Livro ‘A Transparência do Tempo’ por Leonardo Padura

Livro 'A Transparência do Tempo' por Leonardo Padura
O passado remoto e o presente imediato se entrelaçam neste novo romance do escritor cubano Leonardo Padura. Em A transparência do tempo acompanhamos o já conhecido detetive Mario Conde em seu oitavo caso, o desaparecimento de uma estátua de uma virgem negra. Às vésperas de completar sessenta anos, cético em relação a seu país, Mario Conde assiste ao encolhimento da oferta de livros usados, cuja revenda vinha sendo seu ganha-pão dos últimos tempos. É então que um ex-colega de escola o procura e lhe oferece trabalho: recuperar a estátua de uma virgem negra que lhe fora roubada... 
isbn: 9788575596647
segmento específico: ROMANCE CUBANO
idioma: Português
encadernação: Brochura PDF
formato: 16 x 23 x 2
páginas: 374
ano de edição: 2018
ano copyright: 2018
edição: 1ª

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Leia trecho do livro

Sobre A transparência do tempo Ricardo Lísias

Leonardo Padura trabalha com grandiosidades. Elas vão de convulsões políticas gigantescas, como as consequências ideológicas do assassinato de Trótski em O homem que amava os cachorros, a intervalos consideráveis de tempo, como o arco que vai do século XVII até o ano de 2007, passando pela Segunda Guerra Mundial, em Hereges. Agora, neste A transparência do tempo, seu último romance, a grandiosidade não está apenas no trânsito entre a Guerra Civil Espanhola e o cotidiano lírico e ao mesmo tempo caótico da Cuba imediatamente anterior à morte de Fidel Castro, mas também no evidente apuro técnico com que ele conduz as ferramentas do trabalho literário.

Os diálogos aqui parecem ainda mais bem-acabados que nos livros anteriores. O lusco-fusco de Havana dá o tom da melancolia que toma conta do nosso velho conhecido detetive Mario Conde, um homem agora chegando aos sessenta anos. A perícia descritiva, outra habilidade que Padura vem cultivando, assume aqui um papel central: como as personagens são mais contemplativas, evidentemente seus olhos trabalham mais. Para uma história que lida com as artes plásticas e seus meandros, o recurso é fundamental. Bem-feito como está, ajuda o livro a se tornar esteticamente ainda mais valioso.

A força de A transparência do tempo, porém, não vem apenas da manipulação magistral da forma romanesca. Ela se dá ainda por meio da discussão que propõe: a violência com que as estruturas políticas acabam muitas vezes influindo na vida de cada um dos indivíduos que, para o bem ou para o mal, precisam lidar com elas. A sexualidade é composta no romance a partir do movimento que uma escultura desaparecida cria na vida de cada uma das personagens. Às vezes parece mais visível; em outras, se oculta no medo da rejeição.

Se no plano narrativo há um mistério que percorre desde a intimidade das personagens até o mundo nem sempre saudável das artes plásticas, no que diz respeito ao talento literário de Leonardo Padura não há nenhuma dúvida: este é o livro de um dos maiores escritores do nosso tempo.

Às vésperas de completar sessenta anos, o ex-policial cubano Mario Conde assiste ao encolhimento da oferta de livros usados cuja revenda vinha sendo seu ganha-pão. É então que um ex-colega de escola lhe oferece trabalho: recuperar a estátua de uma Virgem negra que lhe fora roubada. Com o desenrolar das buscas, Conde vai percebendo que a peça é muito mais valiosa do que imaginava. Em capítulos intercalados, o autor retraça as lendas que envolvem a escultura, tendo como pano de fundo a zona rural da Catalunha, desde a Idade Média até a Guerra Civil Espanhola. Ao buscar a imagem da santa negra pelas ruas de Havana, Conde vaga entre dois polos de um mesmo país: o submundo dos cortiços, do tráfico de drogas e da vida precarizada e o rico ambiente dos colecionadores e galeristas, muitas vezes envolvidos em contrabando e venda ilegal de obras de arte. Permeando esses dois mundos, o catolicismo e a santería, sincretizados, testemunham o passar infindável do tempo.

José María Brindisi, La Nación
“Padura é um comediante sombrio, um delicioso radiologista da ambivalência dos vínculos humanos. A transparência do tempo é um dos pontos mais altos de sua obra, um desses livros que recordam que o mundo às vezes é mais largo e profundo do que as vitrines costumam mostrar.”

