Livro ‘Um Lugar Bem Longe Daqui’ por Delia Owens

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Por anos, boatos sobre Kya Clark, a “Menina do Brejo”, assombraram Barkley Cove, uma calma cidade costeira da Carolina do Norte. Ela, no entanto, não é o que todos dizem. Sensata e inteligente, Kya sobreviveu por anos sozinha no pântano que chama de lar, tendo as gaivotas como amigas e a areia como professora. Abandonada pela mãe, que não conseguiu suportar o marido abusivo e alcoólatra, e depois pelos irmãos, a menina viveu algum tempo na companhia negligente e por vezes brutal do pai, que acabou também por deixá-la. Anos depois, quando dois jovens da cidade ficam intrigados com sua beleza selvagem, Kya se permite experimentar uma nova vida ― até que o impensável acontece e um deles é encontrado morto. Ao mesmo tempo uma ode a natureza, um emocionante romance de formação e uma surpreendente história de mistério…

Páginas: 336 páginas; Editora: Intrínseca; Edição: 1 (29 de julho de 2019); ISBN-10: 8551004867; ISBN-13: 978-8551004869; ASIN: B07T7X4V7P

Biografia do autor: Delia Owens é cientista e escritora, coautora de três best-sellers que exploram suas jornadas à África. Já ganhou o John Burroughs Award for Nature Writing e teve artigos publicados em diversos periódicos, como NatureThe African Journal of Ecology e International WildlifeUm lugar bem longe daqui é seu primeiro romance e teve os direitos de tradução adquiridos em 39 idiomas. Delia atualmente mora no estado americano de Idaho, onde dá continuidade a seu trabalho de ajuda aos habitantes e à vida natural da Zâmbia.

Leia trecho do livro

Para Amanda, Margaret e Barbara

A você Se eu nunca tivesse te visto
Nunca teria te conhecido.
Eu te vi
Te conheci
Te amei,
Para sempre.

Livro 'Um Lugar Bem Longe Daqui' por Delia Owens - Fenômeno editorial, com mais de 2 milhões de cópias vendidas, Um lugar bem longe daqui figura nas listas de best-sellers dos Estados Unidos desde seu lançamento original, em agosto de 2018. Por anos, boatos sobre Kya Clark, a “Menina do Brejo”, assombraram Barkley Cove, uma calma cidade costeira da Carolina do Norte. Ela, no entanto, não... Leia Online, Livros Online, Baixar PDF, Frases e Citações.

PARTE 1

O brejo

Prólogo

1969

Um brejo não é um pântano. Um brejo é um lugar de luz, onde a grama brota na água e a água escoa para dentro do céu. Córregos vagarosos serpenteiam levando consigo a esfera do sol até o mar, e aves de pernas compridas alçam voo com uma graça inesperada — como se não tivessem sido feitas para voar — em meio ao rugido de mil gansos-da-neve.

Então, dentro do brejo aqui e ali, um pântano de verdade rasteja até lamaçais baixos escondidos em florestas úmidas. A água do pântano é parada e escura, porque engoliu a luz lá dentro da sua garganta lamacenta. Até os animais noturnos são diurnos nesse antro. Há sons, claro, mas, em comparação com o brejo, o pântano é silencioso, pois a decomposição é um trabalho das células. A vida apodrece, exala seu fedor, e volta a ser uma turfa decomposta; um comovente chafurdar de morte que gera vida.

Na manhã de 30 de outubro de 1969, o corpo de Chase Andrews estava caído no pântano, que o teria absorvido em silêncio, como parte da rotina. Escondendo-o de vez. Um pântano sabe tudo sobre a morte, que não define necessariamente como tragédia, e com certeza não como pecado. Mas naquela manhã dois meninos da cidadezinha saíram de bicicleta para ir até a antiga torre de incêndio e, da terceira curva da estrada em zigue-zague, viram uma jaqueta jeans.

1.

Ma

1952

Fazia um calor de agosto tão escaldante naquela manhã que o hálito úmido do brejo circundava de névoa os carvalhos e pinheiros. Os palmeirais estavam estranhamente silenciosos, exceto pelas batidas suaves e lentas das asas das garças levantando voo na lagoa. E então Kya, na época com apenas seis anos, ouviu a porta de tela bater. Em pé no banquinho, ela parou de esfregar o resto de mingau de milho na panela e a colocou dentro de uma velha bacia de água com sabão. Agora não havia nenhum som além da sua respiração. Quem havia saído do barracão? Não tinha sido Ma. Ela nunca deixava a porta bater.

