis e as mulheres já terem desistido de lutar pelo poder porque a Beyoncé está fazendo isso por nós.

— Isso seria ótimo — digo. — Talvez a gente possa usar um slogan com a palavra “atento”. É uma atividade que nos deixa mais atentos, não? Ou será que distrai?

Katherin ri, jogando a cabeça para trás.

— Ah, Tiffy. O seu trabalho é ridículo. — Ela dá uma série de tapinhas carinhosos na minha mão e pega a bolsa. — Se encontrar aquele menino, o Martin, diga que só vou dar aquela aula no cruzeiro se tiver uma assistente jovem e glamorosa.

Solto um grunhido. Sei onde isso vai dar. Katherin gosta de me arrastar para essas coisas — pelo visto, qualquer aula que exija um modelo vivo para demonstrar como tirar medidas para peças de roupa. Certa vez, cometi o erro fatal de me oferecer para o trabalho porque ela não tinha conseguido encontrar ninguém. Agora sou sua favorita. O setor de relações públicas precisa tanto que Katherin vá a esse tipo de evento que começou a implorar que eu participe também.

— Isso está indo longe demais, Katherin. Não vou fazer um cruzeiro com você.

— Mas é de graça! As pessoas pagam milhares de libras para ir, Tiffy.

— Você só vai subir no navio para dar a volta na Ilha de Wight. — Martin já me falou sobre esse evento. — E é num fim de semana. Não trabalho nos fins de semana.

— Não é trabalho — insiste Katherin, reunindo suas anotações e as enfiando na bolsa de qualquer jeito. — É um lindo cruzeiro num sábado com uma amiga. — Ela faz uma pausa. — Eu, no caso. Somos amigas, não somos?

— Eu sou sua editora! — digo, empurrando-a para fora da sala de reunião.

— Pense um pouco, Tiffy! — grita ela, sem se perturbar. É então que ela vê Martin, que já está olhando para ela por cima das impressoras. — Só vou se ela for, Martin, querido! É ela quem você precisa convencer!

Então Katherin vai embora, deixando as portas de vidro sujo do escritório balançando atrás dela.

Martin se vira para mim.

— Gostei dos seus sapatos — diz, com um sorriso charmoso.

Eu estremeço. Não suporto Martin, um dos relações-públicas. Ele diz coisas como “vamos agregar valor a isso” nas reuniões e estala os dedos para Ruby, uma executiva de marketing que Martin considera sua assistente. Ele só tem vinte e três anos, mas acha que parecer mais velho pode ajudar em sua busca implacável por cargos mais altos, então sempre usa uma voz jocosa horrível e tenta conversar com nosso diretor-geral sobre golfe.

Só que meus sapatos são mesmo maravilhosos. São botas roxas no estilo Doc Martens pintadas com lírios brancos que me tomaram a maior parte do sábado. A dedicação ao artesanato e à customização de objetos se tornou bem mais frequente desde que Justin me largou.

— Obrigada, Martin — respondo, já tentando voltar para a segurança da minha mesa.

— Leela comentou que você está procurando um lugar para morar. Hesito por um instante. Não sei onde isso vai dar. Sinto que num lugar nada bom.

— Eu e Hana — uma mulher do marketing que está sempre criticando minhas roupas — temos um quarto vago. Talvez você tenha visto no Facebook, mas achei melhor mencionar, tipo, ao vivo. O quarto tem uma cama de solteiro, mas, bom, imagino que isso não vá ser problema para você agora. Como somos amigos, Hana e eu decidimos que podíamos oferecer para você por quinhentos ao mês, fora as taxas.

— É muita gentileza sua! Mas na verdade acabei de encontrar um apartamento.