Alvaro Costa e Silva, Folha de S.Paulo
“No crepuscular A transparência do tempo, estamos em 2014, ano em que Barack Obama e Raúl Castro anunciaram a retomada das relações entre Estados Unidos e Cuba (a qual Donald Trump não levou adiante). Fora as incertezas políticas, o maior estrago é a trilha sonora: em todo lugar ouve-se reggaeton no volume máximo, uma tortura para quem, no passado, se acostumara a boleros e salsas.”

Sobre o autor

Nascido em Havana em 1955, Leonardo Padura Fuentes é pós-graduado em literatura hispano-americana, romancista, ensaísta, jornalista e autor de roteiros para cinema. Ganhou reconhecimento internacional com a série de romances policiais Estações Havana, estrelada pelo investigador Mario Conde, já traduzida em mais de quinze países, vencedora de diversos prêmios internacionais e adaptada para o cinema e para a TV. No Brasil, a série foi publicada pela Boitempo, que também tem em seu catálogo outros títulos do autor: O homem que amava os cachorros, considerada sua obra máxima, e Hereges. Pelo conjunto de sua obra, Padura recebeu o Premio Nacional de Literatura de Cuba, em 2012, o Princesa de Asturias, da Espanha, em 2015, e o Premio Internacional de Novela Histórica Barcino, em 2018.

Para Lucía, já se sabe como e por quê.

Diz agora, a quem queira ouvi-lo, que está voltando de onde nunca esteve.
Carpentier, El camino de Santiago

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4 de setembro de 2014

A luz categórica do amanhecer tropical, filtrada pela janela, caía como o holofote da iluminação teatral projetado na parede da qual pendia a folhinha com seus doze quadrículos perfeitos, distribuídos em quatro fileiras de três retângulos cada uma. Os espaços do calendário tinham sido cromados originalmente com tons distintos entre o verde juvenil da primavera e um vetusto cinza invernal, jogo que só um desenhista muito imaginativo poderia associar a algo tão inexistente numa ilha do Caribe como as quatro estações do ano. Com o passar dos meses, algumas cagadas de moscas tinham contribuído para decorar o papel-cartão com reticências errantes; várias rasuras e as cores cada vez mais cansadas davam testemunho da utilização prática do impresso e da exposição à luz de esmeril que o destruía a cada dia. Traços de geometrias diversas e caprichosas, gravados ao redor, nas bordas, inclusive na superfície de certos números, remetiam a lembretes evocados em seu momento, depois talvez esquecidos, nunca cumpridos. Marcas da passagem do tempo e advertências para uma memória em fase esclerótica.

Os algarismos encarregados de especificar o ano corrente, na borda superior do calendário, tinham recebido uma atenção muito especial, com vários sinais enigmáticos, e o número encarregado de indicar o nono dia de outubro aparecia encerrado entre vários pontos de perplexidade, mais do que de exclamação, riscados com violência e com uma esferográfica de tinta preta, apenas um pouco mais tênue do que a utilizada pelos impressores para gravar as letras e os números no papel-cartão. E, junto das exclamações, a cifra mágica de ressonâncias numerológicas, de recorrência perfeita, na qual ele nunca tinha reparado antes: 9-9-9.

Desde que começara aquele ano lento, turvo, untuoso, Mario Conde tivera uma relação tormentosa com as datas atuais. Ao longo de sua vida, e apesar de ter sido sempre tão histórico, recordador e obsessivo, em geral prestara pouca atenção à conexão das pegadas e acelerações do tempo com o que essas marcas e velocidades implicavam, como sinais precisos, para sua própria vida e para a vida dos que o cercavam. Com frequência excessiva e lamentável, esquecia idades e aniversários, comemorações de bodas, datas de acontecimentos triviais ou extraordinários que para outras pessoas seriam (ou eram) memoráveis: como celebrações, luto ou como simples marca no cumprimento cíclico dos fluxos vitais. Mas a evidência alarmante de que entre os trezentos e sessenta e cinco dias delimitados pelos quadrículos daquele calendário barato encolhia-se à espreita o dia para ele ainda inconcebível, embora ameaçadoramente definitivo e real, em que completaria sessenta anos lhe tinha provocado uma comoção persistente que crescia com a proximidade da efeméride: 9-9-9. A evidência de uma quantidade incisiva, até mesmo de sonoridade obscena (sessenta, sessenta, algo se esvazia e explode, sse-sssenta), apresentara-se a ele como uma ratificação incontestável do que seu físico (joelhos, cintura e ombros enferrujados; fígado envolvido em gordura; pênis cada vez mais preguiçoso) e seu espírito (sonhos, projetos, desejos mitigados ou extraviados para sempre) iam sentindo havia algum tempo: a obscena chegada da velhice…

