O narrador deste livro é nada menos do que um feto. Enclausurado na barriga da mãe, ele escuta os planos da progenitora para, em conluio com seu amante — que é também tio do bebê —, assassinar o marido. Apesar do eco evidente nas tragédias de Shakespeare, este livro de McEwan é uma joia do humor e da narrativa fantástica. Em sua aparente simplicidade, Enclausurado é uma amostra sintética e divertida do impressionante domínio narrativo de McEwan, um dos maiores escritores da atualidade.
Capa comum: 200 páginas Editora: Companhia das Letras; Edição: 1 (22 de setembro de 2016) Idioma: Português ISBN-10: 8535928014 ISBN-13: 978-8535928013 Dimensões do produto: 20,6 x 14 x 1,4 cm Peso de envio: 358 g
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Tradução
Jorio Dauster
1.
Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada. Agora, em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado noite e dia contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama sobre intenções letais e me sinto aterrorizado com o que me aguarda, pela encrenca em que posso me meter.
Estou mergulhado em abstrações, e só as crescentes relações entre elas criam a ilusão de um mundo conhecido. Quando ouço a palavra “azul”, que nunca vi, imagino um tipo de acontecimento mental muito próximo de “verde” — que também nunca vi. Considero‑me um inocente, descomprometido com lealdades e obrigações, um espírito livre, apesar do pouco espaço de que disponho. Ninguém para me contradizer ou repreender, sem nome nem endereço anterior, sem religião, sem dívidas, sem inimigos. Minha agenda, se existisse, registraria apenas meu futuro dia de nascimento. Sou, ou era, apesar do que dizem agora os geneticistas, uma lousa em branco. Mas uma lousa porosa e escorregadia, inútil para ser usada numa sala de aula ou no telhado de uma cabana, uma lousa que escreve por si mesma à medida que cresce a cada dia e se torna menos branca. Considero-me um inocente, mas tudo indica que participo de uma conspiração. Minha mãe, abençoado seja seu incansável e barulhento coração, parece estar envolvida.
Parece, Mãe? Não, está de fato. Você está. Está envolvida. Sei desde o meu começo. Deixe que eu o evoque, aquele momento de criação que chegou com meu primeiro pensamento. Faz muito tempo, muitas semanas atrás, meu circuito neural se fechou e se transformou em minha espinha, e meus muitos milhões de jovens neurônios, tão ativos quanto bichos de seda, fiaram e teceram, a partir de seus axônios em forma de cauda, o lindo tecido dourado da minha primeira ideia, uma noção tão simples que agora em parte me escapa. Era eu? Autoadmiração excessiva. Era agora? Dramática demais. Ou algo que antecedia ambas, continha ambas, uma só palavra acompanhada de um suspiro ou de um apagão mental de aceitação, de puramente ser, algo como — isto? Muito pedante. Por isso, chegando mais perto, minha ideia foi Ser. Ou, se não isso, sua variante gramatical, é. Esse foi meu conceito original, que tem na essência é. Apenas isso. Correspondendo a Es muss sein. O início da vida consciente foi o final da ilusão, a ilusão de não ser, e a erupção do real. O triunfo do realismo sobre a mágica, do é sobre o parece. Minha mãe está envolvida numa conspiração e, consequentemente, eu também estou, mesmo se meu papel consistir em fazê‑la fracassar. Ou, como um tolo relutante, se me demorar demais aqui, então o de ir à forra.
Mas não me queixo diante da boa fortuna. Eu sabia desde o início, ao desembrulhar de seu tecido dourado meu presente de consciência, que poderia ter chegado a um lugar pior e em momento bem pior. Os elementos gerais já são claros, fazendo com que meus problemas domésticos sejam, ou devessem ser, insignificantes. Há muito que comemorar. Herdarei condições modernas (higiene, férias, anestésicos, lâmpadas de leitura, laranjas no inverno) e habitarei um canto privilegiado do planeta — a Europa Ocidental, bem alimentada e livre de pragas. A Velha Europa, esclerosada, relativamente bondosa, atormentada por seus fantasmas, vulnerável aos agressores, insegura de si mesma, destino preferido de milhões de infelizes. Minha vizinhança não será a próspera Noruega — minha primeira escolha por causa de seu gigantesco fundo soberano e generoso sistema de amparo social; nem minha segunda, a Itália, por causa da culinária local e da decadência ensolarada; nem mesmo minha terceira, a França, devido a seu pinot noir e jovial amor‑próprio. Em vez disso, herdarei um reino em nada unido governado por uma rainha idosa e reverenciada, onde um príncipe que é também um homem de negócios, famoso por suas boas ações, seus elixires (essência de couve‑flor para purificar o sangue) e intromissões inconstitucionais, aguarda com impaciência a coroa. Esse será meu lar, e vai dar para o gasto. Eu poderia ter vindo ao mundo na Coreia do Norte, onde a sucessão também é garantida, mas onde faltam liberdade e alimentos.
