Por que a distribuição de riqueza é a saída para o Brasil retomar o crescimento? Em Desigualdade, o ex-banqueiro Eduardo Moreira – que vem sendo citado por ícones das esquerdas brasileiras como Luiza Erundina, Fernando Haddad, Guilherme Boulos e Ciro Gomes –, defende que a principal causa da crise no país é a alta concentração de riqueza nas mãos de poucos. O autor apresenta conceitos de economia de maneira didática, demonstrando como funciona a dinâmica capitalista em que estamos inseridos. Aqui, leitores e leitoras podem acessar informações sobre fatos da economia que têm efeito direto na vida cotidiana e são constantemente alvo de manipulação discursiva pelos donos do poder...
Editora: Civilização Brasileira; 8ª edição (1 julho 2019) Páginas: 144 páginas ISBN-10: 8520013937 ISBN-13: 978-8520013939 ASIN: B07SKY7BYV
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Prefácio
Jessé Souza*
Conheci Eduardo Moreira por meio de um desses vídeos da internet com milhões de visualizações. Nesse vídeo Eduardo dizia, entre outras coisas, que, apenas em taxas bancárias arbitrárias, os bancos cobravam mais de seus clientes que tudo o que o país investia em educação e saúde. Nunca havia visto um investidor, no Brasil, ser sincero e verdadeiro com seu público. Esse fato atraiu minha curiosidade.
Descobri em seguida que o Eduardo havia sido um grande investidor de um grande banco brasileiro. Ora, em um país onde os bancos assaltam a população por meio de mecanismos de mercado, como juros escorchantes sem nenhum motivo racional, e de mecanismos de Estado, como uma “dívida pública” enganosa e ilegal, eu jamais havia visto um ex-banqueiro denunciar o esquema da grande fraude financeira.
Convidei então Eduardo para participar em um programa que eu apresentava na TV 247. Comprei e li seu livro O que os donos do poder não querem que você saiba, para me preparar para a entrevista. O programa foi interrompido antes que nos conhecêssemos pessoalmente, mas nos encontramos assim mesmo e conversamos sobre o livro e sobre a decisão de Eduardo elucidar o público, e não enganá-lo como seus colegas de mercado faziam e ainda fazem. Foi como ter encontrado um irmão de uma luta em comum.
Para mim existem poucas coisas mais importantes e relevantes a se fazer do que explicitar aos brasileiros os efeitos de uma dominação econômica singularmente cruel, que nunca se mostra como exploração. Nesse sentido, a cruzada que Eduardo se propôs a fazer se combina e se complementa com a minha própria, em meus livros e minhas pesquisas. Trata-se de revelar aos brasileiros, enganados já há tanto tempo pela lorota da corrupção política como a causa única dos grandes problemas nacionais, que o assalto organizado pelo mercado financeiro é o que produz desemprego e miséria entre nós.
Todos os proprietários, sejam do agronegócio, da indústria ou do comércio, apropriam-se agora, de modo crescente, do produto do trabalho coletivo de toda a sociedade por meio de juros abusivos embutidos em tudo que compramos. A forma “juro”, tendencialmente mais opaca e invisível que a forma “lucro”, irmana todos os grandes proprietários, a “elite econômica”, no assalto comum a todas as outras classes sociais.
A “dívida pública” não é “dívida” – posto que é sem contraprestação à sociedade, e a parte do leão é juro sobre juro – nem muito menos é “pública” – uma vez que é cheia de falcatruas privadas. Por conta disso nunca é auditada para que se saiba a quem se deve e quanto se deve – o que faz a outra parte do engodo. Seja, portanto, apropriando-se do poder de compra da população, seja se apropriando do orçamento público, pago pelos mais pobres, o capitalismo financeiro é mais insidioso e pernicioso entre nós que em qualquer outro lugar.