Já era realmente um velho? Para tentar sabê-lo, em pé diante da folhinha adornada por uma paisagem embaçada e crucificada por um par de pregos enfiados na parede de seu quarto, Conde respondia a essa indagação com novas perguntas: seu avô Rufino não era um velho quando, aos sessenta anos, o levava às rinhas da cidade e arredores e lhe ensinava as artes e manhas da briga de galos? Por acaso não chamavam Hemingway de Velho já uns anos antes do suicídio, aos sessenta e três? E Trótski não era O Velho quando aos sessenta e dois Ramón Mercader lhe abriu o crânio ao meio com uma stalinista e proletária picaretada? Para começar, Conde conhecia suas limitações e sabia-se muito distante de seu avô pragmático, de Hemingway, de Trótski ou de outros anciãos famosos graças a razões justas ou espúrias. Por isso sentia que, mesmo quando dava com o número doloroso, redondo e decadente, tinha razões de sobra para não pretender ser um Velho, com direito a maiúscula, mas estava apenas se transformando num velho de merda, categoria mais do que merecida em seu caso, na escala das senectudes possíveis e classificadas com zelo acadêmico pela seriíssima ciência geriátrica e pela sabedoria empírica da filosofia das ruas.

Em manhãs como aquela, sufocantes desde o amanhecer e inauguradas com a atenção presa ao calendário, esses cruzamentos perversos da aritmética, das estatísticas, da memória e da biologia costumavam enchê-lo de uma angústia crescente. O efeito intelectual da relação manifestava-se através de uma certeza lancinante. Porque, até no melhor dos casos (que, no dele, implicava apenas o fato de continuar vivo, se o fígado e os pulmões o acompanhassem), diante dele erguia-se a evidência numérica de já ter gastado as três quartas partes (talvez mais, ninguém sabe) do tempo máximo que passaria na Terra e a firme convicção de que o último período provável não seria o melhor em nada. Sabia perfeitamente que ser velho – até mesmo sem chegar a ser um velho de merda – é uma condição horripilante por tudo o que implica, mas, muito especialmente, por acarretar uma ameaça insubornável: a proximidade numérica e fisiológica da morte. Porque dois mais dois são quatro. Ou melhor: quatro menos três é um… só um, um quarto de vida, Mario Conde.

Dores físicas e frustrações existenciais à parte, a bandeira vermelha visível num horizonte que podia se aproximar ou se distanciar, mas nunca se desvanecer, o tinha atazanado com maior rigor aquela manhã. Instado por suas necessidades urinárias e de sobrevivência, enfrentou a decisão de abandonar a cama, afastar os desejos de mergulhar na leitura de um bom livro (ainda lhe restavam tantos para ler e cada vez menos tempo para vencê-los!) e até um apetite persistente de lançar-se na própria escrita. Por isso, depois de expulsar a abundante e fétida urina matinal, começou o processo cada vez mais árduo de encouraçar seu ânimo para dispor-se, mais uma vez, a dar o melhor de si para tentar impedir que a chegada inadiável da morte se antecipasse e se produzisse pelo simples caminho da inanição. Enfim: tinha de sair à porra da rua, concreta, em busca da vida que lhe restava, para retardar o mais possível a chamada fatal e esquecer suas punhetas mentais pseudofilosóficas ou literárias.

