O novo caso do delegado Espinosa envolve um jogo de gato e rato que conta com um cafetão bem-sucedido, sua nova prostituta favorita e outras figuras da Lapa profunda. Ratto é um cafetão da Lapa, coração do Rio de Janeiro, que, acompanhado de seu sócio, Japa, consegue tirar uma pequena fortuna todo mês. Quando um violento policial resolve chantageá-lo, querendo abocanhar parte do quinhão, Ratto precisa desaparecer dali e arranjar um jeito de sobreviver. Refugiado em Copacabana, ele conhece Rita, uma prostituta jovem e muito inteligente que vira sua protegida, mas logo ambos se veem em meio a uma caçada pelas ruas e becos escuros da cidade..
Editora : Companhia das Letras; 1ª edição (8 julho 2019) Idioma: : Português Capa comum : 120 páginas ISBN-10 : 8535932372 ISBN-13 : 978-8535932379 Dimensões : 20.8 x 13 x 1 cm
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Leia trecho do livro
LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA
A ÚLTIMA MULHER
PRIMEIRA PARTE
O labirinto
1°
Seu apelido era Ratto. Baixo e magro, tinha a cabeça com uma forma que lembrava a de um roedor. As pessoas o achavam repulsivo, apesar de cuidar da higiene pessoal e de vestir sempre terno, camisa social e gravata, todos de boa qualidade, limpos e passados, além de sapatos engraxados. A aparência fez com que desde cedo procurasse lugares pouco iluminados, sombrios, o que nem sempre era fácil em uma cidade como o Rio de Janeiro.
A história teve início quando ele ainda vivia no Centro. Durante o dia circulava pela Cinelândia, sobretudo pelas ruelas, saindo da praça Floriano em direção aos arcos, por onde os carros da polícia não passavam. À noite frequentava os bares da Lapa. Não da Lapa dos casais bem-vestidos, moradores da Zona Sul, com dinheiro para gastar nos restaurantes e nas casas de espetáculos da rua do Lavradio — sua área de atuação era a Lapa profunda.
Não demorou muito até se tornar conhecido das mulheres que faziam a vida na noite do bairro e dos meninos e meninas que circulavam pela Cinelândia. Passou a gerenciar e dar proteção aos menores da área, que praticavam pequenos furtos, e às prostitutas. Não todas, mas um número sufi ciente para manter seu estilo de vida. Daqueles dois negócios, ele mesmo fazia a contabilidade, no que sempre fora bom. E havia seu sócio, Japa, um advogado alcoólatra tão inteligente quanto astucioso, que resolvia as dificuldades com a lei. Finalmente, uma rede de olheiros menores de idade funcionava como radares de curto alcance, mas bastante eficientes. Ratto nunca lidara com drogas e traficantes, que considerava gente muito violenta e com o inconveniente de atrair polícia. Tampouco fi zera uso de armas de fogo. Suas únicas armas eram a pequena estatura, os dentes afiados e a capacidade de desaparecer quase instantaneamente quando necessário.
As coisas caminhavam bem, sem maiores conflitos internos, até o dia em que a polícia notou o quanto ele e Japa prosperavam. Certa noite, sozinho em um beco escuro, sem possibilidades de pedir auxílio, Ratto foi abordado por um policial.
— Proxenetismo, aliciamento e corrupção de menores, formação de quadrilha. Você sabe o que isso significa, seu ratinho de merda? Você vai passar o resto da vida atrás das grades.
Ratto engoliu em seco e perguntou à voz miúda:
— O que nós podemos fazer para nada disso acontecer?
— Nós, não. Você. Te espero amanhã, nessa mesma hora, com cinquenta por cento da grana que tiraram no mês passado. Se eu perceber que estão tentando me enganar, vai ter sido a última vez.
Ratto não pretendia retornar na noite, tampouco podia continuar flanando na Cinelândia ou na Lapa. A única solução era sumir levando consigo parte do dinheiro arrecadado no mês anterior. A outra parte enfiou num envelope e entregou a Japa. A partir de então, tornou-se um fugitivo.