Eduardo, em seu livro anterior, como também neste que prefacio, dedica-se com talento invulgar a informar os seus leitores acerca daquilo que todo o esquema de poder dominante milita para esconder. Por conta disso, seu perfil combativo e destemido é tão necessário. Neste livro, a tarefa se completa com uma discussão ao mesmo tempo lúcida e acessível sobre a desigualdade, ideia hoje tão combatida pelos verdadeiros donos do poder, que estão no comando do mercado e capturam o Estado para seus fins. Questões complexas como o funcionamento do sistema bancário, a diferença entre riqueza e dinheiro, a função dos impostos são analisadas por Eduardo com clareza e inteligência, de modo a esclarecer sua tese central neste livro: explicar por que não existe maior doença social no mundo que a desigualdade.
Desejo ao Eduardo uma vida longa e produtiva, e estou certo de um futuro ainda mais brilhante que seu presente. Sua tarefa é necessária e urgente. Os seus leitores, por sua vez, têm em mãos um texto de fácil leitura e compreensão, que vai de encontro às falsas verdades estabelecidas pelos que têm interesse na preservação da mentira social, aquela que rouba a inteligência e a defesa possível dos enganados e oprimidos, ou seja, em medida variável, de todos nós.
* Sociólogo, professor titular na Universidade Federal do ABC, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autor de A elite do atraso.
Você morre trancado dentro de um cofre
Cresci sendo um curioso e muitas vezes um chato. No colégio, não foram poucas as vezes, durante as aulas, em que ouvi de meus professores e de meus amigos que precisava ficar quieto e parar de fazer perguntas. Eu realmente passava, e muito, do ponto.
Descobrir exatamente como tudo funcionava virou a partir de determinado momento de minha vida uma verdadeira obsessão. Não sossegava enquanto aquilo que inicialmente parecia um grande mistério não se tornava incrivelmente simples. Quando eu desvendava o segredo, fazia questão de explicar para alguém tudo o que tinha descoberto, de maneira a provar a mim mesmo que eu realmente havia entendido. Era um jogo em que eu precisava sempre ganhar.
Passei pela primeira vez para o curso de engenharia civil na PUC-Rio, uma das mais difíceis em termos de relação candidato por vaga no estado, quando eu tinha 15 anos e estava ainda cursando o segundo ano do ensino médio. A ideia era só conhecer o processo de avaliação de um vestibular para, no ano seguinte, estar mais confortável com a prova.
Resolvi (na verdade, meus pais decidiram, afinal com 15 anos eu não decidia absolutamente nada) continuar no colégio até o ano seguinte e terminar o ensino médio antes de entrar na faculdade. Eu já estava um ano avançado, era o “pirralho” da turma no colégio, motivo de ter sofrido muito bullying. Adiantar mais um ano para ser o bebê da faculdade iria certamente tornar minha vida um caos. Ponto para meus pais, que souberam tomar a decisão correta!
No ano seguinte, refiz o vestibular e novamente me classifiquei, dessa vez entre os primeiros colocados. Assim, eu estava começando o curso que meus pais sempre sonharam para mim. E, eu tinha certeza, era meu sonho também… aos 16 anos de idade…
O curso de engenharia, para quem gosta de descobrir o porquê das coisas, é realmente incrível. As aulas são quase como uma revelação sobre todos os segredos por trás daquilo que usamos na vida. Os laboratórios, um verdadeiro parque de diversões para curiosos como eu.
Tudo ia muito bem, divertido e empolgante durante os primeiros anos. Minhas notas eram ótimas, eu havia começado a estagiar na pequena construtora de meu pai e havia me tornado professor particular de física e matemática nas horas vagas, ganhando um belo dinheiro. A remuneração das aulas era tão boa que falei a meu pai que eu havia decidido pagar minha própria faculdade para dar minha contribuição em casa.