Enquanto tomava o café e olhava com ódio para o perverso maço de cigarros aos quais não pudera nem quisera renunciar, observou o sono tranquilo do seu cachorro, o antes tempestuoso Lixeira II, que os anos vividos também tinham tornado lento e até mais caseiro. Nos últimos tempos o animal, sempre namorador e rueiro, fazia sestas prolongadas e comia com menos fúria, evidenciando sua própria velhice, visível no encanecer do focinho, na opacidade do olhar carente e no escurecimento dos dentes… Que desastre, disse a si mesmo, e, ocupado em acariciar a cabeça e as orelhas do cão, tratou sem muito entusiasmo de começar a planejar sua jornada. O exercício foi tão fácil que sobrou tempo para continuar filosofando enquanto já aspirava as tragadas de sua primeira dose de nicotina do dia. Porque, como em qualquer outra manhã, sairia para bater perna pela cidade em busca de livros velhos à venda, depois comeria alguma coisa digerível pela rua ou algo muito mais substancioso se fosse dar na casa de Yoyi Pombo, seu sócio comercial. Mais tarde, com rum ou sóbrio, passaria pela casa do amigo Magro Carlos para encerrar a jornada pernoitando nos domínios de Tamara, que ele tinha presenteado com dois dias de ausência injustificada. O panorama não parecia muito novo, embora também não fosse lamentável: trabalho, amizade, amor, tudo um pouco desgastado, também envelhecido, mas ainda sólido e real. Fodido mesmo – reconheceu – era seu estado de espírito, cada vez mais marcado pela tristeza e pela melancolia, e não só pelo peso da idade física ou pela temida iminência de um aniversário de má sonoridade e piores consequências, mas pela certeza de sua exultante frustração vital. À beira dos sessenta anos, o que ele tinha? O que legaria? Nada de nada. E o que o esperava? O mesmo nada ao quadrado ou coisa pior. Essas eram as únicas respostas a seu alcance para cada uma das interrogações tão simples e pegajosas. E, para maior desassossego, também as únicas que podiam se oferecer a tantas pessoas, conhecidas ou desconhecidas, localizadas em sua idade e situadas em seu tempo e espaço.

Já vestido, depois de dar a Lixeira II algumas sobras de comida e outra rodada de carícias úteis para lhe tirar um par de carrapatos, quando se servia da terceira e última xícara da infusão despejada da cafeteira italiana, até com o ânimo um pouco melhor, sobressaltou-se com o toque do telefone. Havia algum tempo, as ligações na primeira ou na última hora do dia disparavam seus alarmes. Com tantos velhos como ele à sua volta, qualquer ligação podia chegar para anunciar algum final ou presságio de final.

– Alô? – perguntou, na expectativa, sempre temendo o pior.
– É da casa de Mario Conde? – disse uma voz lenta, indagativa, difícil de definir, imaginou que desconhecida.
– Ahã – afirmou, mais expectante, e ordenou: – Diga.
– Ora, vai dizer que não sabe quem está falando?

A tensão murchou. Era o tipo de interrogatório telefônico que sempre conseguia lhe alterar os nervos de tal jeito que às vezes o fazia beirar a violência assassina. E naquele dia, depois de ter desfrutado um amanhecer tão sartriano, espetou-o como um miúra.

– Caralho, como é que você quer…?
– Ai, cara, desculpe – pediu a voz, agora rápida e decidida, e acrescentou depressa: – É o Bobby, Bobby Roque, do pré-universitário… lembra?

Conde fechou os olhos, assentiu, sorriu, balançou a cabeça, ao mesmo tempo que percebia entre seus neurônios o nítido adejar de nostalgias remotas, quase extraviadas, perfumadas com o aroma nebuloso e ao mesmo tempo agradável do passado. Sim, claro, lembrava.

Roberto Roque Rosell… Ro-Ro-Ro… A confluência dos dois sobrenomes tinha sido arrematada com o nome, Roberto, para que, com todos aqueles erres e ós, categóricos, robustos, roucos, sua virilidade ficasse declarada, rutilante desde a denominação que o acompanharia por toda a vida, sob o precário preceito de que o nome também faz o homem. Talvez por isso – ou melhor: para isso – seus pais tivessem se negado a chamá-lo de Robertico, Robert, Robby, e desde sempre, ainda no berço, quando era um bebê roliço, apelidaram-no Robertón, confiando em que nas andanças pela vida, com sua aparência, que achavam imponente, ele honraria o apelido e justificaria todas as ilusões dos progenitores… Quinze anos depois do batizado, quando Conde o encontrou numa das salas do colégio pré-universitário de La Víbora – as mesmas onde conheceu Magro Carlos, Andrés, Coelho, Candito Vermelho e, claro, Tamara e até Rafael Morín –, aquele garoto delicado e famélico, duas ou três polegadas mais alto que o resto dos colegas (embora com menos quilos do que os necessários para arredondar sua figura magricela), em que se tinha transformado Roberto Roque Rosell não era conhecido como Robertón, para frustração dos pais, mas como Bobby. E não porque Bobby fosse um dos possíveis diminutivos anglômanos, tão em moda naqueles anos, nem pelo fato de ser a época de maior celebridade excêntrica de Bobby Fischer. Bobby devia ser Bobby porque o apelido tinha o sabor semântico que melhor se ajustava às características mais notáveis da personalidade de seu dono: aos quinze, dezesseis anos, o antes pretenso Robertón era meio bobo e um pouco lânguido demais – ou seja, meio bicha, para os ásperos códigos linguísticos e culturais de Conde e sua tribo.