Como é que eu, nem mesmo jovem, nem mesmo nascido ontem, posso saber tanto ou saber o suficiente para estar errado sobre tantas coisas? Tenho minhas fontes, eu escuto. Minha mãe, Trudy, quando não está com seu amigo Claude, gosta de ouvir rádio e prefere programas de entrevistas a música. Quem, com o surgimento da internet, teria previsto o crescimento continuado do rádio ou o renascimento daquela expressão arcaica, “sem fio”? Acima da barulheira de máquina de lavar roupa que fazem estômago e intestinos, acompanho as notícias, origem de todos os pesadelos. Movido por uma compulsão que me faz mal, ouço com atenção as análises e os debates. As repetições de hora em hora e os resumos regulares a cada meia hora não me aborrecem. Tolero até o Serviço Mundial da bbc e as fanfarras pueris de clarins eletrônicos e xilofone que separam cada notícia. No meio de uma noite longa e serena, posso sapecar um bom pontapé em minha mãe. Ela acorda, perde o sono, liga o rádio. Uma maldade, eu sei, mas estamos os dois bem informados de manhã.
E ela gosta de áudios de palestras e livros de autoajuda — Conheça seu vinho em quinze partes —, biografias de dramaturgos do século XVII e de várias obras clássicas. O Ulisses de James Joyce a faz dormir, enquanto a mim entusiasma. Quando, nos primeiros dias, ela punha os fones de ouvido, eu ouvia claramente devido à eficiência com que as ondas sonoras viajam através do maxilar e da clavícula, descendo pela estrutura óssea e atravessando velozmente o nutritivo líquido amniótico. Até mesmo a televisão transmite a maior parte de sua escassa utilidade por meio de sons. Além disso, quando minha mãe e Claude se encontram, eles às vezes discutem a situação do mundo, em geral em tom de lamentação, embora planejem torná‑lo ainda pior. Alojado onde estou, sem nada para fazer a não ser crescer meu corpo e minha mente, absorvo tudo, até mesmo as idiotices — que é o que não falta.
Porque Claude é um homem que gosta de se repetir. Um homem de reiterações. Ao apertar a mão de um desconhecido — ouvi isto duas vezes —, ele dirá: “Claude, como o Debussy”. Não podia estar mais errado. Esse é Claude, um incorporador de imóveis que não compõe nada, que não inventa nada. Ele aprecia uma ideia, a enuncia em voz alta, depois a repete e — por que não? — a enuncia mais uma vez. Fazer o ar vibrar uma segunda vez com seu pensamento é parte inseparável de seu prazer. Ele sabe que você sabe que ele está se repetindo. O que ele não sabe é que você não aprecia isso tanto quanto ele. Aprendi numa palestra da série Reith que isso se chama uma questão de referência.