Eis que um dia resolvi me inscrever em um programa de intercâmbio entre a PUC e a Universidade da Califórnia, disponível somente para oito alunos ranqueados entre os melhores de todos os cursos da faculdade, que permitiria que estudássemos durante um ano gratuitamente, pagando, na Universidade da Califórnia, apenas a mensalidade normal que já pagávamos na PUC.
Seria a minha chance de estudar engenharia civil num dos maiores centros tecnológicos do mundo, utilizando os melhores laboratórios e aprendendo com professores superpremiados e famosos! Os mesmos que escreviam os mais importantes livros de engenharia que eu conhecia. Se estudar engenharia na PUC era um sonho, isso era o topo do mundo! Para minha alegria e de meus pais, fui aprovado para o programa.
Até que a vida me pregou uma peça. O material enviado pela PUC para a Universidade da Califórnia não chegou ao destino após ser extraviado no correio. No envelope que se perdeu, estavam todos os documentos que comprovavam as matérias que eu havia feito no curso de engenharia e que eram necessários para que eu pudesse cursar somente as matérias avançadas na Califórnia.
Sem essa comprovação, me restava cursar novamente as matérias básicas do curso de engenharia ou escolher matérias de outros cursos para, depois, aproveitá-las como carga exigida pela PUC nas disciplinas chamadas “eletivas”. Decidi pela segunda opção e escolhi matérias de economia.
Foi uma escolha acertada. A economia e eu vivemos um amor à primeira vista. Dediquei-me intensamente às aulas a que assistia e, nos horários livres, busquei sempre mais conteúdo para estudar. Curiosamente, talvez por ter viajado com a mentalidade de um engenheiro, minha abordagem era bem distinta da dos outros alunos do curso de economia. Eu queria entender o que era ensinado sob uma perspectiva lógica, matemática e racional, como se estivesse montando um daqueles quebra-cabeças que costumava ganhar de presente quando era pequeno.
E assim segui meu caminho durante todo o período do intercâmbio, com muita dedicação e entusiasmo pelo curso de economia. No final, as notas refletiram meu esforço (10 em todas as matérias, com exceção de uma em que tirei 9,75), e fechei meu período de estudos recebendo o certificado de provost honor em todos os trimestres. Recebi também várias cartas de recomendação, e tive meu minor certificate em economia aprovado pela Universidade da Califórnia em San Diego.
Voltei ao Brasil e ingressei no mercado financeiro, num dos maiores bancos de investimento do país. Já contei um pouco dessa história em outro livro, O que os donos do poder não querem que você saiba, e talvez um dia a conte com mais detalhes em outra obra – não faz sentido repeti-la aqui.
O importante é saber que passei vinte anos trabalhando no mercado financeiro, período em que tive contato com algumas das mentes consideradas mais brilhantes desse setor. Foi lá onde pude vivenciar algumas das maiores crises econômicas do último século – de dentro de uma mesa de operações – e onde pude criar várias linhas de negócios para as empresas nas quais trabalhava. Tudo isso para dizer que foi um período de muito aprendizado.
O aprendizado foi tamanho, que em dado momento percebi que poderia utilizar tudo aquilo que havia aprendido para ensinar aos outros. Isso porque parte do aprendizado foi perceber que a maioria das pessoas navegava cegamente no mundo dos investimentos e das finanças. O resultado disso era que, na maioria das vezes, as pessoas perdiam muitas oportunidades e dinheiro simplesmente pela falta de conhecimento sobre um assunto que eu tinha passado a dominar. Assim, comecei a dar cursos e palestras sobre o tema, visando sempre a instruir as pessoas e a libertá-las das armadilhas do sistema financeiro, dando a elas conhecimento a respeito das armadilhas em que caíam.
Em determinado momento, o que eu fazia começou a incomodar as pessoas do meu mercado. Equilibrar o jogo em termos de conhecimento entre clientes e empresas não era nem de longe um dos objetivos dos lugares onde trabalhei. Pelo contrário, todos sabiam que a falta de conhecimento dos clientes tinha um valor enorme para os negócios.