Apesar de nunca terem sido o que se chama de amigos, a circunstância de frequentarem a mesma sala de aula por alguns anos criou certa proximidade de Conde, Carlos, o Coelho e Andrés com o evanescente Bobby, com quem na realidade não tinham muito em comum. O fato é que Bobby nem gostava de falar em beisebol, nos horários de aula dedicados ao estudo de matérias políticas se comportava como um cérbero ideológico repetidor de palavras de ordem e em questões de música era anormal a ponto de preferir uma tal de Maria Callas aos Beatles e até ao Creedence. No entanto, a capacidade do garoto para as matérias científicas transformou-o numa joia preciosa à qual recorriam seus congêneres durante as revisões apressadas daquelas disciplinas pétreas no dia anterior aos exames. Conde e seus amigos o admitiram então como uma espécie de monitor, relação em troca da qual ofereciam a Bobby certa proteção das possíveis e frequentes crueldades e brincadeiras de outros colegas de escola, em geral dispostos a esmagar qualquer manifestação de fraqueza ou de gosto por Maria Callas.

Naquela época, Conde e seus amigos várias vezes falaram, discutiram e analisaram o assunto coletivamente, até chegarem à conclusão de que Bobby ainda não era homossexual, mas que ao primeiro tropeço que desse acabaria fisgado. E não seria com uma flecha lançada por Páris ou Pândaro, como os heróis gregos da Ilíada, dos quais Bobby costumava falar como se os tivesse conhecido pessoalmente. “Vocês não acham esquisito ele gostar tanto de Aquiles, hein?”, costumava perguntar o Coelho, mais devoto dos troianos do que dos aqueus cornudos. Por sua vez, Magro Carlos, que na época era muito magro e, além do mais, tão samaritano quanto seria pelo resto da vida, teve até a pretensão de afastar Bobby do tropeção fatal. Atribuiu-se a tarefa de procurar uma fêmea salvadora entre as amigas de Dulcita, sua namorada daquele e de outros tempos, embora seu empenho não tenha tido êxito: nem umas (as amigas de Dulcita) nem outro (Bobby) mostraram-se muito dispostos a optar por essa solução carnal, e logo Bobby e as meninas acabaram se tornando amigos e até confidentes, daqueles que falam cochichando, com risadinhas e de mãos dadas.

Quando terminaram o pré-universitário e se dispersaram pelas diversas faculdades, Conde continuou vendo Bobby, mas com menos frequência. Às vezes se topavam no restaurante universitário, em algumas ocasiões encontraram-se numa das recorrentes reuniões políticas de comparecimento obrigatório organizadas pela Federação de Estudantes, em outras viajaram no mesmo ônibus. Em cada encontro cumprimentavam-se com afeto, quase com alegria por parte de Bobby, sem falar muito, talvez porque seus mundos particulares tivessem se distanciado e ambos sentissem que tinham menos do que falar. Para surpresa de Conde – que na mesma noite remota revelara a descoberta aos amigos –, um dia tinha topado com Bobby num bar próximo da universidade onde à tarde era possível realizar o milagre havanês de conseguir cerveja. E Bobby estava lá não só tomando as ansiadas lagers como acompanhado de uma mulher a quem apresentou como sua namorada. Embora na opinião de Conde a moça não chegasse nem perto de ser uma beldade – muito mais baixa do que Bobby, com aparência e gestos que, para o antigo companheiro, talvez por seus preconceitos, eram meio rudes –, os velhos colegas de Roberto Roque Rosell alegraram-se com a conquista de Bobby. Só o Coelho, sempre dialético e histórico, opinou que o acontecimento na verdade não significava nada definitivo: o velho Bobby bem podia ser ambidestro, não é mesmo? Como Aquiles, o de pés ligeiros!

