Uma história de esperança, amor e coragem em meio a encontros e desencontros. Da autora de A livraria mágica de Paris. Em Londres, a caminho da escola do filho adolescente que até então não conhecia, o bretão Henri Skinner, ex-repórter de guerra, é atropelado. Levado às pressas ao hospital, Henri paira em coma num mundo de sonhos, revivendo os momentos críticos do passado e o segredo que norteou sua atitude-padrão durante a vida: fugir. Após o acidente, Sam — um menino sinestésico e prodígio (integrante da Mensa) de treze anos — passa horas junto ao leito do pai na UTI, todos os dias, à espera de um milagre...
Capa comum: 256 páginas Editora: Tusquets; Edição: 1 (20 de setembro de 2019) Idioma: Português ISBN-10: 8542217535 ISBN-13: 978-8542217537 Dimensões do produto: 22,4 x 14,7 x 1,5 cm Peso de envio: 272 g
Melhor preço cotado ⬇️
Leia trecho do livro
INTRODUÇÃO
As obras de Shusaku Endo ocupam uma posição invejável na literatura japonesa moderna. Seus romances são muito conceituados no Japão e gozam, ao mesmo tempo, de amplo reconhecimento no Ocidente. Nos anos 1980 e 1990, muitos leitores ocidentais, se indagados sobre qual era seu autor japonês favorito, talvez houvessem mencionado Endo. Durante algum tempo, porque era um japonês cristão (e apenas cerca de 1% da população japonesa é cristã) e porque o tema constante em suas obras era a incompatibilidade entre essa religião e sua terra natal, ele ficou conhecido como “Graham Greene japonês”. Endo parecia gostar da comparação, uma vez que Greene e Endo tinham grande estima pela obra um do outro, mas, aos poucos, percebeu-se que Endo merecia mais. Um crítico exasperado inclusive declarou que Greene teria sorte se fosse lembrado como “Endo britânico”.
Embora a comparação com Greene tenha se tornado águas passadas, ela ainda oferece um ponto de partida útil para analisar a obra de Endo. Uma vez que os dois escritores já faleceram, é fácil ver que tanto Greene quanto Endo alcançaram uma posição incontestável na literatura do século XX. No entanto, é interessante observar que o aspecto de escrita que um dia angariou mais atenção a ambos os autores — seu enfrentamento obsessivo com sua fé católica — é assunto que, em um mundo cada vez mais despojado da crença cristã, tornou-se o aspecto mais entediante de suas obras. Felizmente, no caso de cada um deles, a luta com valores cristãos serviu como ponto de partida para uma viagem mais profunda e ajudou a criar, na obra dos dois, um rico mosaico de ideias sobre temas de amor, pecado e redenção.
Por que Endo foi tão apreciado no Ocidente, enquanto outros autores japoneses eminentes permanecem desconhecidos? Muitos escritores japoneses não superam a barreira da tradução, mas ele, devido à lucidez brilhante de sua prosa e ao fato de ter escrito da perspectiva de um cristão, conseguiu transpor essa barreira de forma triunfal. Indiscutivelmente, Endo foi um excelente escritor — talvez não pelos motivos que costumam ser atribuídos a ele. A introdução do cristianismo no Japão e a subsequente perseguição dos cristãos como foi descrita em Silêncio é uma história fascinante e trágica, mas, apesar disso, a narrativa do conflito entre os valores cristãos e a cultura japonesa é, para a maioria das pessoas, tanto no Japão como no exterior, assunto bastante específico. Ainda assim, escrever sobre esse tema se tornou hábito para Endo, assim como foi para Monet pintar nenúfares do lago em Giverny. Em si, talvez esse assunto não fosse da maior importância, mas se tornou o meio de investigar algo profundo sobre a natureza da identidade e da própria existência. Por meio do conflito entre a cultura japonesa e o cristianismo, Endo pôde descortinar o tema da natureza de todas as crenças e a questão da validade de nossos valores centrais. Celebrado tanto no país natal como no exterior, Endo conseguiu criar um conjunto de obras singulares, cada romance parecendo complementar e ampliar os demais. Houve uma harmonia quanto ao total de suas realizações, como se todos os aspectos do assunto houvessem sido explorados e ele pudesse relembrar isso com orgulho.