Quando Kya correu até a varanda, viu a mãe usando uma saia marrom comprida com as pregas da barra batendo nos tornozelos enquanto ela descia a estradinha de areia com salto alto. Os sapatos de bico fino imitavam pele de jacaré. Seus únicos sapatos de sair. Kya quis gritar, mas sabia que não podia acordar Pa, então abriu a porta e parou nos degraus de tijolo e tábuas. Dali viu a mala azul que Ma carregava. Em geral, com a mesma confiança de um filhote de cachorro, Kya sabia que a mãe voltaria com um pedaço de carne embrulhado num papel pardo sebento, ou então com uma galinha de cabeça dependurada. Mas ela nunca calçava os sapatos de jacaré, nunca levava mala.

Ma sempre olhava para trás no ponto em que a estradinha de areia cruzava com a de terra batida, com um dos braços erguidos no alto, acenando com a palma branca da mão, enquanto virava para pegar a trilha que serpenteava pelas florestas encharcadas, lagoas de tifa, e quem sabe — se a maré ajudasse — dava na cidade. Mas nesse dia ela continuou andando, sem firmeza por causa dos sulcos no chão. Sua silhueta alta surgia de vez em quando pelos buracos da floresta até apenas pedaços de lenço branco relampejarem entre as folhas. Kya correu até o ponto do qual sabia que dava para ver a estrada; com certeza Ma acenaria dali, mas chegou a tempo de ver a mala azul — uma cor tão errada para a mata — desaparecendo. Um peso, espesso como a lama negra, esmagou seu peito enquanto ela retornava aos degraus para esperar.

Kya era a mais nova de cinco, os outros todos mais velhos, embora ultimamente ela não conseguisse lembrar suas idades. Eles moravam com Ma e Pa, apertados feito coelhos em gaiolas no barracão construído de forma grosseira, a varanda protegida por uma tela que espiava com os olhos arregalados de baixo dos carvalhos.

Jodie, o irmão com idade mais próxima da sua, mas mesmo assim sete anos mais velho, saiu da casa e parou ao seu lado. Tinha os mesmos olhos e cabelo escuros que ela; havia lhe ensinado os cantos dos pássaros, os nomes das estrelas, a conduzir o barco pelo meio do capim-navalha.

Jodie, o irmão com idade mais próxima da sua, mas mesmo assim sete anos mais velho, saiu da casa e parou ao seu lado. Tinha os mesmos olhos e cabelo escuros que ela; havia lhe ensinado os cantos dos pássaros, os nomes das estrelas, a conduzir o barco pelo meio do capim-navalha.

— Ma vai voltar
— disse ele.
— Não sei não. Ela está com os sapatos de jacaré.
— Mães não deixam filhos. Elas não conseguem.
— Você me disse que aquela raposa deixou os filhotes.
— É, mas aquela raposa estava com a perna toda arrebentada. Ela ia morrer de fome se tivesse tentado se alimentar e alimentar os filhotes também. Foi melhor deixar os filhotes, ficar boa, depois ter outros quando pudesse criar direito. Ma não está morrendo de fome, ela vai voltar.

Jodie não tinha tanta certeza quanto seu tom de voz levava a crer, mas disse isso por Kya.

Com um nó na garganta, ela sussurrou:

— Mas Ma saiu com aquela mala azul como se fosse para algum lugar importante.

* * *

O barracão ficava afastado das palmeiras que se espalhavam pelos areais planos até um colar de lagoas verdes e, ao longe, todo o charco mais além. Quilômetros de um capim tão resistente que crescia na água salgada, interrompidos apenas por árvores tão vergadas que tinham o mesmo formato do vento. Florestas de carvalhos se adensavam ao redor dos outros lados do barracão e abrigavam a lagoa mais próxima, cuja superfície fervilhava com o tanto de vida que continha. O ar salobro e o canto das gaivotas chegavam do mar por entre as árvores.

O ato de tomar posse da terra não tinha mudado muito desde o século XVI. As habitações espalhadas pelo brejo não eram descritas de modo oficial, apenas demarcadas naturalmente pelos renegados: o limite de um córrego aqui, um carvalho morto ali. Um homem não ergue um barracão feito de folhas de palmeira num lamaçal a não ser que esteja fugindo de alguém ou que tenha chegado ao fim da linha.

