Livro ‘Mil Sóis: Poemas Escolhidos’ por Primo Levi

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Primo Levi nasceu em Turim, em 1919, e ali morreu em 1987. Sua experiência em Auschwitz foi retratada em É isto um homem?, primeira grande obra sobre o tema. Com uma poesia bissexta, escrita em períodos fervorosos de criatividade, a lírica de Primo Levi atravessou diversas fases. Em todas, temas como a sobrevivência em meio às catástrofes e a desumanização se unem a um registro delicado que parece buscar a claridade, a comunhão e o amor por todos os seres vivos. Nesta antologia, preparada por Maurício Santana Dias, o leitor brasileiro conhecerá a poesia de um escritor que transformou o compromisso moral em alta literatura, e a força da memória, num verdadeiro ofício.  
Editora: Todavia; 1ª edição (5 julho 2019)  Idioma: ‎Português  Capa comum: ‎160 páginas  ISBN-13: ‎978-6580309191 Dimensões: ‎14 x 1.4 x 21 cm

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Poemas escolhidos

seleção, tradução e apresentação Maurício Santana Dias

A poesia de um sobrevivente

Maurício Santana Dias

A poesia de um sobrevivente

Maurício Santana Dias

Nós, todos os seres humanos, somos
animais que preferem as coisas simples.
Mas as coisas não são simples.
São sempre complexas.
Primo Levi, entrevista a Giorgio
Segrè

I

Para a grande maioria dos leitores — inclusive dentro da própria Itália — Primo Levi (1919-1987) é, sobretudo, o prosador cristalino e rigoroso que emergiu do pós-guerra em uma série de livros que ajudaram a fixar um novo gênero: o testemunho literário do horror. No seu caso particular, os onze meses em que o jovem químico e partisan turinês permaneceu no campo de concentração de Auschwitz forneceram o material (histórico, pessoal e inquiridor) para textos como É isto um homem? (1947) e Atrégua (1963). Esses dois livros, escritos num estilo descarnado, antissentimental e mesmo assim profundamente tocantes graças à inteligência compassiva do autor, que não se furta a buscar o elemento humano mesmo em meio à mais profunda e aterrorizante reificação produzida em massa pelos nazistas, estabeleceram o seu nome mundo afora. Mais do que isso, fizeram da literatura de Levi (que ganharia volume e relevância ao longo das décadas com a publicação de romances, contos e ensaios) um dos raros monumentos literários do século xx que conseguiram aliar refinamento estético a uma intensa preocupação pelo sofrimento dos indivíduos mergulhados nos pesadelos da História.

O primeiro texto publicado de Primo Levi, contudo, foi um poema. “Buna Lager” apareceu em junho de 1946 em L’ Amico del Popolo [O Amigo do Povo] semanário comunista editado pelo seu amigo Silvio Ortona. Esse periódico teria papel fundamental no início da carreira de Levi: foi nele que, nove meses depois da publicação do primeiro poema, o autor iria trazer a lume cinco partes do texto que originalmente formaria É isto um homem? . Nesses primeiros anos imediatamente após a experiência em Auschwitz e às vésperas de estrear na prosa, Primo Levi escreveu uma dezena de poemas. Uma produção errática e sem método, como confessaria mais tarde. E realmente são bastante distintos, no tom altissonante e na voz às vezes estridente, da prosa do autor, que frequentemente se recusa a maiores derramamentos.

Nos anos seguintes, entre o final da década de 1970 e a metade da década posterior, diversos poemas apareceriam no jornal La Stampa [A Imprensa ], importante diário publicado em Turim desde 1867. Reunidos já como um corpo significativo de textos líricos, os poemas ganhariam uma edição bastante fornida e bem cuidada em 1984 sob o título Ad ora incerta (Em hora incerta). [1] Ali, seriam 63 poemas e dez traduções (que vão de baladas escocesas anônimas a textos de Heine e Kipling). No ano seguinte, Ad ora incerta receberia os prêmios Abetone e Giosuè Carducci.