Ainda mais incrível, portanto, é o nível extraordinário e execrador de autocrítica que Endo foi capaz de reunir em Escândalo. Não estamos mais presos em uma era distante. A época é o agora — a Tóquio de 1980, quando o romance foi escrito —, e o protagonista Suguro se identifica em todos os aspectos como um autor muito semelhante ao próprio Endo. Ambos são ilustres romancistas católicos que receberam grandes prêmios literários e, quando lemos que Suguro escreveu Uma vida de Cristo, A voz do silêncio e O emissário, lembramo-nos de que três dos romances de Endo são intitulados A Life of Jesus [Uma vida de Jesus], Silêncio e Samurai. Suguro tem 65 anos, três anos mais velho que o próprio Endo quando publicou o romance e, como Endo, passou por problemas de saúde várias vezes e por longos períodos de internação. Como Endo, ele mantém um escritório em Yoyogi e, como outra autorreferência camuflada, tanto o nome Suguro quanto o nome da jovem Mitsu Moáta, por quem Suguro começa a nutrir sentimentos, são usados anteriormente na ficção de Endo.
Quando Escândalo foi publicado pela Shinchosha, em março de 1986, havia uma citação do autor no verso da capa:
Cinco anos atrás, quando terminei Samurai, não pensei que na sequência produziria este tipo de livro. No entanto, desde aquela época, fui tomado pelo impulso de, de algum modo, abalar o mundo literário que eu havia criado. Por mais que tentasse reprimir esse movimento, não consegui. No entanto, um dos temas importantes nesta obra vem espreitando em minha mente desde que eu era um jovem estudante em Lyon. Trinta anos depois, a ideia se revelou e mostrou abertamente sua cara.
Endo expôs mais sobre essa ideia em uma entrevista da mesma época na qual ele também falou sobre como havia se interessado recentemente pela psicologia profunda de Jung e pela consciência-unicamente do budismo:
Percebi que, como indivíduo, havia dentro de mim – para além das coisas que eu vinha estudando incansavelmente e das ideias que havia tido – outro eu que mantinha em meu inconsciente […]. Se investigasse isso, será que o mundo literário de Endo sobre o qual eu havia escrito seria ameaçado, será que seria abalado? […] A maior diferença entre o budismo e o cristianismo é que o cristianismo dá muita importância à relação entre a própria pessoa e os outros, e o budismo considera o verdadeiro eu da pessoa […]. Então resolvi me aprofundar naquilo que o budismo chama de consciência-unicamente ou naquilo que a psicologia profunda chama de mundo do inconsciente. Meus romances, por serem “romances que investigam, romances que procuram”, haviam sistematicamente assumido o padrão de investigar os outros. Então desta vez pensei em tentar escrever um romance em que eu investigasse esse outro eu dentro de mim mesmo.
Em outra parte, ele afirmou:
Deixe-me esclarecer que estou escrevendo sobre o mundo subconsciente, não sobre o mundo consciente. O leitor, como acontece com os chamados romances comuns, pensará que se trata do mundo consciente. E eu serei criticado porque não existe um tipo de continuidade temporal e que muitas coisas improváveis acontecem, mas, quando sonhamos, não existe progressão temporal e muitas coisas improváveis se mesclam, então achei que gostaria de tentar escrever algo semelhante.
Endo propositalmente moldou o livro segundo a tradição da “I-novel” japonesa (Watakushi-shosetsu), que, apesar dos elementos de ficcionalização, é intimamente baseada no próprio autor. Na forma clássica desses romances, como Declínio de um homem (Ningen Shikkaku, 1948), de Osamu Dazai, ou Confissões de uma máscara (Kamen no Kokuhaku, 1949), de Yukio Mishima, o narrador revela seu verdadeiro eu interior — desejos pervertidos, pensamentos malignos e tudo o mais — mesmo enquanto o mundo exterior continua a ser enganado pela aparência externa, normalmente dócil e branda, do protagonista. Em Escândalo, Endo inverte o padrão habitual. Aqui o protagonista Suguro quer desesperadamente manter as aparências e a máscara de respeitabilidade. É o mundo exterior, na forma do malicioso jornalista investigativo Kobari e dos apreciadores do mundo das luzes vermelhas de Kabukicho, que o pressiona, dizendo-lhe que ele é uma fraude e está enganando todo mundo com a imagem imaculada que apresenta.