O brejo era protegido por uma costa acidentada conhecida entre os primeiros exploradores como o “Cemitério do Atlântico”, porque as marés, os ventos enfurecidos e os baixios naufragavam navios como se fossem chapeuzinhos de papel ao longo do que viria a se tornar o litoral da Carolina do Norte. O diário de um marinheiro dizia: “Percorremos as Costas rasas… mas não conseguimos encontrar nenhuma Entrada… Uma Tempestade violenta se abateu… fomos forçados a voltar para o Mar para proteger a nós mesmos e ao Navio, e fomos levados pela Rapidez de uma Correnteza forte…

“A Terra… era alagada e pantanosa, por isso voltamos na direção do nosso Navio… Que Desalento para aqueles que no futuro virão se instalar nestas Partes.”

Quem procurava terras de verdade seguia em frente, e aqueles brejos infames se transformaram numa rede que capturou uma mistura heterogênea de marinheiros amotinados, náufragos, devedores e fugitivos tentando escapar de guerras, impostos ou leis que não respeitavam. Os que a malária não matava ou que o brejo não engolia criaram uma tribo de gente da mata composta por várias raças e múltiplas culturas, todos capazes de derrubar uma pequena floresta com um machado e percorrer quilômetros caçando um animal. Como ratos de rio, cada um tinha o próprio território, mas mesmo assim precisavam se encaixar nas margens ou simplesmente desaparecer algum dia no pântano. Duzentos anos depois, somaram-se a eles os escravos foragidos, que escaparam para o brejo e ficaram conhecidos como quilombolas, e também os libertos, miseráveis e destituídos, que se dispersavam pelas áreas alagadas por causa da falta de opção.

Aquele podia ser um território cruel, mas nenhum centímetro dele era estéril. Camadas de vida — siris de areia velozes, lagostins que viviam na lama, aves aquáticas, peixes, camarões, ostras, veados gordos e gansos roliços — empilhavam-se em terra ou na água. Quem não se importasse em capturar o jantar com as próprias mãos jamais morreria de fome.

Como estávamos em 1952, alguns dos terrenos tinham sido ocupados por várias pessoas sem conexão entre si e sem escritura formal já havia quatro séculos. A maioria anterior à Guerra Civil. Outras haviam se instalado ali mais recentemente, sobretudo após os dois conflitos mundiais, quando os homens voltavam sem dinheiro e com a alma despedaçada. O brejo não os confinava, mas os definia, e como qualquer terreno sagrado mantinha seus segredos muito bem guardados. Ninguém se importava que eles ficassem com aquelas terras, pois não havia quem as quisesse. Afinal de contas, era um lamaçal abandonado.

Além do próprio uísque, os habitantes dos brejos criavam as próprias leis — não como aquelas gravadas a fogo em tábuas de pedra ou escritas em documentos, mas outras, mais profundas, carimbadas nos seus genes. Antigas e naturais como as leis nascidas de gaviões e pombos. Quando encurralado, desesperado ou isolado, o homem retorna aos instintos cujo objetivo imediato é a sobrevivência. Rápidos e justos. Esses vão ser sempre os elementos surpresa, porque são transmitidos com maior frequência de uma geração para outra do que os genes mais brandos. Não se trata de moralidade, mas de matemática simples. Entre si, os pombos lutam com a mesma frequência dos gaviões.

* * *

Ma não voltou nesse dia. Ninguém tocou no assunto. Muito menos Pa. Fedendo a peixe e aguardente de barril, ele bateu as tampas das panelas.

— Que que tem de janta?

Olhando para baixo, os irmãos e irmãs deram de ombros. Pa disse um palavrão, saiu de casa mancando e voltou para a mata. Já houvera outras brigas; Ma chegara até a ir embora uma ou duas vezes, mas sempre voltava, e recolhia do chão quem quisesse ser consolado.

As duas irmãs mais velhas prepararam feijão-vermelho e bolinhos de milho para o jantar, mas ninguém se sentou à mesa para comer, como teriam feito com Ma. Todos se serviram de feijão na panela, puseram os bolinhos por cima e saíram para comer nos colchões no chão ou no sofá desbotado.

Kya não conseguiu comer. Ficou sentada nos degraus da varanda olhando para a estradinha. Alta para a idade, tão magra que era só osso, tinha a pele muito queimada de sol e cabelo liso, preto e grosso como as asas de um corvo.