Aqui está um exemplo tanto dos discursos de Claude e de como coleto informações. Ele e minha mãe combinaram por telefone (ouço as duas partes) se encontrarem à noite. Não me levando em consideração, como de hábito — um jantar à luz de velas para dois. Como sei sobre a iluminação? Porque, ao serem levados a seus lugares, ouço minha mãe reclamar que as velas estão acesas em todas as mesas menos na deles. Segue‑se um arquejo irritado de Claude, um estalar imperioso de dedos secos, uma espécie de murmúrio obsequioso, assim imagino, de um garçom curvado sobre a mesa, o raspar de um isqueiro sendo aceso. É o que eles desejam, um jantar à luz de velas. Só falta a comida. Mas eles têm no colo os pesados cardápios — sinto a borda inferior do cardápio de Trudy pressionando a parte de baixo de minhas costas. Agora sou obrigado a ouvir mais uma vez a dissertação de Claude sobre itens do menu, como se ele fosse a primeira pessoa a notar aqueles absurdos insignificantes. Demora‑se nos comentários sobre “fritado na frigideira”. De que serve a menção a frigideira senão para tapear o cliente sobre o fato de que se trata de uma corriqueira e pouco salutar fritura? Onde mais seria possível preparar vieiras com pimenta e suco de limão? Num timer de cozinha? Antes de seguir adiante, ele repete isso com variações de ênfase. Depois, seu outro item predileto, uma importação americana, “cortada à faca”. Começo a recitar silenciosamente seus comentários antes mesmo que ele os faça, quando uma ligeira alteração em minha orientação vertical me diz que minha mãe está se inclinando para a frente a fim de pousar um dedo sobre o pulso dele e fazê‑lo parar, enquanto, com voz doce, pede: “Escolha o vinho, querido. Um magnífico”.
Gosto de compartilhar uma taça com minha mãe. Você talvez nunca tenha experimentado, ou já terá esquecido, um bom Borgonha (o preferido dela) ou um bom Sancerre (também seu preferido) decantado através de uma placenta saudável. Antes mesmo que o vinho chegue — nessa noite um Jean‑Max Roger Sancerre —, ao som da rolha ser retirada eu o sinto no rosto como a carícia de uma brisa de verão. Sei que o álcool reduzirá minha inteligência. Reduz a inteligência de todo mundo. Mas, ah, um pinot noir alegre e rosado ou um Sauvignon com toques de groselha me fazem dar saltos e cambalhotas em meu mar secreto, ricocheteando nas paredes de meu castelo, desse castelo elástico que é meu lar. Ou assim era quando eu tinha mais espaço. Agora usufruo meus prazeres de forma tranquila, e na segunda taça minhas especulações florescem com aquela liberdade chamada poesia. Meus pensamentos se desdobram em bem torneados pentâmetros, com as frases cabendo em cada verso ou transbordando para o verso seguinte a fim de oferecer uma variedade agradável. Mas ela nunca toma uma terceira taça, o que me deixa furioso.
“Preciso pensar no bebê”, ouço‑a dizer enquanto cobre a taça com uma mão puritana. É quando sinto vontade de pegar meu cordão oleoso, como se fosse um cordão de veludo de uma mansão campestre com muitos criados, e puxar com força para ser servido. Vamos lá! Mais uma rodada para os amigos!
Mas não, ela se contém por me amar. E eu a amo — como poderia não amá‑la? A mãe que ainda vou encontrar, que só conheço por dentro. Não basta! Quero ver a parte de fora. As superfícies são tudo. Sei que tem cabelo louro, “cor de palha clara”, que cai em “cachos revoltos” até seus “ombros brancos como a polpa de uma maçã”, porque meu pai leu para ela, na minha presença, um poema dele que dizia isso. Claude também se referiu ao cabelo dela, mas de forma menos engenhosa. Quando ela está disposta, faz tranças bem apertadas em volta da cabeça, segundo meu pai no estilo Yulia Tymoshenko. Também sei que minha mãe tem olhos verdes, que seu nariz “é um botão de madrepérola”, que ela gostaria que ele fosse maior, que os dois homens o adoram do jeito que ele é e que tentaram convencê‑la disso. Ela já escutou muitas vezes que é bonita, mas continua cética, o que lhe confere um poder inocente sobre os homens, como meu pai lhe disse uma tarde na biblioteca. Ela respondeu que, se aquilo era verdade, era um poder que ela jamais buscara e que não desejava ter. Essa foi uma conversa incomum entre eles, e ouvi com muita atenção. Meu pai, que se chama John, disse que, se tivesse tal poder sobre ela ou sobre as mulheres em geral, não se imaginaria abrindo mão dele. Com base no movimento ondular que por um instante afastou meu ouvido da parede, deduzi que ela reagira com um enfático dar de ombros, como se dissesse que os homens eram mesmo diferentes. E daí? Além do mais, ela disse a ele em voz alta, o poder que ela supostamente tinha era apenas o que os homens lhe atribuíam em suas fantasias. Então o telefone tocou, meu pai se afastou para ir atender, e essa conversa rara e interessante sobre as pessoas que têm poder jamais foi retomada.