Endo explicou como concebeu a ideia deste romance:
Na primeira versão, à qual não dei continuidade, um homem que eu conhecia ficou noivo de uma garota que ainda estava na nona série, isto é, ficou noivo de uma amiga do meu filho. Ele havia desapontado a garota, e ela me mostrou seu diário. Nas etapas finais, começou a ficar excruciante, então, embora eu soubesse que queria colocar isso em um romance algum dia, deixei a ideia de lado. Entretanto, depois de abandonar essa narrativa, escrevi uma segunda versão, na qual modifiquei esses materiais, transformando-os em romance de mistério, tendo como protagonista um escritor como eu. Não apenas um romance de mistério (romance de detetive), mas um romance místico. Contudo, um leitor japonês não entraria nesse outro mundo se não acreditasse nele. Além do mais, o romance corria o risco de virar uma fantasia enfeitada. Então eu tinha que inserir, desde o início, um tipo de realidade naturalista que permitisse ao leitor ser arrastado para a realidade do mundo espiritual. Se eu fosse invocar a realidade do mundo espiritual desde o princípio, o leitor japonês poderia não entender. Daí pensei que, nas etapas iniciais, eu faria o leitor acreditar na história empregando o estilo de I-novel.
O estilo I-novel é mais óbvio na descrição da cerimônia de premiação no início do livro. O próprio Endo havia recebido o prêmio Noma por Samurai, e seus amigos dos anos iniciais da carreira literária, Shotaro Yasuoka e Junnosuke Yoshiyuki, foram membros da comissão julgadora. Endo inclusive havia escrito suas ideias sobre essa cerimônia em um pequeno texto chamado “An Award Ceremony Evening” [Uma noite de cerimônia de premiação]. Assim, a premiação e a descrição dos amigos escritores de Suguro no começo de Escândalo refletem intimamente esses eventos pessoais.
A descrição da saúde frágil de Suguro também se baseia na experiência de Endo. Em 1980, quando Endo terminou Samurai, ele foi internado no hospital com suspeita de câncer de mandíbula e passou por uma cirurgia para drenar um empiema, embora os exames tivessem revelado que ele não tinha câncer. Ele estava, sim, com diabetes e pressão alta e, no ano seguinte, sua doença no fígado piorou (Endo teve hepatite devido a uma transfusão de sangue na época de sua cirurgia para tratar a tuberculose em 1961); com isso, foi internado mais uma vez. Posteriormente, ele recebeu cuidados médicos em casa enquanto sua batalha contra a doença continuava. Lutando contra essas enfermidades, consciente de que a velhice chegava e com cada vez mais medo da morte, ele começou a escrever Escândalo. Endo salientou que:
Se ele [ Suguro] tivesse minha verdadeira idade de 62 anos, pareceria ainda estar em seu apogeu. Claro, pelos últimos quatro ou cinco anos, e posso dizer isso agora, meu corpo esteve bem fraco e tive medo de morrer. Isso é a velhice, pensei.
Essa coisa chamada velhice não é um momento de bela madurez, mas, sim, algo repugnante e doloroso, com muitos aspectos feios. Se me perguntassem por que é repugnante e feio, eu diria que é porque se trata de um rito de passagem, uma preparação para ir ao outro mundo. Um rito de passagem envolve aguentar suplícios. Esse é um dos temas do romance.
Quando Suguro começa a ver nas multidões de leitores agradecidos que vão ouvi-lo falar uma aparição fugaz de si mesmo, parece a premonição da morte iminente. E ele é, então, atormentado por relatos das atividades desse sórdido duplo por bares, bordéis e motéis da cidade. Vê-se forçado a buscar esse sósia para proteger sua reputação, mas começa a perceber que as atividades desse misterioso duplo na verdade representam uma exteriorização de seus próprios desejos reprimidos. O leitor é colocado em uma terra de ninguém do mistério, sem saber ao certo se o duplo existe de fato ou não e se Suguro tem mesmo uma vida secreta sinistra que ele nega. Concebida tanto como thriller psicológico quanto como obra metafísica sombria, Endo se apropria irrestritamente do padrão de obras como O duplo, de Dostoiévski, bem como de elementos de obras da fantasia clássica, por exemplo O médico e o monstro, de Stevenson. Em mais uma reviravolta, há uma dupla caçada acontecendo, em que Kobari, o escritor incompetente, persegue o romancista que tanto despreza, fazendo de Suguro tanto o perseguidor como o perseguido.