Durante o encontro, que viria a ser memorável, Bobby mostrara-se exultante e feliz, pois estava comemorando seu ingresso na seletiva e honrosa Juventude Comunista. Por isso convidou o ex-colega do pré-universitário a compartilhar umas cervejas com ele, com sua carteira vermelha de militante (Estudo, trabalho, fuzil!) e com a namorada (Yumilka? Katiuska? Matrioska?), que ele beijava com demasiada frequência e saliva… Depois disso, o rapaz tinha se esfumado, como um fantasma de ópera… Pode ter sido em 1978, época em que Conde, ao terminar o terceiro ano do curso, foi obrigado a largar os estudos e, para não morrer de fome e de maneira imprevista (também imprevisível), teve de aceitar o desafio de entrar na academia de polícia e dar uma virada radical no que (sempre pensaria) poderia ter sido sua vida. Desde então Bobby tinha desaparecido quase completamente, até da mente de Conde, para onde só voltava quando alguma reunião em que ele e os amigos chafurdavam nas saudades podia ser atravessada pelo espectro daquele personagem inclassificável. Que porra teria acontecido com Bobby?… Teria ido para o Norte como tanta, tanta gente? Não, Bobby não, o guarda vermelho não… Ou sim, ele também, como outros supostos ortodoxos que mudavam de ortodoxia?

Por isso, quando a figura de um ser andrógino, com o cabelo tingido de loiro acinzentado, um brinco no lobo da orelha esquerda, sobrancelhas delineadas e sorriso rutilante a iluminar um rosto já marcado por algumas rugas rebeldes entrou pela retina de Conde, seu cérebro não foi capaz de estabelecer a ligação com a última imagem armazenada de Bobby: uma cerveja na mão, olhos transbordantes de alegria e orgulho militante e varonil, um braço nos ombros de… Yumilka? Svetlana? Conde soube que devia, que tinha de ser ele porque depois de falar pelo telefone ficaram de se encontrar àquela hora (“perfeito, às cinco da tarde”), na casa de Conde (“sim, a mesma casa de sempre… mais velha e mais fodida… como tudo, como todos”).

– Ai, mas você está igualzinho…! – começou a dizer o recém-chegado, enquanto o anfitrião ainda segurava a maçaneta da porta, exibindo sua melhor cara de idiota assombrado.

– Não me ofenda, Bobby – replicou o outro, quando conseguiu se recompor do choque visual. – Se há quarenta anos eu tinha essa fuça de agora… eu tava muito fodido… Mas você, sim, é que mudou…

– Não é? Diz aí, o que está achando do meu look ? – perguntou, e depois acrescentou em voz baixa: – Made in Miami , filho!… A verdade é que agora estou tingindo para esconder os branquinhos… A velhice… Vade retro!

Conde sentiu que uma grande mudança tinha se produzido não só no look de Bobby, tão extravagante e ao mesmo tempo incrivelmente mais harmônico. Sua personalidade também tinha mudado, o que as duas únicas frases trocadas e a desenvoltura física afeminada do recém-chegado mostravam com clareza. E não pôde deixar de pensar que o fato de se assumir como o que sempre fora ou quisera ser parecia ter libertado Bobby de sua timidez densa, pois a pessoa na qual se tinha transformado exibia uma descontração completamente alheia à sua imagem ensimesmada de jovem reprimido, dir-se-ia quase que comprimido: como se tivesse rompido amarras e na verdade fosse outra pessoa. Os benefícios da liberdade.

– Estou te achando bem – observou Conde, ainda sob o efeito da comoção, e se pôs de lado para dar passagem ao visitante. – Vem, entra. Quer dizer que agora você está morando em Miami?

– Não, não – esclareceu o outro. – O look e a tintura são de Miami… o resto, cem por cento cubano… Por falar nisso, para você cairia bem uma tintura… Olha esses branquinhos… Um castanho escuro!

Antes de fechar a porta, Conde olhou para os dois lados da rua. Não lhe agradava muito a ideia de que as pessoas do bairro o vissem enfiar em casa tal personagem, embora àquela altura da vida ninguém pudesse pensar dele nada pior do que já pensava. Avançou até a cozinha, ofereceu uma cadeira a Bobby e se aproximou do fogão para acender a boca sobre a qual descansava a cafeteira preparada.