Mas voltemos à minha mãe, à minha infiel Trudy, cujos braços e seios cor da polpa de maçã e olhos verdes desejo profundamente conhecer, cuja inexplicável necessidade de Claude antecede meu primeiro clarão de consciência, meu primordial ser, e que frequentemente fala com ele, e ele com ela, em sussurros na cama, em sussurros nos restaurantes, em sussurros na cozinha, como se ambos suspeitassem de que úteros têm ouvidos.
Eu costumava pensar que a discrição deles se devia apenas à natural intimidade amorosa. Mas agora tenho certeza. Eles evitam usar suas cordas vocais porque estão planejando um acontecimento tétrico. Se der errado, eu os ouvi dizer, suas vidas estarão arruinadas. Acreditam que, se vão seguir em frente, devem agir depressa, logo. Dizem um ao outro para serem calmos e pacientes, lembram um ao outro do custo que o fracasso do plano representaria, de que há várias etapas, que uma deve estar ligada à anterior, que se uma única falhar todas falharão “como lâmpadas velhas de árvores de Natal” — comparação incompreensível feita por Claude, que raramente diz alguma coisa obscura. O que eles pretendem fazer os repugna e amedronta, e nunca falam da coisa diretamente. Em vez disso, envoltos em sussurros, trocam elipses, eufemismos, aporias, depois dão tossidinhas e mudam de assunto.
Numa noite quente e irrequieta da semana passada, quando achei que os dois dormiam havia muito tempo, minha mãe disse de repente na escuridão, duas horas antes de o sol nascer de acordo com o relógio do escritório de meu pai no andar de baixo, “Não podemos fazer isso”.
E de pronto Claude disse num tom de voz normal: “Podemos”. E depois de um instante de reflexão: “Podemos, sim”.
2.
Vejamos agora meu pai, John Cairncross, um homenzarrão, a outra metade de meu genoma, cujas voltas helicoidais do destino me interessam grandemente. É só em mim que meus pais se unem, doce, acremente, ao longo de estruturas separadas de açúcar e fosfato, a receita para a essência de quem eu sou. Também uno John e Trudy em meus devaneios — como toda criança com pais separados, desejo muito fazer com que voltem a se casar, formando aquele par básico em que meu genoma estará projetado nas circunstâncias externas.
Meu pai vem até nossa casa de tempos em tempos, o que me deixa muito feliz. Às vezes traz para ela vitaminas de frutas de sua loja preferida na Judd Street. Ele tem um fraco por essas bebidas viscosas que supostamente garantem uma vida mais longa. Não sei por que vem nos ver, pois sempre vai embora em meio a nuvens de infelicidade. Várias das minhas conjecturas se comprovaram erradas no passado, mas escuto com atenção e agora deduzo o seguinte: ele não sabe nada de Claude, continua amando minha mãe loucamente, tem a esperança de que voltem a ficar juntos em breve, ainda crê na história contada por ela de que a separação tem por objetivo dar a cada um deles “tempo e espaço para crescerem” e renovarem seus laços. Que ele é um poeta sem renome e, no entanto, persiste. Que é o proprietário e gerente de uma editora paupérrima que publicou as primeiras coletâneas de poetas de sucesso e grande fama, até mesmo um ganhador do prêmio Nobel. Quando a reputação deles cresce, eles vão embora como filhos adultos que se mudam para casas maiores. Que ele aceita a deslealdade dos poetas como um fato da vida e, como um santo, se deleita com os elogios de quem reconhece os serviços prestados pela Cairncross Press. Que seu fracasso na poesia o entristece mais que o amargura. Uma vez ele leu em voz alta para Trudy e para mim uma resenha crítica de seus versos, onde se dizia que seus poemas eram antiquados, excessivamente formais e demasiado “bonitos”. Mas ele vive para a poesia, ainda recita versos para minha mãe, dá aulas sobre o assunto, escreve resenhas, conspira a favor do progresso de poetas mais jovens, participa de comissões que concedem prêmios, promove a poesia em escolas, escreve ensaios para revistas menores, já falou do assunto no rádio. Trudy e eu o ouvimos uma vez de madrugada. Ele tem menos dinheiro que Trudy e muito menos que Claude. Sabe de cor mil poemas.