Um dos muitos prazeres do romance é sua noção topográfica de áreas díspares de Tóquio: passamos da região altamente sexualizada, representada pela zona de entretenimento de Kabukicho, aos relaxantes espaços verdes do parque Yoyogi, onde jovens ouvem bandas amadoras, e à majestade solene do palácio imperial. A cidade é como um corpo humano que contém órgãos diferentes para atender a funções e desejos distintos. Quando Suguro quer se retirar dos mecanismos que compõem a cidade, ele se refugia na câmara escura do escritório onde escreve, que lhe oferece o conforto da volta ao útero materno. Um psicólogo apresenta a teoria de que, ao nascer, somos traumatizados pelo choque e pela dor da expulsão do útero à força e é isso que pode mais tarde levar a instintos sadomasoquistas; nas várias peregrinações frenéticas de Suguro pela cidade, é como se ele encontrasse conforto não em sua vida caseira — que nunca é descrita —, mas quando volta para a segurança de sua vida como escritor, a segurança de seu escritório escuro semelhante a um útero.
Inicialmente, Endo pretendia chamar o romance de A oração de um velho, e foi ideia do editor substituir o título por Escândalo; foi, porém, uma decisão com a qual Endo disse não ter ficado totalmente feliz. De fato, no romance descobrimos que o próprio Suguro está escrevendo um romance sobre a velhice chamado Seus anos de declínio. Endo disse que
em princípio, pensei em dar ao romance o título de A oração de um velho, mas alguém na Shinchosha me disse que apenas A oração de um velho era fraco, então mudamos para Escândalo. No entanto, eu realmente queria chamá-lo só de A oração de um velho, então fiz o protagonista dizer: “Na verdade, eu queria este título”.
Evidentemente, a principal intenção de Endo era demonstrar que a velhice não trazia uma calma serena e uma sabedoria como aquela que Suguro pensa notar no rosto do velho sacerdote que ele encontra em Nagasaki. Em vez disso, Suguro não apenas vivencia seu próprio declínio físico e a preocupação com os constantes exames médicos e avisos sobre sua saúde frágil, como tem plena consciência da fragilidade da saúde da mulher e da artrite dela. Nesse meio-tempo, seus amigos começam a morrer, um após o outro. Pior de tudo, ele não consegue sequer reivindicar um pouco de calma espiritual, mas vê sua vida virar de cabeça para baixo com a ideia de que, em toda a sua produção literária, ele esteve amedrontado demais para encarar a zona mais sombria da psique humana. Ele sempre alegou que mesmo o pior tipo de pecado contém em si a semente da redenção, mas será que não há tipos de desejo intrínseco que são completamente, irremediavelmente, maus? Além disso, será que esses desejos sádicos brutais estão presentes não só em pessoas monstruosas, mas também naquelas que em geral são gentis, generosas e amáveis?
É esse aspecto de Escândalo – essa investigação profundamente honesta sobre os aspectos tortuosos, contraditórios e emaranhados da sexualidade humana — que prende o interesse do leitor. Endo não recua em sua análise dos impulsos sadomasoquistas e os encontra não nas fontes habituais, mas, sim, em pessoas como a refinada e elegante madame Naruse, uma voluntária que cuida amorosamente de crianças doentes no hospital. (Em um artigo de 1982 no jornal Yomiuri, o próprio Endo havia escrito um artigo pedindo voluntários para os hospitais.) Madame Naruse se preocupa com o resultado das cirurgias das crianças e, no entanto, consegue se transformar em uma pessoa totalmente diferente, que sente um imenso estímulo sexual ao pensar em seu marido, um professor universitário gentil, amante da literatura, tocando fogo de propósito, durante a guerra, em uma casa cheia de crianças aos gritos. Mas a verdadeira questão sobre a sexualidade é que, muitas vezes, ela é o avesso da personalidade habitual de uma pessoa. Ela se recusa a ser perfeitamente regida pela moral e pela racionalidade. As coisas que nos estimulam sexualmente costumam ser coisas terrenas, perigosas e por vezes cruéis, das quais nos dissociamos quando não estamos excitados.
Suguro tem um sósia pelas ruas do bairro da luz vermelha de Tóquio, e madame Naruse tem uma sósia perambulando em sua psique. E todos nós temos um duplo espreitando dentro de nós, os desejos sexuais profundamente enraizados que não queremos tornar públicos, o lado malicioso e lascivo de nossa imagem cotidiana cuidadosamente arrumada que parece respeitável. Suguro só começa a ver esse seu lado no exato momento em que, recebendo seu grande prêmio literário, ele tolamente pensa ter proporcionado a soma da obra de sua vida. Ele transformou a exploração de valores cristãos lutando por aceitação em uma terra hostil em sua maior conquista, mas começa a perceber que talvez tenha feito papel de hipócrita esse tempo todo. Talvez, se a imagem fraca e lamentável de Jesus carregando sua cruz houvesse passado diante de si, Suguro, como o resto da multidão, teria sentido prazer em zombar dele e atirar-lhe pedras.