– Quer água? – perguntou a Bobby, que fazia um gesto de cansaço enquanto enxugava o suor.

– É mineral? Está fervida?

– Mineral? Fervida? A água? – perguntou Conde.

– Deixa, deixa… estou com a minha aqui – e Bobby abriu a bolsa de muitas cores que levava a tiracolo para tirar uma garrafa de água rotulada e um envelope pardo que colocou sobre a mesa. – É preciso se cuidar… os vermes, os vírus, toda a porcaria que anda pelo ambiente. O cólera! O ebola! A chicungunha!… Só o nome dessa merda já dá pavor. Sinto pontadas no cerebelo…

– Tem razão – disse Conde. – No ano que vem vou começar a ferver a água…

– Ai, cara, você como sempre… mais…

– Mais o quê?

– Mais machista…

– Porra, Bobby, já não sou nem isso… Agora sou hipertenso e, como não fervo a água, devo ser suicida…

Aproximou-se do fogão e constatou que a cafeteira estava terminando de coar.

– O meu sem açúcar – Bobby avisou quando ele tirou a engenhoca do fogo.

– Café sem açúcar?

– É preciso se cuidar… Estamos ficando velhos…

– Nem me fale nisso – disse Conde, entregando a xícara ao visitante ecológico e pondo açúcar na sua. Enquanto tomavam o café, atreveu-se a realizar um exame mais detido do ex-colega.

Continuava achando Bobby uma pessoa diferente da que tinha conhecido anos atrás. Era e não era Bobby. Tinha engordado um pouco, não muito, só o suficiente para parecer mais bem proporcionado, embora o rosto estivesse mais flácido, em parte por causa dos anos, mas também, ele supôs, de um estado de espírito diferente. E, o que ainda era capaz de espantar Conde: além do brinco, do cabelo descolorido e tingido e das sobrancelhas delineadas, o ex-colega também exibia no punho a pulseira de contas azuis e cristais transparentes com a qual proclamava sua iniciação à santería, religião africana pragmática capaz de resistir a todos os embates do cristianismo colonial, da moral burguesa republicana e, nos últimos quinquê­nios, à ofensiva marxista-ateísta. Então quer dizer que Bobby, o militante, tinha virado santero

– Diga alguma coisa da sua vida… – pediu a Bobby.

Violando com toda a certeza alguma regra sanitária do visitante, Conde acendeu um cigarro, soltou a fumaça e se dispôs a ouvir.

– Aconteceu tanta coisa, Conde…! – disse o outro, e mexeu uma mão com um gesto dos mais afeminados. – Nem sei por onde começar, cara…

– Por onde te der mais vontade – propôs ele, e acrescentou: – Por esse brinco e esse loiro não sei o quê…

Bobby sorriu com certa tristeza.

– Loiro acinzentado… É uma história compriiiiida compriiiiida, mas vou deixar bem curtinha para você… Me casei, tive dois filhos, que já são homens, homens homens, sem dúvida…

– Que bom!… – Conde se espantava cada vez mais. – Você se casou com aquela moça da universidade? Yumilka?

– Katiuska! – exclamou Bobby e imediatamente acrescentou: – A filha da puta da Katiuska! Como é que você se lembra dela?

– O que foi que a Katiuska te fez? Feia daquele jeito, ela te chifrou? – perguntou Conde, para evitar responder.

Bobby o olhou com tal desalento que, pela primeira vez, permitiu ao ex-policial encontrar na imagem que tinha à sua frente o fantasma do jovem viscoso que havia conhecido muitos anos atrás: um ar de desconsolo com um pouco de tristeza, muita fragilidade e bastante medo.

– Não, nem ela me chifrou nem me casei com a Katiuska.

Katiuska fodeu minha vida… ou me salvou, não sei… Mas não é essa a história que eu queria te contar… Bom, vou resumir o currículo: quando terminei a universidade me casei com Estela, Estelita, a mãe dos meus dois filhos. E tudo ia muito bem até que conheci Israel num negócio que andei fazendo e… explodi! Me apaixonei como um cão, não, como uma cadela perdida!

Conde pensou: pode ser que a grande história de Bobby se resuma a uma libertadora saída do armário.

O visitante sorveu o fundo da xícara de café e apontou para Conde o maço de cigarros.

– Isso não faz mal?