Essa é a minha coleção de fatos e postulados. Curvado sobre eles como um pacato filatelista, acrescentei outros itens a meu álbum. Ele sofre de um problema de pele, psoríase, que cria escamas duras e vermelhas em suas mãos. Trudy odeia a aparência dessas escamas e qualquer contato com elas, dizendo que meu pai deveria usar luvas. Ele se recusa. Alugou por seis meses um apartamento ordinário de três cômodos em Shoreditch, está endividado e acima do peso, deveria se exercitar mais. Ontem mesmo adquiri um selo muito raro, com carimbo e tudo: a casa em que minha mãe mora, e eu dentro dela, a casa que Claude visita todas as noites, é uma ruína georgiana no elegantíssimo Hamilton Terrace e onde meu pai passou a infância. Com quase trinta anos e ao deixar crescer a barba pela primeira vez, não muito depois de se casar com minha mãe, ele herdou da família essa mansão. Sua querida mãe tinha morrido fazia muito tempo. Todos concordam que a casa é uma pocilga. Só clichês podem descrevê‑la: paredes prestes a desabar, pintura descascando, tudo caindo aos pedaços. No inverno, as cortinas às vezes ficam congeladas; quando chove muito, os canos, como bancos honestos, devolvem com juros tudo que receberam; no verão, como bancos desonestos, fedem. Mas, veja, aqui na minha pinça tenho o selo mais raro do mundo: mesmo podre como está, este imóvel infecto de quinhentos e sessenta metros quadrados vale sete milhões de libras esterlinas.
A maioria dos homens, das pessoas, nunca permitiria que um cônjuge as expulsasse da casa onde foram criadas. John Cairncross é diferente. Eis aqui minhas deduções razoáveis. Nascido sob a influência de um planeta prestativo, desejoso de agradar, bom demais, sério demais, ele nada tem da serena cobiça dos poetas ambiciosos. Realmente crê que escrever um poema louvando minha mãe (seus olhos, cabelo, lábios) e vir lê‑lo em voz alta para agradá‑la o torna bem‑vindo em sua própria casa. Mas ela sabe que seus olhos nada têm a ver com “a grama de Galway” (que ele acredita “muito verde”) e, como ele não tem sangue irlandês, o verso é anêmico. Sempre que ela e eu o escutamos, sinto em seu coração de batimentos cada vez mais lentos um véu de enfado impedi‑la de ver o que há de patético na cena — um homem grande e de grande coração lutando por uma causa sem esperança com uma arma tão fora de moda como um soneto.
Mil talvez seja exagero. Muitos poemas que meu pai sabe de cor são longos, como aquelas famosas criações de bancários, A cremação de Sam McGee e A terra devastada. Trudy continua a tolerar recitações ocasionais. Para ela, um monólogo é melhor que uma troca de palavras, preferível a mais um passeio pelo jardim cheio de ervas daninhas do casamento deles. Talvez ela o suporte por um sentimento de culpa ou pelo que resta dele. Meu pai recitar poesia para ela parece ter sido parte de um ritual do relacionamento amoroso deles. Estranho que Trudy não consiga lhe dizer o que ele já deve suspeitar, o que ela com certeza lhe revelará. Que não o ama mais. Que tem um amante.
Hoje, no rádio, uma mulher contou que atropelou um cachorro, um golden retriever, à noite, numa estrada deserta. Sob a luz dos faróis, agachou‑se ao lado dele, segurando a pata do animal que agonizava em espasmos de dor e medo. Grandes olhos castanhos lançavam‑lhe olhares de perdão o tempo todo. Com a mão livre, ela pegou uma pedra e atingiu várias vezes o crânio do pobre cão. Para se livrar de John Cairncross bastaria um único golpe, um coup de vérité. Em vez disso, quando ele começa a recitar, Trudy assume seu jeito afável de ouvir. Eu, contudo, escuto com atenção.