A escuridão interrompeu sua tocaia. O coaxar dos sapos abafaria o ruído de passos; mesmo assim, ela ficou deitada em sua cama na varanda, escutando. Naquela manhã mesmo tinha acordado com banha de porco chiando na frigideira de ferro e cheiro de pãezinhos assando no forno a lenha. Vestira o macacão e correra até a cozinha para colocar os pratos e garfos. Catar os bichos do mingau de milho. Na maior parte das manhãs bem cedo, com um grande sorriso, Ma a abraçava — “Bom dia, minha menina especial!” — e as duas cuidavam dos afazeres como numa dança. Às vezes Ma cantava músicas folclóricas ou citava acalantos: “Este porquinho aqui foi ao mercado.” Ou então tirava Kya para dançar um jitterbug, e seus pés batiam no piso de compensado até a música do rádio a pilha parar, parecendo cantar para si mesmo do fundo de um barril. Em outras manhãs, Ma falava sobre coisas de adulto que Kya não entendia, mas imaginava que as palavras dela precisassem ir para algum lugar, então as absorvia através da pele enquanto ia pondo mais lenha no fogão. E balançava a cabeça como se soubesse.

Depois vinha a agitação de fazer todo mundo acordar e comer. Pa não aparecia. Ele tinha dois modos de agir: silêncio ou gritaria. Então era melhor quando dormia, ou quando nem sequer voltava para casa.

Mas naquela manhã Ma tinha ficado calada; o sorriso perdido, os olhos vermelhos. Havia amarrado um lenço branco ao estilo dos piratas bem baixo na testa, mas as bordas roxas e amarelas de um hematoma vazavam para fora. Logo depois do café, antes mesmo de a louça estar lavada, Ma colocara alguns pertences pessoais na mala e saíra pela estrada.

* * *

Na manhã seguinte, Kya tornou a ocupar seu posto nos degraus, os olhos escuros fixos na estrada como um túnel à espera de um trem. O brejo mais além estava envolto numa névoa tão baixa que o fundo macio encostava na lama. Descalça, Kya tamborilou os dedos dos pés e cutucou besouros com folhas de grama, mas uma criança de seis anos não consegue passar muito tempo sentada, então ela logo se aproximou da área inundada, os pés ruidosamente sugados pelo chão. Agachou-se na beira da água límpida e ficou olhando os peixinhos nadarem dos trechos ensolarados para as sombras.

Do palmeiral, Jodie a chamou com um grito. Ela o encarou; talvez ele tivesse notícias. Mas ao vê-lo serpentear por entre as folhas pontudas ela soube, pelo jeito casual como se movia, que Ma não tinha voltado para casa.

— Quer brincar de explorador? — perguntou ele.
— Você disse que era grande para brincar de explorador.
— Foi só da boca para fora que eu disse. Ninguém nunca é grande demais para essas coisas. Quem chegar por último é a mulher do padre!

Eles saíram correndo pela área alagada, entrando na mata em direção à praia. Ela deu um gritinho agudo quando o irmão a ultrapassou e riu até eles chegarem ao grande carvalho que lançava os braços enormes pela areia. Jodie e seu irmão mais velho, Murph, tinham pregado algumas tábuas por cima dos galhos para construir uma casa na árvore e uma torre de observação. Agora a maior parte estava desabando, pendendo dos pregos enferrujados.

Em geral, quando eles a deixavam brincar, era só como escrava, para levar pãezinhos quentes recém-saídos do tabuleiro de Ma para os irmãos.

Mas nesse dia Jodie falou:
— Você pode ser a capitã.

Kya levantou o braço para comandar um ataque:
— Fora, espanhóis!

Eles partiram gravetos para usar como espada e saíram correndo por entre os arbustos, gritando e golpeando o inimigo.

Então — já que o faz de conta chegava e logo passava — ela andou até um tronco caído coberto de musgo e se sentou. Sem dizer nada, Jodie se acomodou ao seu lado. Queria falar alguma coisa para que ela não pensasse mais em Ma, porém as palavras não vinham, e os dois ficaram observando as sombras das aranhas-d’água que passavam nadando.

Mais tarde Kya voltou para os degraus da varanda e esperou muito tempo, mas, enquanto olhava para o fim da estradinha, não chorou uma vez sequer. Seu rosto estava imóvel, os lábios formavam uma linha fina sob os olhos atentos. Mas Ma também não voltou nesse dia.