Bem, eu meio que encontrei. Quase. Ah, meu Deus, se L. Twomey não me quiser, será que vou ter que morar com Martin e Hana? Quer dizer, passo todos os dias úteis com eles e, sinceramente, já é tempo demais para mim. Não sei se minha decisão (já incerta) de deixar a casa de Justin vai se manter diante da ideia de ter Martin correndo atrás de mim para cobrar o aluguel ou de Hana me julgando toda manhã porque estou com meu pijama de Hora de Aventura manchado de mingau.

— Ah. Certo, tudo bem. Vamos ter que achar outra pessoa, então. — O rosto de Martin adquire uma expressão astuta. Ele sente cheiro de culpa. — Você poderia compensar isso indo com Katherin ao…

— Não.

Ele solta um suspiro exagerado.

— Caramba, Tiffy. É um cruzeiro de graça! Você não faz cruzeiros o tempo todo?

Eu fazia cruzeiros o tempo todo, quando meu namorado maravilhoso, e agora ex, me levava com ele. Navegávamos de ilha caribenha em ilha caribenha em meio a uma bruma ensolarada de alegria romântica. Explorávamos as cidades europeias, depois voltávamos ao navio para fazer um sexo incrível em nossa pequena cabine. Nós nos entupíamos no bufê liberado e depois nos deitávamos no deque para observar as gaivotas voando, enquanto conversávamos sem a menor preocupação sobre nossos futuros filhos.

— Parei — falo, pegando o telefone. — Agora, com licença, tenho que fazer uma ligação.

2

Leon

O telefone toca enquanto a dra. Patel prescreve remédios para Holly (menininha com leucemia). Hora errada. Péssima. A dra. Patel não está feliz por ser interrompida e deixa isso claro. Parece ter esquecido que eu, por ser enfermeiro da noite, já deveria ter ido para casa às oito da manhã, mas ainda estou aqui lidando com doentes e profissionais irritados como ela.

Ignoro a ligação, óbvio. Depois tenho que me lembrar de ouvir o recado e mudar o toque do celular para alguma coisa menos vergonhosa (esse de agora se chama “Jive” e é animado demais para o ambiente hospitalar. Não que um lugar com pessoas doentes não mereça animação, mas nem sempre é apropriado).

Holly: Por que não atendeu? Não é falta de educação de sua parte? E se fosse sua namorada de cabelo curto?

Dra. Patel: Falta de educação é não colocar o celular para vibrar durante a ronda. Mas estou surpresa de alguém, seja lá quem for, ter tentado ligar para ele a essa hora.

Olha para mim, meio irritada, meio rindo.

Dra. Patel: Talvez você tenha notado que o Leon não é de falar multo, Holly.

Ficam de segredinho.

Dra. Patel: Um dos residentes diz que o Leon tem um número de palavras limitado para usar por turno e, a essa hora, o estoque já acabou.

Não me digno a responder.

Falando em namorada de cabelo curto: ainda não contei a Kay sobre o negócio do quarto. Não tive tempo. Tentando fugir de uma briga inevitável. Mas preciso ligar para ela hoje de manhã, sem falta.

Hoje foi bom. A dor do sr. Prior diminuiu. O bastante para ele começar a me contar sobre o homem pelo qual se apaixonou nas trincheiras: um cara charmoso de cabelo preto chamado Johnny White, com um brilho no olhar e o queixo esculpido de um astro de Hollywood. Passaram um verão romântico e agitado em meio à guerra e depois se separaram. Johnny White foi levado para o hospital com estresse pós-traumático. Os dois nunca mais se viram. O sr. Prior podia ter enfrentado muitos problemas (homossexualidade é perturbador para militares).

Eu estava cansado, o café, perdendo efeito, mas fiquei com o sr. Prior depois da troca de turno. O cara nunca recebe visita e adora conversar. Impossível escapar da conversa sem um cachecol (o décimo quarto que ganho dele). Só posso recusar até certo ponto, e o sr. Prior tricota tão rápido que me pergunto por que se deram o trabalho de fazer a Revolução Industrial. Quase certeza de que ele é mais rápido do que uma máquina.

fim da amostra…


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