Geralmente vamos à biblioteca de poesia de meu pai no térreo. Sobre o console da lareira, um relógio com um balancim ruidoso emite o único som enquanto ele ocupa sua cadeira de sempre. Aqui, na presença de um poeta, permito que minhas conjecturas floresçam. Caso meu pai olhe para cima a fim de organizar os pensamentos, verá a deterioração dos adornos no teto. O estrago espalhou uma camada fina de gesso, como açúcar de confeiteiro, sobre a lombada de livros famosos. Minha mãe limpa sua cadeira com a mão antes de sentar. Sem floreios, meu pai respira fundo e começa. Recita com fluência, sem sentimento. A maioria dos poemas modernos não me mobiliza. Muito sobre o próprio autor, absoluta frieza com relação aos outros, queixas em demasia em versos curtos. Mas John Keats e Wilfred Owen são como abraçar um irmão, sinto em meus lábios a respiração deles. O beijo deles. Quem não gostaria de ter escrito “doce de maçã, marmelo, ameixa e abóbora” ou “as testas pálidas das moças serão suas mortalhas”?
Eu a visualizo do outro lado da biblioteca pelos olhos daquele que a adora. Ela está sentada numa poltrona enorme de couro que data dos tempos de Freud em Viena. A maior parte de suas pernas delgadas e sem meia está lindamente do‑ brada sob o corpo. Um cotovelo se firma no braço da poltrona a fim de apoiar a cabeça inclinada, os dedos da mão livre tamborilam de leve no tornozelo. Faz calor no fim de tarde, as janelas estão abertas, o tráfego de St. John’s Wood emite um zumbido ameno. A expressão dela é pensativa, o lábio inferior parece pesado. Ela o umedece com uma língua perfeita. Alguns poucos cachos dourados e ligeiramente molhados de suor colam‑se ao pescoço. O vestido de algodão, suficiente‑ mente largo para me conter, é verde‑claro, mais claro que seus olhos. A gravidez segue seu curso e ela está cansada, mas de uma forma branda. John Cairncross nota o rubor de verão em sua face, a encantadora linha do pescoço e do ombro, os seios intumescidos, o montinho esperançoso que sou eu, os tornozelos pálidos que não apanham sol, a sola sem rugas de um pé exposto, sua fileira de dedos inocentes que vão diminuindo de tamanho como crianças numa foto de família. Tudo nela, ele pensa, tornado perfeito por seu estado. Ele não consegue entender que ela está esperando que ele vá embora. Que é perverso, da parte dela, insistir que ele more em outro lugar agora que a gravidez está no terceiro tri‑ mestre. Será que ele pode ser tão cúmplice de seu próprio aniquilamento? Um sujeito tão grande, pelo que ouvi dizer de um metro e noventa, um gigante com pelos negros e abundantes nos braços poderosos, um bobalhão gigantesco que acredita que é sábio oferecer à sua mulher o “espaço” que ela diz necessitar. Espaço! Ela devia é vir aqui dentro, onde ultimamente mal consigo dobrar um dedo. No linguajar de minha mãe, espaço, sua necessidade de espaço, é uma metáfora retorcida, se não um sinônimo, de ser egoísta, malvada, cruel. Mas, espere, eu a amo, ela é a minha divindade e preciso dela. Retiro tudo o que disse! Falei por me sentir angustiado. Estou tão iludido quanto meu pai. É verdade. Sua beleza, distanciamento e determinação são inseparáveis. Acima dela, tal como o vejo, o teto em decomposição da biblioteca lança de repente uma nuvem de partículas que giram e reluzem ao atravessar um feixe de luz do sol. E como minha mãe também reluz em contraste com o couro marrom cheio de estrias na poltrona onde Hitler, Trótski ou Stálin poderiam ter se refestelado em seus dias vienenses, quando não passavam de embriões das pessoas que viriam a ser, eu entrego os pontos. Pertenço a ela. Se me ordenasse, eu também iria para Shoreditch lamber minhas feridas no exílio. Nenhuma necessidade de cordão umbilical. Meu pai e eu estamos juntos num amor sem esperança.
