Trecho do livro
Para Nancy van Goethen e Larry Joseph
Nota da Autora
Embora haja inúmeros elementos histórica e geograficamente fiéis neste retrato das Cataratas do Niágara, Nova York, deve ser destacado que a cidade e seus arredorres, na forma que ganharam aqui, são ficcionais.
Especialmente as menções a pessoas reais, vivas e mortas, são mera coincidência.
PARTE I
LUA-DE-MEL
O testemunho do guarda dos portões: 12 de junho de 1950
NA OCASIÃO UM DESCONHECIDO, anônimo, o indivíduo que haveria de se atirar nas Cataratas da Ferradura surgiu diante do guarda dos portões da Ponte Suspensa da ilha Goat aproximadamente às 6h15 da manhã. Seria o primeiro a atravessá-la naquele dia.
Na hora, eu poderia ter adivinhado? Não, acho que não. Mas, olhando para trás, agora, sim, deveria ter adivinhado. E, se tivesse adivinhado, poderia tê-lo salvado.
Tão cedo ainda! Pela hora, devia estar clareando, não fosse por aquelas muralhas de névoa, neblina e respingos, que se erguiam em vagas constantes do Desfiladeiro do Niágara, obscurecendo o sol. Deveria ser o começo do verão, mas, nas cercanias das Cataratas, o ar estava agitado e tão úmido e cortante como farpas de aço penetrando nos pulmões.
O guarda dos portões supôs que aquele indivíduo estranhamente apressado e distraído tivesse atravessado diretamente o Prospect Park, proveniente de um dos antigos e imponentes hotéis na rua Prospect. O guarda dos portões observou que o indivíduo tinha um “rosto contraído, jovem-envelhecido”, “uma pele de cera, como de uma boneca”, “olhos fundos, um pouco parados demais”. Seus óculos de aro lhe davam um ar de menino impaciente. Com cerca de um metro e oitenta, era magro, de fato muito magro, “os ombros ligeiramente curvos, como se tivesse passado a vida debruçado sobre uma escrivaninha”. Andava apressado, sem hesitação, embora sem também ver direito para onde ia, como se alguém estivesse chamando seu nome. Vestia roupas conservadoras, sóbrias, nada parecido a um típico turista das Cataratas do Niágara. Uma camisa social branca de algodão, com colarinho aberto, um paletó preto aberto e calças com um zíper emperrado, semi-aberto, “como se o pobre sujeito tivesse se vestido às pressas, no escuro”. Calçava sapatos sociais, de couro preto, bem engraxados, “do tipo que se usam em casamentos ou em enterros”, mas seus tornozelos reluziam, numa tonalidade pálida como cera, sem meias.
Sem meias! Com sapatos elegantes como aqueles! Um desperdício.
O guarda dos portões o chamou:
— Ei!
Mas o homem o ignorou. Não estava apenas cego, mas surdo também. Ou pelo menos não estava escutando nada. Dava para ver que sua mente estava fixada como uma bomba prestes a explodir: tinha que chegar a algum lugar, e depressa.
Aumentando o volume da voz, o guarda dos portões o chamou de novo:
— Ei, senhor! A entrada custa cinqüenta centavos.
Mas, novamente, o homem não deu sinal de estar escutando. Na arrogância de seu desespero, parecia não ver nem mesmo a cabine de venda de entradas. Estava praticamente correndo, agora, sem muita elegância, e com o corpo meio desequilibrado, como se a ponte suspensa estivesse balançando sob ele. A ponte estava a uma altura de cerca de um metro e meio da correnteza esbranquiçada e o chão de tábuas estava úmido, perigoso; o homem se agarrou à balaustrada para manter o equilíbrio e continuou avançando. Seus sapatos de solas finas escorregaram. Não estava acostumado a exercícios físicos. Seus óculos redondos e brilhantes deslizaram pelo seu rosto e teriam caído se ele não os tivesse firmado no alto do nariz. Seus cabelos sem brilho, mais ralos no cocuruto cor de cera, caíam em pálidas e molhadas mechas em volta do seu rosto.
A essa altura, o guarda dos portões já se resolvera a sair da cabine de venda de entradas para ir atrás daquele homem perturbado.
— Ei, senhor! — chamou. — Senhor, pare!
Já tinha testemunhado suicídios. E mais vezes do que gostaria de lembrar. Era um veterano de trinta e cinco anos de trabalho no atendimento a turistas nas Cataratas. Tinha sessenta e poucos anos, não seria capaz de alcançar aquele jovem.