II

É preciso distinguir entre a poesia e a prosa. Sou um poeta bissexto: no fim das contas, escrevi pouco mais de um poema por ano em minha vida, embora haja períodos em que me venha espontaneamente escrever em versos. Mas se trata de uma atividade que não tem nada a ver com nenhuma outra atividade mental que eu conheça. É algo completamente diferente: é como um cogumelo que cresce numa noite, acorda-se de manhã com uma poesia na mente, ou pelo menos com seu núcleo. Depois é um trabalho de longas variantes e correções contínuas: e o computador é um instrumento perfeito para isso, para a tristeza de futuros filólogos que não acharão os manuscritos com as sucessivas aproximações. [2]

Poesia assumidamente bissexta, escrita em repelões de criatividade em meio à produção consistente da obra em prosa, muito mais difundida mundo afora, a lírica de Primo Levi atravessou diversas fases desde a publicação do primeiro poema. Fases que não se anulam nem se sobrepõem umas às outras, que não possuem um caráter excludente ou evolutivo entre si, mas que talvez sejam mais bem explicadas pela imagem de uma espécie de lírica modular. Os principais temas e motivos de sua poesia parecem peças intercambiáveis que, ao longo da vida, o autor teve a consciência de mudar de posição, de rearranjá-las, de experimentar — à medida que eventos privados e históricos pareciam romper os períodos de inação poética.

Assim, os poemas dos anos 1940, cuja datação — ao longo de diversos meses de 1946 — parece explicitar um processo de restauração humana no antigo prisioneiro do Lager, têm algo de um hinário sombrio em torno de temas como a deportação, a desumanização e a necessidade imperiosa de jamais esquecer os horrores vistos e experimentados. São poemas que articulam aquilo que é, a rigor, indizível. Em textos como “25 de fevereiro de 1944”, “O canto do corvo (i)”, “ Shemá ” e “Segunda-feira”, apenas para citar alguns dos mais impressionantes do conjunto (constantes neste volume), a voz lírica oscila entre o desespero, a notação da realidade dura e algumas tentativas, ainda bastante incipientes, de buscar uma luz em meio às trevas. Muito tempo mais tarde, em poemas como “Osobrevivente” e “Dai-nos”, ambos de 1984, a mesma energia ambivalente, entre destruição e restauração, parece dar movimento aos textos. Não são, contudo, peças eivadas de desespero, como se poderia supor. A despeito da negatividade de seus temas e motivos, há algo nesses poemas — talvez devido ao próprio esforço de trazê-los a lume — que parece correr no sentido contrário de uma escrita meramente desencantada. Há neles uma busca pela claridade, um trabalho contínuo contra as sombras.

Algo que o próprio Levi assinalaria, ao comentar sua leitura de um dos maiores líricos de sua própria cultura literária: “Leopardi nunca foi autor de minha predileção, creio que por razões profundas, porque não vejo o mundo com o desespero de Leopardi”. [3] De fato, em Levi a experiência da destruição do humano se dá a ver com toda a sua claridade. Tão intensa que somos tentados a desviar o olhar para não queimar a vista. Odesespero está ali, mas acaba eclipsado pelo esforço de tornar as coisas minimamente inteligíveis. Mais forte é o desejo de se aproximar o mais possível das cinzas, de conhecê-las e decifrá-las. Como Plínio, como o Ulisses de Dante evocado em É isto um homem?. A antinomia do conhecimento que, ao mesmo tempo que liberta, destrói.

Ao longo de toda a sua obra, o que parecia inominável se nomeia: com palavras que parecem cortadas na pedra e, por isso, têm uma força de duração e presença incomuns. Vindo de uma experiência infernal que emudeceu ou desarticulou para sempre não poucos sobreviventes, talvez o maior traço de Levi tenha sido justamente o de tornar dizível o que a muitas almas puras pareceria inefável, dar concretude e visibilidade ao “mundo às avessas” — como se referia a Auschwitz —, traduzir o horror absoluto em palavras claras, cristalinas, e às vezes até jocosas. (Aliás, o humor negro e autodepreciativo é um dos grandes patrimônios da cultura judaica; basta lembrar o dito chistoso que circulava no Lager, referido por Levi: “Daqui só se sai pela chaminé”.)