Suguro percebe que se sente sexualmente atraído pela criança Mitsu Mofita, que nem ao menos está no ensino médio e só tem por volta de catorze anos. Suguro faz o melhor que pode para reprimir esses pensamentos, mas, como todos os desejos reprimidos, ele não controla seus pensamentos à noite e tem de escrever em seu diário que teve outro “sonho ruim”. Suguro olha com inveja para o sacerdote católico de olhar sereno que encontra em Nagasaki, e é interessante lembrar que Endo escreveu Escândalo antes das amplas revelações de abuso infantil entre membros do clero católico nos anos 1990. De fato, a corajosa e honesta descrição de Endo sobre esse desejo sexual moralmente repugnante parece prenunciar a subsequente devastação da ingênua ideia de que os tipos religiosos não tinham tais desejos.
No romance, Suguro deve se aventurar no bairro da luz vermelha de Kabukicho ou nos motéis de Roppongi para descobrir um mundo irrestrito de prazer sexual. É como se o dr. Jekyll morasse no útero seguro da toca do escritor, enquanto o terrível sr. Hyde paira pelas ruas em discretas áreas do outro lado da cidade. No entanto, no mundo de hoje, é exatamente na privacidade escura do próprio quarto que a pornografia fornecida pelo computador satisfaz e estimula todo tipo de desejo. Agora é o dr. Jekyll quem mostra a cara para o mundo enquanto o sr. Hyde mora dentro do útero protegido.
Na época em que escrevi esta introdução, em contraste com muitos dos outros romances de Endo, a maioria dos quais se encontra livremente disponível em livros de bolso, Escândalo estava disponível no original em japonês apenas como parte de uma coleção cara de quinze volumes de Obras completas. Seria possível que o radicalismo de Endo nesse romance tenha sido quase excessivo para sua legião de leitores? No romance, Suguro receia que, se o escândalo sobre suas visitas ao bairro da luz vermelha se tornar público, ele poderá perder o respeito dos dez mil leitores que leem automaticamente todo livro que ele escreve. A sensação é de que, em Escândalo, Endo pode ter levado seus leitores para muito longe de sua zona de conforto. A obra resultante, contudo, ainda é um triunfo: audaciosa, primorosamente equilibrada e singular. O único escândalo é que esse romance corajoso não seja mais amplamente conhecido.
Damian Flanagan
Tradutor
Nota: Todas as citações de Shusaku Endo foram tiradas do quarto volume de suas Obras completas, publicadas pela Shinchosha. Todas as traduções do japonês nesta introdução são de Damian Flanagan.
1
A velha cadeira giratória parecia enferrujada: depois que o médico olhou os resultados do exame e se voltou para o paciente, ela rangeu. Durante as consultas no hospital, os ouvidos de Suguro tinham se acostumado com aquele barulho. Assim que a cadeira estrilava, o médico sempre começava o discurso motivacional, com muita ponderação, sem pressa nenhuma, e naquele dia não seria diferente.
— Seu nível de TGO está em quarenta e três, e o de TGP, em cinquenta e oito. É um pouquinho acima do normal, então o senhor deve pegar leve. Daquela vez que exagerou, passou de quatrocentos, não passou?
— Passou.
— Se o senhor tiver cirrose, corre o risco de desenvolver câncer. Então, de novo, digo para não exagerar.
Suguro sentiu uma lufada de alívio boa, morna, gostosa. Desde o exame anterior, o trabalho vinha sendo mesmo estressante, e ele andara preocupado com os novos resultados clínicos. Então, quando agradeceu ao médico, pensou: Agora posso ir à premiação sossegado.
Por alguma razão, Suguro sempre sentia serenidade ao ver o Palácio Imperial, imponente e silencioso, na chuva. De todas as paisagens de Tóquio, gostava daquela em especial. Ao se dirigir para o salão de recepção, o carro que haviam providenciado para levá-lo deu a volta no fosso do palácio.