— Senhor — implorou. — Não! Que diabo, por favor, não faça isso ! Devia ter telefonado imediatamente para a emergência, lá na cabine. Mas, agora, era tarde demais para voltar.
Já na ilha Goat, o homem não se deteve junto à balaustrada para olhar, do outro lado do rio, a margem canadense, nem se deteve para contemplar a paisagem extraordinariamente turbulenta em volta, como todo turista normal. Não se deteve sequer para enxugar o rosto molhado, nem para afastar dos olhos os cabelos desalinhados. Está enfeitiçado pelas Cataratas. Nenhuma criatura mortal conseguiria detê-lo.
Mas, é preciso fazer alguma coisa, ou pelo menos tentar. Não se pode deixar um homem, nem uma mulher, cometer suicídio, o pecado sem perdão, e ficar olhando parado.
O guarda dos portões, já sem fôlego, zonzo, perseguiu claudicando o homem mais jovem, chamando-o aos gritos, no que ele já se encaminhava inapelavelmente para o extremo sul da pequena ilha, Terrapin Point, acima das Cataratas da Ferradura. Era o mais perigoso lado da ilha Goat, assim como o mais lindo e enfeitiçante. Ali, as correntezas entram em frêmito. Águas espumantes, ferventes, se projetam a uma altura de quase cinco metros. O caos dos pesadelos. As Cataratas da Ferradura são uma queda gigantesca de mais de oitocentos metros, desde a crista, três mil toneladas de água por segundo, despencando no desfiladeiro. O ar ruge, estremece. O chão chacoalha sob os pés. É como se a própria terra estivesse começando a se partir, desintegrando-se em partículas, rachando até o seu núcleo fundido. Como se o tempo tivesse parado. Como se o tempo tivesse explodido. Como se alguém tivesse se aproximado demais do radiante, retumbante e enlouquecido coração de toda a Criação. Ali, suas veias, artérias, a minuciosa precisão e perfeição de seus nervos serão rompidas em um instante. Seu cérebro, lá onde você habita, aquele repositório único do que é você será triturado até se reduzir a seus componentes químicos: células cerebrais, moléculas, átomos. Todo vestígio e eco de lembranças é eliminado.
Serão essas as promessas das Cataratas? O segredo?
Como se estivéssemos enjoados de nós mesmos. A humanidade. É aqui a saída, e apenas uns poucos têm a visão.
A trinta metros do jovem, o guarda dos portões o viu colocar um pé sobre a trave mais baixa da balaustrada. Um pé hesitante, no escorregadio ferro batido. Mas as mãos do homem se agarraram à trave mais alta, ambos os punhos, bem apertados.
— Não faça isso! Ei, senhor! Que diabo…!
As palavras do guarda dos portões foram abafadas pelas Cataratas. Voaram de volta contra seu rosto como saliva enregelada.
Ele próprio já a ponto de desmaiar. Esse seria seu último verão na ilha Goat. Seu coração doía, batendo a toda para enviar oxigênio para o cérebro. E seus pulmões doíam, não apenas por causa dos borrifos cortantes elevando-se do rio, mas por conta do estranho gosto metálico do ar da cidade industrial que se espalhava a norte e a leste das Cataratas na qual o guarda dos portões vivera a vida inteira. A pessoa fica exaurida. Vê coisas demais. Respirar dói.
Posteriormente, o guarda dos portões juraria ter visto o homem mais jovem acenar se despedindo, um instante antes de pular: um aceno debochado, um aceno desafiador, como acenaria um menino atrevido para alguém mais velho, para provocá-lo; e ainda assim um adeus, sim, um gesto que se faria para um estranho, uma testemunha a quem não se desejasse mal nenhum, a quem se desejaria absolver do menor resquício de culpa que esse alguém poderia sentir por deixá-lo morrer, quando se poderia tê-lo salvado.
E, no instante seguinte, o homem mais jovem, que até então estivera absorvendo toda a atenção do guarda dos portões, simplesmente havia… sumido.
Num piscar de olhos, sumido. Nas Cataratas da Ferradura.
Não foi o primeiro desses pobres desgraçados que vi fazer isso, mas Deus queira que tenha sido o último.
Quando o arrasado guarda dos portões retornou à sua cabine para telefonar para o Serviço de Emergência do condado de Niágara, eram 6h20, aproximadamente uma hora depois do amanhecer.