O percurso literário de Levi não é linear nem pode ser representado por uma linha ascendente ou descendente: ele é sobretudo circular, cíclico, feito de retomadas, abandonos e retornos, marcado por uma coexistência contínua de temas e motivos, ritmado por oposições e inquietudes[…]. Levi trabalha sobre uma série de variações, repetidas e aprofundadas com um cuidado matemático e combinatório dos mais rigorosos. Não só ele não esquece, mas quer que o leitor realize com ele reiteradamente o mesmo trajeto, as operações de uma mesma verificação, porque somente repetindo as provas é possível concluir que o experimento foi bem-sucedido, e até mesmo sugerir novas hipóteses. A guerra é eterna não só nas sociedades humanas, mas também nos domínios da criatividade, do pensamento, da literatura. [4]

Nos anos 1980, quando Ad ora incerta foi publicado, Levi deu uma entrevista a Giulio Nascimbeni em que afirmava: “Tenho a impressão de que a poesia em geral está se tornando um instrumento portentoso de contato humano”, o que é simultaneamente a reiteração de seu pendor a uma literatura comunicativa e um elogio da forma breve. [5]

III

Ao selecionar os poemas deste volume e lhe dar o título de Mil sóis , imagem recorrente em muitos versos, procurei manter a ordem cronológica e “diarística” que Levi sempre lhes atribuiu e ressaltar aquilo que se poderia qualificar como sua força de evidência. A capacidade de distinguir com serenidade meridiana o mais específico mesmo ali onde tudo parece estar confundido na grande “zona cinzenta”, magistralmente explorada em seu último livro, Os afogados e os sobreviventes, confirma esse “instrumento portentoso de contato humano” que é a literatura e a poesia.

Na repetição e na diferença que constituem os poemas aqui reunidos, Primo Levi se encaminha cada vez mais para um entendimento da experiência humana aberta, antropologicamente nova e inquietante, tal como foi se configurando nos contos de ficção pseudocientífica que escreveu e reuniu em Histórias naturais , Vício de for ma e Lilith. [6] Daí a presença insistente de vários animais em sua obra mais tardia, um bestiário não muito distante das invenções de Kafka em suas narrativas breves, como “Josefina, a cantora” e “Discurso à academia”.

Em outra entrevista, [7] Levi tenta explicar a Giovanni Tesio sua peculiar atenção aos animais: “É fruto de uma curiosidade insatisfeita […]. Nos animais há o enorme e o minúsculo, a sabedoria e a loucura, a generosidade e a vileza. Cada um deles é uma metáfora, uma hipóstase de todos os vícios e de todas as virtudes dos homens”.

Seguindo essa pista, é possível ler a frequente metáfora a que Levi recorria para expressar sua dupla natureza de químico e de escritor, a do “centauro”, em uma chave mais vasta e de consequências imprevistas: a da presença inextirpável do animal em todo humano, ao Quíron maquiaveliano de O príncipe, pensado pelo filósofo Roberto Esposito no âmbito de uma biopolítica avant la lettre:

O animal não é nem o grau mais baixo ao qual o ser humano regride quando se afasta de sua condição divina, como na antropologia humanística, nem seu estado provisório e primitivo, destinado a ser definitivamente superado pela ordem política, como na antropologia moderna. Ele é o fundo de energia natural presente em cada homem — aquilo de que ele retira a capacidade de defender-se e o ímpeto de prevalecer sobre os outros, o engenho sutil e o vigor primigênio. Entre humanidade e animalidade não se estende o abismo que, em Hobbes, separa os lobos do estado de natureza dos súditos do estado civil: o lobo faz parte do homem, assim como a natureza da civilização. [8]

Ao que o próprio Levi poderia corroborar com a seguinte fala:

A violência de Auschwitz era de Estado, era planificada. Mas creio que refletir sobre a violência de então seja salutar a todos, em especial aos jovens. Penso que é realmente necessário refletir que, quando faltam a tolerância e a razão, porque tolerância e razão coincidem, se chega aAuschwitz. [9]

Sem desviar os olhos dessa natureza ambígua, reafirmada de modo impressionante na história de hoje, o autor de É isto um homem? ata nestes poemas as duas pontas de sua trajetória e lhe dá uma forma que, espero, permaneça gravada na memória de seus leitores. [10]

Em hora incerta
janeiro de 1946-junho de 1984

25 febbraio 1944


Vorrei credere qualcosa oltre,
Oltre che morte ti ha disfatta.
Vorrei poter dire la forza
Con cui desiderammo allora,
Noi già sommersi,
Di potere ancora una volta insieme
Camminare liberi sotto il sole.

9 gennaio 1946

25 de fevereiro de 1944


Queria acreditar em algo além,
Além da morte que a desfez.
Queria poder dizer a força
Com que outrora desejamos,
Nós, já submersos,
Poder mais uma vez juntos
Caminhar livremente sob o sol.