Naquela noite, Suguro receberia um prêmio literário pelo romance em que trabalhara durante três anos. Ganhara muitos prêmios como romancista. Agora que passara dos sessenta e cinco anos não conseguia evitar por completo a sensação de que a honraria daquela noite chegava meio tarde. Ainda assim, a aclamação que recebia por esse romance mais recente lhe massageava o ego. E era mais que orgulho. A harmonia que enfim alcançara com aquela obra, fosse na vida, fosse na escrita, era muitíssimo gratificante. Suguro se inclinou no descanso de braço do carro e ficou olhando as gotas de chuva escorrerem pela janela.
O motorista parou, e um funcionário veio abrir a porta. O uniforme do homem cheirava a molhado. E, para além da porta automática na entrada, Kurimoto -jovem representante da editora que patrocinava o evento – aguardava para dar as boas-vindas a Suguro.
— Parabéns! — disse Kurimoto. — É uma ocasião muito especial para mim também. — Editor-assistente, ele supervisionara a edição do romance. Também ajudara ao levantar fontes de pesquisa e organizar de modo escrupuloso as viagens de Suguro para coletar material para o livro.
— Devo tudo a você. — Não precisa exagerar.
Mas esse prêmio significa muito mesmo, já que é o romance que realmente fecha o ciclo de tudo o que o senhor escreveu até agora. Vamos para o saguão? Os integrantes da comissão julgadora já chegaram.
A cerimônia teve início no exato horário impresso nos convites. As cadeiras para os jurados e o vencedor do prêmio ficavam num palco, dispostas de ambos os lados de um microfone, em frente ao qual era preciso ficar em pé para falar. Diante delas, uns cem convidados já estavam sentados. Depois de um preâmbulo do diretor-geral da editora, veio o discurso de Kanõ, um dos jurados.
Suguro e Kanõ eram amigos havia muito mais de trinta anos. Tinham feito sua estreia literária quase ao mesmo tempo. Quando jovens escritores, a relação se caracterizara pelo receio que tinham com os esforços criativos um do outro. Suguro e Kanõ às vezes se repeliam, às vezes ecoavam em harmonia. Por volta dos quarenta anos, tinham já noção de quão diferentes eram como escritores e seguiram caminhos distintos.
Kanõ, recitando suas impressões sobre o romance de Suguro enquanto olhava para a plateia, tinha o ombro levantado. Quando jovens, tanto Kanõ quanto Suguro tiveram tuberculose, e ambos se submeteram à cirurgia reparadora. Sempre que o cansaço se apossava de um dos dois, o ombro que aguentara o pior da cirurgia se projetava para cima. A idade avançada de Kanõ se cristalizara na curva do ombro. Assim como Suguro (que agora tinha também problemas hepáticos), ele sofria do coração já fazia muitos anos e estava sempre com um frasquinho de nitroglicerina no bolso.
— Suguro foi criado como cristão no Japão. Por um lado, isso foi uma bênção para ele. Por outro, acho que foi uma maldição. Kanõ, célebre pela fala fácil e fluente, começou o discurso com frases que se destinavam a atrair o interesse e a curiosidade dos ouvintes para os temas centrais das obras de Suguro.
— A maldição de Suguro está no fato de que ele precisa descrever seu Deus, que para nós, japoneses, é um ser escorregadio, muito difícil de abarcar, como se fosse possível compreendê-Lo num contexto japonês. Foi por isso que, nos primeiros tempos, ninguém estava na frequência de Suguro. Desde o início, Suguro se angustiava com a maneira de narrar o que ele queria dizer – a história do Deus dele – aos muitos japoneses que não tinham repertório para ouvi-la. Conheci Suguro há bem mais de trinta anos, quando a guerra ainda não tinha acabado… Naquela época, ele estava sempre com cara de desalento.
Três décadas antes… Na lembrança, Suguro visualizava agora o andar superior de um bar em Tóquio, o Fukusuke, perto da estação Meguro. O pequeno salão cheirava ao mofo dos tatames gastos. Numa noite de verão, a cortina de bambu, bastante desbotada pelo sol, pendia torta na janela. Na rua, alguém tocava clarim. Cinco ou seis homens na casa dos trinta anos se encostavam às paredes do salão, abraçados aos joelhos enquanto descascavam Suguro sem dó. Numa das paredes, o calendário mostrava uma moça que, orgulhosa de si, ostentava maiô e óculos escuros. Esses óculos eram um modismo que as jovens da época copiavam das mulheres que davam o corpo às forças estrangeiras de Ocupação. No grupo que criticava Suguro estava Kanõ, homem magrinho, com maçãs do rosto salientes.
fim da amostra…