O dia já tinha clareado quando saiu do metrô na estação Siqueira Campos, em Copacabana. Como o rato que era, conhecia a geografia do bairro, não propriamente a da superfície e seus habitantes diurnos, mas a subterrânea e alguns dos seus roedores noturnos. Por precaução, e por medo do policial com sua turma, passou a se mover no verdadeiro submundo de Copacabana. O passo seguinte foi alugar um quartinho num hotel de quinta categoria na ladeira dos Tabajaras. O lugar era apertado: consistia em metade de um quarto, dividido por um tabique de compensado. Em cada lado cabia apenas uma cama de solteiro; debaixo dela, um baú com cadeado para guardar a roupa e os pertences do inquilino.
Passaram-se dois meses sem que tivesse notícia do policial. Achava que seu grupo não atuava na Zona Sul, área dos policiais mais protegidos. Felizmente, ainda não fora notado por nenhum deles. Durante o dia só andava vestido com macacão de funcionário da prefeitura. Seu medo era ser parado por uma viatura e algum dos guardas pedir a carteira de identidade. E claro que não tinha uma. Antes de se ocupar em arranjar uma nova, coisa que custava algum dinheiro, precisava ampliar sua equipe de trabalho. Já tinha duas mulheres naquela área, Sueli e Silvia. Elas cuidavam dele e ele cuidava delas. Mesmo esquema da Cinelândia. Os dois meses de hospedagem foram pagos adiantados e ele não passava fome. Ratto é assim, pensava.
Uma noite em que já tinha tirado o macacão, tomado banho e vestido o terno noturno, as duas meninas que trabalhavam com ele surgiram com uma terceira, também jovem. Era mais alta do que ele, o que não era raro, tinha o corpo bem-feito apesar de algumas marcas de percurso, e olhos atentos, expressivos e inteligentes. Sua voz era melodiosa.
— Muito prazer, seu Ratto.
— Minha querida, quem se chama Ratto não pode ter “seu”, “senhor” ou “doutor” antes do nome. Me chame de Ratto, só isso. E você, como te chamam?
— Rita.
— Bem-vinda ao time, Rita.
Quando já haviam se passado mais dois meses, quatro desde que saíra da Cinelândia, Ratto estava mais unido a Rita do que a Silvia e Sueli. Ela era observadora, estava sempre atenta a quem se aproximava, e tinha uma inteligência que o surpreendia. Sem que Ratto pedisse, ela começou a tomar conta de seu corpo e de seus afetos.
Ele queria levá-la para conhecer o Centro. Começava a sentir saudades da Cinelândia, da Lapa, dos amigos de que não havia tido tempo de se despedir. O policial, Ratto imaginava, continuaria tomando conta da área. Era onde conseguia dinheiro e alimentava sua fama de valente. Ratto acreditava que, se fosse pego por ele, duas coisas podiam acontecer: ou seu corpo amanheceria boiando na baía de Guanabara ou trancafiado numa cela depois de uma noite no hospital. Certeza mesmo só tinha de uma coisa: o policial não teria esquecido, e era fácil se lembrar de Ratto. Portanto, antes de arriscar a vida aparecendo na Cinelândia, o melhor que tinha a fazer era entrar em contato com Japa para saber como estavam as coisas por lá. Nos últimos meses, com a sociedade desfeita, haviam se falado muito pouco.
Na noite de quarta-feira, ele chegou à Lapa pela rua mais cheia de gente, vestido como um pobre qualquer. Parou em um velho orelhão cheio de adesivos com o número de prostitutas e ligou para Japa. Ninguém atendeu. Decidiu parar no bar que frequentavam e perguntar ao garçom onde poderia encontrá-lo.
— Pelo que dizem, só no cemitério.
— Matado?
— Parece que sim.
— Quem foi?
— Só ouvi que mataram. Como ou quem foi, não sei.
— Quando?
— Logo depois que você sumiu. Pensei que você também tivesse ido.