2.

Jodie

1952

Nas semanas seguintes depois que Ma foi embora, o irmão e as duas irmãs mais velhos de Kya também se foram, como se seguissem seu exemplo. Haviam suportado a cara vermelha e os acessos de raiva de Pa, que começavam com gritos, então se intensificavam e viravam socos ou tabefes com as costas da mão, até, um depois do outro, desaparecerem. De toda forma já eram quase adultos. Além disso, do mesmo jeito que ela esqueceu suas idades, também não conseguia se lembrar dos seus nomes verdadeiros, apenas que todos os chamavam de Missy, Murph e Mandy. Sobre seu colchão na varanda, Kya encontrou uma pequena pilha de meias deixada pelas irmãs.

Na manhã em que Jodie virou o último irmão restante, Kya acordou escutando o tum-plá e o chiado de gordura quente do café da manhã. Correu até a cozinha pensando que Ma estivesse em casa fritando bolinhos ou panquecas de milho. Mas era Jodie, em pé mexendo o mingau de milho diante do fogão a lenha. Ela sorriu para disfarçar a decepção e ele afagou o topo da sua cabeça, fazendo shh baixinho para ela moderar a voz: se não acordassem Pa, poderiam comer sozinhos. Jodie não sabia fazer pãezinhos e não tinha bacon, por isso ele fez mingau de milho e uns ovos mexidos em banha e os dois se sentaram juntos e ficaram trocando olhares e sorrisos em silêncio.

Lavaram a louça depressa e saíram correndo pela porta em direção ao brejo, ele na frente. Mas bem nessa hora Pa gritou e veio mancando na direção deles. Tão magro que era difícil de acreditar, sua silhueta parecia flutuar, como se a gravidade não influenciasse. Seus molares eram amarelos como os dentes de um cão velho.

Kya ergueu os olhos para Jodie.
— A gente pode fugir. Se esconder no canto do musgo.
— Está tudo bem. Vai ficar tudo bem — disse ele.

* * *

Mais tarde, perto do pôr do sol, Jodie encontrou Kya na praia olhando para o mar. Quando ele parou ao seu lado, ela não ergueu os olhos, manteve-os fixos nas ondas quebrando. Mesmo assim Kya soube, pelo jeito como ele falou, que Pa tinha lhe dado um soco na cara.

— Tenho que ir embora, Kya. Não posso mais morar aqui não.

Ela quase se virou para ele, mas não o fez. Quis implorar para que não a deixasse sozinha com Pa, mas as palavras entalaram.

— Quando tiver idade suficiente você vai entender — disse ele.

Kya quis gritar que podia ser nova, mas não era burra. Sabia que Pa era o motivo pelo qual todos partiam; o que não entendia era por que ninguém a levava junto. Ela também pensara em ir embora, mas não tinha para onde ir nem dinheiro para o ônibus.

— Kya, tome cuidado, está ouvindo? Se alguém aparecer, não entre na casa. Lá eles podem te pegar. Corre para dentro do brejo, se esconde nos arbustos. Cobre suas pegadas como eu te ensinei. E pode se esconder do Pa também.

Ela não disse nada, então ele se despediu e atravessou a praia em direção à mata. Logo antes de se embrenhar pelas árvores, ela finalmente se virou e o observou se afastar.

— Este porquinho aqui ficou em casa — disse ela para as ondas.

Saiu de sua imobilidade e foi correndo até o barracão. Gritou o nome dele no corredor, mas as coisas de Jodie já não estavam mais ali, e no espaço em que dormia só havia o colchão.

Ela desabou ali e ficou olhando os últimos raios solares descerem pela parede. A luz ainda durou mais um pouco depois que o sol se foi, como sempre, e parte dela inundou o quarto, por um breve instante deixando as formas das camas e as pilhas de roupas velhas mais nítidas e coloridas do que as árvores lá fora.

Uma fome intensa — que coisa mundana — a surpreendeu. Ela foi até a cozinha e ficou parada à porta. Durante toda a sua vida, aquele cômodo fora aquecido pelo pão assando, pelo feijão fervendo na panela ou por um ensopado de peixe borbulhando. Agora estava rançoso, silencioso e escuro.

— Quem vai cozinhar? — perguntou ela em voz alta. Poderia ter perguntado: Quem vai dançar?