Apesar de todas as sinalizações — respostas bruscas, bocejos, desatenção geral —, ele vai ficando até o começo da noite, na expectativa de, quem sabe, jantar. Mas minha mãe está à espera de Claude. Por fim enxota o marido declarando que precisa descansar. Leva‑o até a porta. Quem poderia ignorar a tristeza na voz dele ao fazer seus ensaios de despedida! Me dói pensar que ele se sujeita a qualquer humilhação a fim de passar mais alguns minutos na presença dela. Nada, exceto seu temperamento, o impede de fazer o que outros fariam — caminhar à frente dela até o quarto principal, ao cômodo onde ele e eu fomos concebidos, espichar‑se na cama ou na banheira em meio a nuvens desafiadoras de vapor, depois convidar alguns amigos, servir vinho, ser o dono de sua casa. Em vez disso, espera obter sucesso usando de bondade, se anulando e se mostrando sensível às necessidades dela. Espero estar errado, mas acho que vai fracassar duplamente, porque ela continuará a desprezá‑lo por sua fraqueza, e ele vai sofrer ainda mais do que devia. Suas visitas não terminam, elas se extinguem aos poucos. Ele deixa na biblioteca um campo vibrante de desconsolo, uma forma imaginada, um holograma de desapontamento ocupando a cadeira.
Agora estamos chegando à porta da frente enquanto ela o conduz para fora da casa. Toda essa deterioração foi discutida muitas vezes. Sei que uma dobradiça dessa porta se despregou do batente de madeira. Os carunchos transformaram a arquitrave em poeira compacta. Alguns ladrilhos do assoalho se foram, outros estão rachados — em estilo georgiano, um padrão colorido em forma de diamante, impossível de ser substituído. Ocultando essas ausências e rachaduras, sacos plásticos com garrafas vazias e comida apodrecendo. Espalhados pelo chão, os emblemas da sujeira doméstica: guimbas de cigarro, pratos de papel com ferimentos horríveis de ketchup, saquinhos balouçantes de chá parecendo sacas de cereais que camundongos ou gnomos poderiam entesourar. Trudy sabe que não compete a uma grávida levar o lixo para as latas grandes e altas de rodinhas. Poderia perfeitamente pedir a meu pai que limpasse o vestíbulo, mas não faz isso. Tarefas domésticas poderiam conferir direitos à casa. E ela é bem capaz de estar arquitetando uma história esperta sobre ter sido abandonada. Nesse sentido, Claude continua sendo um visitante, alguém de fora, mas o ouvi dizer que arrumar um canto da casa tornaria mais visível o caos no resto. Apesar da onda de calor, estou bem protegido do mau cheiro. Minha mãe reclama dele quase todo dia, mas sem vigor. Trata‑se apenas de um aspecto da decadência da casa.
Talvez ela ache que uma porção de iogurte no sapato dele ou a visão de uma laranja coberta de lanugem cor de cobalto junto ao rodapé possam abreviar as despedidas de meu pai. Ela se engana. A porta está aberta, ele na soleira, ela e eu no vestíbulo. Claude deve chegar dentro de quinze minutos. Às vezes vem mais cedo. Por isso Trudy está agitada, mas decidida a parecer sonolenta. Está pisando em ovos. Um pedaço quadrado de papel gorduroso, que no passado embrulhou um tablete de manteiga sem sal comprado no campo, ficou preso debaixo da sandália dela e lambuzou seus dedos do pé. Ela em breve contará isso a Claude de maneira divertida.
Meu pai diz: “Olha, precisamos realmente conversar”.
“Tudo bem, mas não agora.”
“Ficamos sempre adiando.”
“Impossível explicar como estou cansada. Você não faz ideia do que é. Preciso mesmo me deitar.”
“Claro. Por isso é que estou pensando em voltar para cá, assim posso…”
“Por favor, John, agora não. Já falamos sobre isso. Preciso de mais tempo. Tente ter mais consideração. Estou carregando seu filho, lembra? Esse não é o momento de pensar em si mesmo.”
“Não gosto de saber que você está aqui sozinha quando eu poderia…”
“John!”
Ouço o suspiro dele enquanto lhe dá um abraço tão apertado quanto ela permite. Em seguida, sinto o braço dela se estender para pegar o pulso de John, evitando cuidadosamente, assim imagino, suas mãos detestáveis, fazê‑lo se virar e, com doçura, empurrá‑lo em direção à rua. “Querido, por favor, agora vá embora…”
Mais tarde, enquanto minha mãe se reclina, irritada e exausta, eu mergulho em especulações filosóficas. Que tipo de pessoa é ele? Será que o grande John Cairncross é nosso emissário para o futuro, o tipo de homem que acaba com as guerras, com a pilhagem e a escravidão, que se põe em pé de igualdade com as mulheres do mundo e cuida delas? Ou ele será esmagado pelos bárbaros? Vamos descobrir.