— Cuide para que os outros continuem pensando — Ratto disse. E tratou de desaparecer. Para não correr o risco de encontrar o policial, se era que ainda fi cava por lá, andou até a estação Glória em vez de pegar o metrô na Cinelândia. No Hotel Tabajara, se livrou da roupa, vestiu o macacão e fi cou esperando Rita voltar do trabalho. Ser prostituta, ele pensava, dependia de dois fatores: sorte e destreza em seduzir aqueles que se aventuravam a parar na avenida Atlântica para saber o preço do programa. Com o tempo, Ratto tinha aprendido a conviver com aquela espera cheia de conflitos. De vez em quando, lembrava-se de Japa, um cara bacana, inteligente e amigo. O fi lho da puta do policial não precisava ter matado o cara. Mas vida de bandido é isso mesmo, pensou. Daquela data em diante poderia ser morto sem nenhum aviso prévio. Seu rosto era facilmente reconhecível na multidão. Tinha que mudar de cidade, talvez ir para um lugar maior onde pudesse se perder. A poupança que mantinha com Japa na Caixa Econômica, e que agora era só dele, devia dar para recomeçar a vida em algum lugar onde não tivesse que viver escondido durante o dia e sair apenas à noite.
Na manhã seguinte, saiu para verificar como estava a conta. A agência fi cava na rua do Catete. Foi de banho tomado, terno limpo e passado, camisa social e gravata. No caixa eletrônico, tirou o cartão do bolso, conferiu a senha num pedacinho de papel que guardava dentro da carteira e escolheu no monitor as opções que lhe serviam. Não entendeu de imediato o que apareceu na tela. Retirou uma senha para ser atendido.
— O que o senhor deseja?
— Saber meu saldo.
O funcionário pegou o papel com o número, acessou a conta e disse:
— Seu saldo é zero, senhor. Sua conta-poupança foi fechada.
— Fechada? Nunca fechei conta nenhuma. Para onde foi meu dinheiro?
— É melhor o senhor falar com o gerente. Eu só oriento os clientes.
Embora se dirigisse a ele com delicadeza, o gerente não parecia considerar Ratto uma pessoa confiável. O máximo que conseguiu dizer depois de consultar o computador foi que sua conta estava zerada e que fora encerrada pelo titular.
— Senhor, o titular sou eu. Há anos que não retiro dinheiro dessa conta, só deposito todo mês.
— Se o senhor quiser, pode abrir outra conta em seu nome.
Sem dizer nenhuma palavra, Ratto levantou-se e caminhou em direção à saída.
Eram três horas da tarde e ele não tinha tomado café da manhã nem almoçado. No trajeto para a ladeira dos Tabajaras, passou por um bar com duas mesas na calçada e um quadro-negro pregado na parede anunciando lanches e pratos rápidos e saborosos: sanduíche de peito de peru assado, pernil de porco com abacaxi e omelete. Escolheu a mesa mais protegida e fez o pedido. Depois de comer, foi direto para o hotel. Rita estava deitada, mas acordada.
— E aí, como foi no banco?
— Tiraram todo o meu dinheiro. Minha conta está zerada e encerrada.
Ela ficou olhando com os olhos arregalados, que foram se enchendo de lágrimas.
— Só três pessoas sabiam do dinheiro, além de nós dois: Japa, a irmã dele e o policial. Um deles pode me dizer o que foi feito com a grana. Não comente isso com absolutamente ninguém. Nem com Sueli e Silvia. Vou me afastar por uns dias. Não se preocupe com o quarto, está pago. Deixei algum dinheiro para seu dia a dia, dentro da mochila. E preste atenção: qualquer problema com quem quer que seja, procure o delegado Espinosa na 12ª DP, a duas quadras daqui. Não se esqueça desse nome: Espinosa. Ele me conhece.
— Você vai sair hoje mesmo?
— Quanto antes, melhor. Não tente me procurar. Não vai funcionar e pode ser perigoso.
— E o que eu vou fazer?
— Você já faz bastante coisa. Não abuse. Você vai estar sozinha.
FIM DA AMOSTRA…