Acendeu uma vela, cutucou os carvões em brasa no fogão a lenha e pôs gravetos lá dentro. Soprou o fole até uma chama se acender, depois colocou mais lenha. A geladeira servia de armário porque a luz elétrica não chegava nem perto do barracão. Para impedir o mofo, a porta era mantida aberta pelo mata-moscas. Mesmo assim, veios negros esverdeados de bolor se acumulavam em cada reentrância.

Ela pegou uns restos e disse:
— Vou jogar o mingau de milho na banha e esquentar.

Fez isso e comeu direto da panela, olhando pela janela caso Pa chegasse. Mas ele não chegou.

Quando a luz da lua crescente finalmente tocou o barracão, ela engatinhou até sua cama na varanda — um colchão cheio de calombos colocado diretamente no chão e forrado por lençóis de verdade estampados com rosas azuis pequeninas que Ma havia comprado numa venda de garagem — para passar a noite sozinha pela primeira vez na vida.

No início, sentava-se e espiava a tela a cada poucos minutos. Tentando ouvir passos na mata. Conhecia o formato de todas as árvores; mesmo assim, algumas pareciam se mexer aqui e ali, movimentando-se com a lua. Durante algum tempo, ela ficou tão rígida que nem conseguia engolir, mas na hora certa as canções conhecidas dos sapos e grilos dominaram a noite. Mais reconfortante do que uma canção de ninar. A noite tinha um cheiro doce, o hálito terroso dos sapos e das salamandras que sobreviveram a mais um dia de calor forte. O brejo se aconchegou mais para perto junto com uma névoa baixa, e ela dormiu.

* * *

Pa havia lutado na Alemanha na Segunda Guerra Mundial, onde tivera o fêmur esquerdo atingido e esmigalhado por estilhaços, seu último motivo de orgulho. Os cheques semanais pelo ferimento de guerra eram sua única fonte de renda. Uma semana depois de Jodie ir embora, a geladeira estava vazia e quase não restavam mais nabos. Quando Kya entrou na cozinha naquela segunda-feira de manhã, Pa apontou para uma nota amarfanhada de um dólar e algumas moedas na mesa da cozinha.

— Isso aqui é comida da semana. Nada é de graça nessa vida — disse ele. — Tudo tem um custo, e por esse dinheiro você vai ter que cuidar da casa, catar lenha e lavar roupa.

Pela primeira vez na vida, Kya foi sozinha até o povoado de Barkley Cove para fazer compras — este porquinho aqui foi ao mercado. Andou mais de seis quilômetros pela areia funda ou pela lama negra até ver a baía cintilante mais à frente e a cidadezinha à margem.

Mangues cercavam a cidade e misturavam sua névoa salgada à do oceano, que subia na maré cheia do outro lado da rua principal. Juntos, brejo e mar separavam o vilarejo do resto do mundo, e a única ligação era a estrada de mão e contramão que mancava cidade adentro toda feita de cimento rachado e buracos.

Eram duas ruas: uma delas, chamada Main, tinha uma sequência de lojas que margeava o mar; numa das pontas ficava o armazém Piggly Wiggly, na outra a Western Auto, e no centro ficava o restaurante. Em meio a tudo isso havia a loja de quinquilharias Kress Five and Dime, uma Penney’s (venda por catálogo apenas), a padaria Parker’s e uma sapataria Buster Brown. Ao lado do armazém ficava a Cervejaria Dog-Gone, que vendia cachorros-quentes com salsicha na brasa, chili picante e camarões fritos servidos em barquinhos de papel dobrado. Nem mulheres nem crianças entravam lá porque não era considerado adequado, mas uma janelinha tinha sido aberta na parede para elas poderem pedir da rua os cachorros-quentes e refrigerantes. Negros não podiam usar nem a porta nem a janelinha.

A outra rua, chamada Broad, ia da estrada antiga direto até o mar e cruzava a Main, onde acabava. Assim, o único cruzamento da cidade era entre Main, Broad e o Oceano Atlântico. As lojas e os comércios não ficavam todos juntos como na maioria das cidades; eram separados por pequenos terrenos baldios tomados pelo arroz de costa e pelos palmeirais, como se da noite para o dia o brejo tivesse invadido. Por mais de duzentos anos, ventos cortantes e salgados haviam desbotado as construções feitas de telhas de cedro até deixá-las cor de ferrugem, e as molduras das janelas, a maioria pintada de branco ou azul, estavam descascadas e rachadas. Mais do que tudo, o vilarejo parecia cansado de brigar com os elementos, e era como se houvesse simplesmente baixado a guarda.