– Faz – disse Bobby. – Mas me deu uma vontade!…

Bobby acendeu o cigarro que Conde lhe deu e exalou a fumaça, ostentando intensamente o prazer provocado por aquele ato.

– Escuta, Conde… e afinal você escreveu alguma coisa? – Sim, tenho algumas coisas por aí – disse, porque era verdade, mas sem saber por que razão adornou a afirmação com cores falsas, como se precisasse de uma justificativa diante do mundo. – Estou vendo se preparo um livro… Mas esquece isso, continua a tua história.

– Bom… me separei da Estelita, fui viver com Israel e ficamos juntos uns dez anos, até que ele foi embora para Miami, porque não aguentava mais o calor…

– Dizem que em Miami também faz um calor do caralho… Não é verdade? –

Ai, cara, essa história de calor é pretexto… Israel não aguentava mais… você sabe, a situação, a coisa… – e fez um gesto como se formasse uma esfera enorme capaz de abranger tudo.

– Ah, a coisa – Conde ponderou. – E?

– E nada, o de sempre… tive vários parceiros, até que há uns dois anos conheci Raydel e… voltei a me apaixonar como uma cadela perdida, louca e, ainda por cima, velha!

– É bom estar apaixonado – ponderou Conde, sempre tão propenso a cair naquele estado de graça e vulnerabilidade… embora em seu caso sempre por mulheres e, havia muitos anos, por uma mesma mulher.

– Mas perigoso, muito perigoso… Por isso estou aqui.

– Porque está apaixonado?

– Por causa das consequências…

– Estou entendendo cada vez menos.

Bobby amassou no cinzeiro o cigarro fumado pela metade depois de dar uma última e gulosa tragada, justamente quando Conde pegava e acendia outro.

– Vamos ver, vamos ver como vou te explicar… – Bobby passou a mão pelos cabelos descoloridos e piscou várias vezes. – É que isso é terrível, cara! Conheci Raydel na casa do meu padrinho – começou, e tocou na pulseira de contas brilhantes atada ao punho, para depois inclinar-se para um lado, colocar as pontas dos dedos no chão e, por fim, levá-las aos lábios. – Já faz dezoito anos que me fiz santo… Yemayá…

– Mas você não era dos materialistas históricos e dialéticos? – perguntou Conde, que acompanhara em silêncio inquisitivo o ritual de Bobby e não podia deixar de tripudiar em situações como aquela: massacrar um pouco antigos repetidores de ordens e lemas de manuais de marxismo que depois acabavam militando nos cultos afro-cubanos, primitivos e, é claro, opiáceos, como todas as religiões, dizem que Marx dixit.

– Conde, eu era um mascarado… como quase todos. Coube a mim esconder por toda a vida que era uma bicha da cabeça aos pés e que acreditava em Deus e na Virgem Santíssima… E passei os primeiros quarenta anos da minha vida fingindo, me reprimindo, me torturando, para que meus pais, para que vocês, meus colegas, para que todo mundo nesta pátria machista-socialista acreditasse que eu era o que devia ser e não me dilacerasse a vida: um jovem exemplar, varão e militante, ateu e obediente… Você não imagina o que foi minha vida, não mesmo…

Conde não se atreveu a fazer nenhum comentário. Sabia muito bem das ocultações e das pressões a que tanta gente tivera de resistir para poder viver numa sociedade obstinada em reger todos os comportamentos éticos, políticos e sociais e em reprimir, com rigor e até com sanha, qualquer manifestação de diferença. E Bobby parecia ter sido uma vítima perfeita.

– Bem, como eu ia dizendo… conheci Raydel na casa do meu padrinho. Raydel tinha chegado recentemente de Palma Soriano, para os lados de Santiago de Cuba, e estava metido no negócio de vender animais aos santeros … Você tinha que ver: um moreninho com uns olhões, uns cílios compridos, uma boca…

– Pode parar – interveio Conde. – Já entendi. Tudo bem, você se apaixonou. E?

– Dei-lhe um bom banho para tirar o cheiro de bode que ele tinha e me enredei com aquela belezura. Depois o levei para a minha casa. Vivemos juntos por dois anos, como se fosse um sonho… e, bem, nisso Israel me convidou para ir a Miami e os senhores imperialistas americanos ficaram loucos e me deram o visto. Fui pra ficar dois meses, encontrar Israel e, de quebra, tentar acertar umas coisas da minha firma…


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