9 de janeiro de 1946

Il canto del corvo (I)


“Sono venuto di molto lontano
Per portare mala novella.
Ho superato la montagna,
Ho forato la nuvola bassa,
Mi sono specchiato il ventre nello stagno.
Ho volato senza riposo,
Per cento miglia senza riposo,
Per trovare la tua finestra,
Per trovare il tuo orecchio,
Per portarti la nuova trista
Che ti tolga la gioia del sonno,
Che ti corrompa il pane e il vino,
Che ti sieda ogni sera nel cuore.”
Così cantava turpe danzando,
Di là dal vetro, sopra la neve.
Come tacque, guardò maligno,
Segnò col becco il suolo in croce
E tese aperte le ali nere.

9 gennaio 1946

O canto do corvo (I)


“Eu cheguei de muito longe
Para trazer a má notícia.
Passei por cima da montanha,
Atravessei a nuvem baixa,
Espelhei no pântano meu ventre.
Voei sem descanso,
Por cem milhas sem descanso,
Para encontrar sua janela,
Para encontrar seu ouvido,
Para trazer-lhe a terrível nova
Que lhe tire a alegria do sono,
Que lhe corrompa o pão e o vinho,
Que se assente à noite em seu coração.”
Assim cantava torpe dançando,
Atrás da vidraça, sobre a neve.
Ao se calar, olhou maligno,
Riscou com o bico o solo em cruz
E estendeu as asas negras.

9 de janeiro de 1946

Shemà [1]



Voi che vivete sicuri
Nelle vostre tiepide case,
Voi che trovate tornando a sera
Il cibo caldo e visi amici:

Considerate se questo è un uomo,
Che lavora nel fango
Che non conosce pace
Che lotta per mezzo pane
Che muore per un sì o per un no.
Considerate se questa è una donna,
Senza capelli e senza nome
Senza più forza di ricordare
Vuoti gli occhi e freddo il grembo
Come una rana d’inverno.

Meditate che questo è stato:
Vi comando queste parole.
Scolpitele nel vostro cuore
Stando in casa andando per via,
Coricandovi alzandovi:
Ripetetele ai vostri figli.
O vi si sfaccia la casa,
La malattia vi impedisca,
I vostri nati torcano il viso da voi.

10 gennaio 1946

Alzarsi



Sognavamo nelle notti feroci
Sogni densi e violenti
Sognati con anima e corpo:
Tornare; mangiare; raccontare.
Finché suonava breve e sommesso
Il comando dell’alba:
“Wstawać”:[2]
E si spezzava in petto il cuore.

Ora abbiamo ritrovato la casa,
Il nostro ventre è sazio,
Abbiamo finito di raccontare.
È tempo. Presto udremo ancora
Il comando straniero:
“Wstawać”.

11 gennaio 1946

Levantar



Sonhávamos nas noites ferozes
Sonhos densos e violentos
Sonhados com corpo e alma:
Voltar; comer; contar.
Até que soava breve e abafado
O comando da aurora:
Wstawać ”;
E no peito o coração partia.

Agora reencontramos a casa,
Nosso ventre está saciado,
Terminamos de contar.
É tempo. Logo ouviremos de novo
O comando estrangeiro:
Wstawać ”.

11 de janeiro de 1946

Lunedì



Che cosa è più triste di un treno?
Che parte quando deve,
Che non ha che una voce,
Che non ha che una strada.
Niente è più triste di un treno.

O forse un cavallo da tiro.
È chiuso fra due stanghe,
Non può neppure guardarsi a lato.
La sua vita è camminare.

E un uomo? Non è triste un uomo?
Se vive a lungo in solitudine
Se crede che il tempo è concluso
Anche un uomo è una cosa triste.

17 gennaio 1946

Segunda-feira



O que é mais triste que um trem?
Que parte quando deve partir,
Que tem somente uma voz,
Que tem somente um caminho.
Nada é mais triste que um trem.

Ou talvez um burro de carga.
Está preso entre duas barras
E não pode olhar para o lado.
Sua vida é só caminhar.

E um homem?
Não é triste um homem?
Se vive há muito em solidão,
Se acha que o tempo terminou,
Um homem também é coisa triste.

17 de janeiro de 1946

Il tramonto di Fòssoli [3]



Io so cosa vuol dire non tornare.
A traverso il filo spinato
Ho visto il sole scendere e morire;
Ho sentito lacerarmi la carne
Le parole del vecchio poeta:
“Possono i soli cadere e tornare:
A noi, quando la breve luce è spenta,
Una notte infinita è da dormire”.

7 febbraio 1946


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