O cais de Barkley Cove, cheio de cordas esgarçadas e pelicanos velhos, avançava para dentro da pequena baía cuja água, quando calma, refletia os vermelhos e amarelos dos barcos de pescar camarão. Estradas de terra batida ladeadas por casinhas de cedro serpenteavam por entre as árvores, rodeavam lagoas e margeavam o oceano de um lado e outro das lojas. Barkley Cove era literalmente uma cidadezinha perdida no meio do mar, com partes espalhadas aqui e ali entre os estuários e juncos feito um ninho de garça varrido pelo vento.

Descalça e usando um macacão curto demais, Kya ficou parada no ponto em que a estrada do brejo encontrava a de asfalto. Mordendo os lábios, querendo correr para casa. Não conseguia pensar no que dizer às pessoas, em como iria se virar com o dinheiro das compras. Mas a fome era uma coisa insistente, então ela entrou na Main e foi de cabeça baixa em direção ao Piggly Wiggly por uma calçada esburacada que aparecia de vez em quando por entre tufos de grama. Quando estava chegando perto da Five and Dime, ouviu uma agitação atrás de si e pulou para o lado bem na hora em que três meninos alguns anos mais velhos do que ela passaram depressa de bicicleta. O da frente olhou para trás, rindo por quase tê-la atropelado, e então por pouco não trombou com uma mulher saindo da loja.

— CHASE ANDREWS, volte aqui agora mesmo! Vocês três, meninos.

Eles pedalaram por mais alguns metros, então mudaram de ideia e se aproximaram da mulher, Srta. Pansy Price, vendedora de tecidos e artigos de armarinho. A família dela fora dona da maior fazenda nos arredores do brejo, e, embora tivessem sido forçados a vender tudo muito tempo atrás, ela continuava no papel de elegante senhora de terras. O que não era fácil morando num apartamento minúsculo em cima do restaurante. A Srta. Pansy costumava usar chapéus no formato de turbantes de seda, e naquela manhã estava com um cor-de-rosa que realçava seu batom vermelho e as bolinhas de ruge.

Ela deu uma bronca nos meninos.

— Estou quase indo lá falar com as mães de vocês sobre isso. Ou melhor, com os pais de vocês. Andar de bicicleta na calçada nessa velocidade, quase me atropelando. Que que vai dizer para se defender, Chase?

Era ele quem tinha a bicicleta mais estilosa: selim vermelho, guidom cromado e mais alto do que o normal.

— Pedimos desculpas, Srta. Pansy, a gente não viu a senhora porque aquela menina lá se meteu no caminho.

Chase, bronzeado e de cabelo escuro, apontou para Kya, que havia recuado e estava quase dentro de um arbusto de murta.

— Deixem ela para lá. Vocês não podem colocar a culpa dos seus pecados nos outros, mesmo no lixo do pântano. Agora, meninos, vocês têm que fazer uma boa ação para compensar isso, viu? Lá vai a Srta. Arial com suas compras… Ajudem ela a carregar tudo até a picape. E metam a camisa para dentro das calças.

— Sim, senhora — disseram os meninos ao mesmo tempo que saíam pedalando na direção da Srta. Arial, que tinha sido a professora de todos eles no segundo ano.

Kya sabia que os pais do menino de cabelo escuro eram donos da loja de automóveis Western Auto, por isso ele andava na bicicleta mais chique. Já o vira descarregando da picape caixas grandes de papelão com mercadorias ou as levando para dentro da loja, mas nunca tinha trocado uma palavra sequer nem com ele nem com os outros.

Esperou alguns minutos e depois, mais uma vez de cabeça baixa, foi até o armazém. Dentro do Piggly Wiggly, examinou a farinha de milho para mingau à venda e escolheu um pacote de meio quilo do mais grosso e amarelo porque tinha uma etiqueta vermelha pendurada em cima: Especial da semana. Como Ma tinha ensinado. Ficou esperando, aflita, no corredor até não ter mais nenhum cliente no caixa, então se aproximou e encarou a funcionária, a Sra. Singletary, que perguntou:

— Cadê sua mãe?

A Sra. Singletary tinha o cabelo curto, muito encaracolado e da mesma cor roxa de uma íris ao sol.