O desalinhamento chegou a tal ponto que não restou alternativa a não ser um convite para sair do sistema. E assim fiz, decidido a dedicar minha vida aos cursos e palestras sobre investimentos. Só que agora podia ser ainda mais enfático e claro em minha mensagem, para revelar absolutamente tudo o que tinha adquirido em termos de conhecimento de maneira a abrir os olhos e a mente das pessoas.
A mensagem chegou às pessoas como um choque; minhas entrevistas e artigos passaram a ganhar um grande espaço na mídia. Dezenas de milhões de pessoas compartilhavam e comentavam entusiasmadas o que ouviam, pois enfim começavam a conhecer o sistema que sempre lhes fora escondido. E elas acreditavam no que ouviam, pois as palavras vinham de alguém que tinha passado duas décadas dentro do sistema.
O espaço na mídia acabou resultando em um convite, em 2018, para me juntar à própria mídia e ser comentarista econômico num dos programas de maior audiência do país. Isso tudo no meio de um processo eleitoral incrivelmente polarizado – as pessoas e os mercados estavam com nervos à flor da pele, e a incerteza era a única coisa certa que se tinha.
Os questionamentos quanto aos rumos da economia, do país, da política e dos investimentos não paravam de crescer. Eu tinha a responsabilidade de responder a eles, com uma exposição midiática que nunca antes havia experimentado.
Eu precisava me preparar para isso. Então, resolvi voltar aos estudos. Na verdade, nunca os deixei, sempre fui daqueles que lê simultaneamente dois ou três livros. Mas eram leituras descompromissadas, normalmente feitas antes de dormir.
Agora não, eu precisava estudar como nunca havia estudado na vida. Passaria três horas por dia, ao vivo, em rede nacional, comentando assuntos de toda natureza e que variavam diariamente. Era como se eu tivesse de fazer sete provas de vestibular por semana. Comecei a estudar cinco, seis horas diárias. Percebi que não era o suficiente. Aumentei para oito, nove. Até que, quando vi, estava estudando mais de dez horas por dia.
Para me orientar, recorri a amigos, minhas referências em termos de conhecimento sobre os principais temas econômicos e políticos do país. Recebia textos enormes para ler. Visitava os principais sites do Brasil e do mundo para ler dezenas e dezenas de relatórios. Então, fiz uma descoberta reveladora em minha vida: descobri que não sabia absolutamente nada. Pelo menos no que dizia respeito a economia e finanças.
Era assustador. Eu me senti uma fraude! Eu me dei conta de que havia passado uma vida inteira simplesmente decorando trechos de livros ou textos que havia estudado, frases de chefes ou de economistas com quem tinha estado e raciocínios de antigos professores, simplesmente para repeti-los quando eu fosse questionado. E eu tinha tanta informação que provavelmente isso resolveria meu problema e me daria a reputação de “sabichão” para o resto da vida.
De repente, percebi que isso não era saber. Era guardar e repetir informação. E, sejamos honestos: para repetir algo falado por outra pessoa não precisamos de mais ninguém atualmente, temos o Google!
Resolvi ir à base do sistema, como alguém que estuda programação e resolve sair das linguagens superficiais, como JAVA, C, SWIFT, para estudar a linguagem da máquina. Na verdade, decidi ir mais fundo do que isso: estudar as interações eletromagnéticas dos chips e processadores para compreender o que resulta em tudo aquilo que vemos na tela do computador. Eu precisava conhecer e interpretar os números e as informações que estavam na base de todo o processo econômico.
Foi o que fiz, e no começo foi desesperador. Eu não entendia absolutamente nada. Passava horas e horas tentando encontrar pelo menos duas peças do meu quebra-cabeça que se juntassem, sem sucesso. Até que as primeiras peças começaram a se encaixar. A seguir, outras começaram também a fazer sentido.