— Ocupada, senhora.
— Bem, você tem dinheiro para a farinha, não tem?
— Tenho.

Sem saber contar a quantia exata, pôs no balcão a nota de um dólar.

A Sra. Singletary se perguntou se a menina saberia a diferença entre as moedas, por isso, ao pôr o troco na mão aberta de Kya, contou devagar.

— Vinte e cinco, cinquenta, sessenta, setenta, oitenta, oitenta e cinco e mais três centavos. Porque a farinha custa doze.

Kya sentiu uma dor no estômago. Será que precisava fazer alguma conta também? Encarou o quebra-cabeça de moedas na palma da mão.

A Sra. Singletary suavizou a expressão.

— Muito bem. Pode ir então.

Kya saiu correndo da loja e foi o mais rápido que conseguiu até a trilha do brejo. Ma dissera muitas vezes: “Nunca corra na cidade, senão as pessoas vão achar que você roubou alguma coisa.” Mas assim que chegou à estrada de terra batida Kya correu quase um quilômetro inteiro. Então andou depressa pelo resto do caminho.

Em casa, pensando se sabia preparar mingau de milho, jogou-o na água fervente como Ma costumava fazer, mas os grãos empelotaram e formaram uma única bola gigante que queimou no fundo e ficou cru por dentro. De tão borrachudo, ela só conseguiu dar algumas mordidas, então foi de novo até a horta e encontrou mais algumas folhas de nabo entre as varas-de-ouro. Ferveu na água e comeu todas, bebendo também o caldo da panela.

Em poucos dias pegou o jeito de fazer mingau de milho, embora sempre empelotasse um pouco, mesmo que ela mexesse muito. Na semana seguinte, comprou ossos de boi — marcados com etiqueta vermelha — e os cozinhou com o mingau e as folhas de couve para conseguir um purê com um gosto bom.

Kya já tinha lavado roupa muitas vezes com Ma, então sabia que era para esfregá-las com sabão de soda cáustica em barra na tábua sob a torneira do quintal. O macacão de Pa ficou tão pesado molhado que ela não conseguiu torcê-lo com suas mãozinhas ou alcançar o varal para pendurá-lo, então o estendeu pingando sobre as folhas de palmeira na beira da mata.

Ela e Pa ficaram nessa dança, vivendo separados no mesmo barracão, às vezes passando dias sem se ver. Quase nunca se falavam. Ela arrumava toda a bagunça dos dois, feito uma mulherzinha zelosa. Não cozinhava tanto a ponto de conseguir preparar as refeições dele — de qualquer forma, ele em geral não estava em casa —, mas fazia sua cama, arrumava a casa, varria e lavava a louça na maioria das vezes. Não porque alguém tivesse lhe dito para fazer isso, mas porque era o único jeito de manter o barracão decente para quando Ma voltasse.

* * *

Ma sempre dissera que a lua de outono surgia para o aniversário de Kya. Assim, mesmo sem se lembrar do dia do seu aniversário, certa noite, quando a lua nasceu cheia e dourada na lagoa, Kya pensou: Acho que estou fazendo sete anos. Pa nunca tocou no assunto; claro que não teve bolo. Ele também não disse nada sobre ela ir à escola, e ela, sem saber muito a respeito, teve medo de puxar o assunto.

Com certeza Ma voltaria para o seu aniversário, então na manhã seguinte à lua cheia ela pôs o vestido de algodão estampado e ficou olhando para a estradinha. Torceu para Ma estar caminhando até o barracão, ainda com os sapatos de jacaré e a saia comprida. Como ninguém apareceu, ela pegou a panela de mingau de milho e atravessou a mata até a beira do mar. Levando as mãos à boca, inclinou a cabeça para trás e gritou: “Cráa, cráa, cráa.” Pontinhos prateados apareceram no céu vindos de um lado e outro da praia e de cima das ondas.

— Lá vêm elas. Não sei contar o número de tantas gaivotas — disse ela.

Aos gritos e guinchos, as aves rodopiaram e mergulharam, planaram perto do seu rosto e pousaram enquanto ela jogava o mingau. Por fim, aquietaram-se e ficaram se pavoneando, então ela se sentou na areia, as pernas cruzadas para um dos lados. Uma gaivota grande se acomodou na areia perto dela.

— É meu aniversário — disse Kya.

Fim do segundo capítulo


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