“Como encarar a vida sob a perspectiva dos filósofos gregos? E se lançássemos mão da sabedoria dos antigos para encarar a vida com mais leveza? E se escolhêssemos ter Pitágoras e Parmênides, Epiteto e Pirro, Epicuro e Diógenes como mestres? Em Lições de felicidade, Ilaria Gaspari, pensadora sutil e original, combina o rigor da pesquisa filosófica com a intuição do dado empírico, análise e síntese, mostrando que, como faziam os gregos antigos, é possível curar-se com a filosofia. Essa disciplina, muito longe de ser apenas um estudo teórico, estático e sem vida, se revela sabedoria prática que, cultivada dia após dia, é capaz de transformar. Com maestria e naturalidade, a autora adentra questões debatidas há milênios, aprofundando o não dito que se lê além dos enunciados, mostrando que sob a superfície sempre há outras camadas. Durante uma viagem de seis semanas, cada uma seguindo os preceitos de diferentes escolas filosóficas da Grécia…
Editora: Editora Âyiné; 1ª edição (26 novembro 2020); Páginas: 210 páginas; ISBN-10: 6586683483; ISBN-13: 978-6586683486; ASIN: B08P29JH5G
Leia trecho do livro
A FELICIDADE DOS ANTIGOS
É vão o discurso do filósofo que não
cura algum mal do espírito humano.
Epicuro
Houve um tempo em que o mundo era muito mais jovem; a filosofia, então, era uma invenção novinha em folha nas mãos do primeiro dos Sete Sábios, o protofilósofo Tales.
Diz a lenda que certa noite, enquanto perambulava com os olhos fixos nas estrelas, sem se importar com o chão onde pisava, Tales tropeçou e caiu em um poço. Infelizmente, andava ali por perto uma criada trácia: viu-o revirado de pernas para o ar e, em vez de oferecer-lhe ajuda, pôs-se a rir dele, que se ocupava tanto de conhecer as coisas do céu, mas não enxergava o que estava à sua frente. Esse apólogo tão espirituoso — com a sua ilusão de lua no poço, a comicidade involuntária do filósofo distraído, a sagacidade da menina — fez, ao longo dos séculos, grande sucesso: não se perde uma oportunidade de contá-lo quando se pensa em Tales, e muitas vezes é usado para reivindicar a superioridade do senso prático e concreto sobre as quimeras da especulação pura.
Mas quem acredita ter encontrado na anedota um bom motivo para zombar dos filósofos e sugerir a inutilidade de suas divagações, faria bem em voltar ao momento em que a historieta surge na forma tal como a conhecemos, com Tales e a menina desempenhando seus papéis, respectivamente, do professor distraído e da figura simplória porém dotada de sólido bom senso. Acontece no Teeteto, diálogo platônico que se refere a uma conversa entre Sócrates — é ele quem conta o infortúnio do sábio no poço, retomando o tema de uma fábula de Esopo, em que quem tropeçava era um astrônomo vaidoso — e o jovem matemático Teeteto.
A conversa, segundo o contexto do diálogo revela, aconteceu alguns anos antes, durante a vigília da morte de Sócrates. E esse é um detalhe importante: porque sabemos todos — nós o sabemos, hoje, mas sabiam-no melhor ainda os atenienses de então — como Sócrates teria sido morto: na prisão, por decreto do bom e velho bom senso de seus concidadãos, que não queriam mais saber daquele excêntrico encantador e de sua filosofia, e temiam que ela corrompesse seus jovenzinhos enfiando-lhes estranhas minhocas na cabeça.
Iluminada pelo presságio tétrico da morte anunciada na narrativa em abismo do diálogo, a figura do filósofo ridicularizado funde-se com a do filósofo assassinado. Para Sócrates, de fato, o escárnio dos que não souberam (ou não quiseram) entender o significado das investigações que ele conduzia, perscrutando as coisas do mundo em busca da verdade, ganhou uma nota atroz: não é tão óbvio assim — insinua Platão, confiando a si próprio a tarefa de contar a história de Tales — que as serviçais da Trácia tenham sempre razão.
Muitas vezes, no entanto, e sobretudo em períodos de transformação e de crises como os que estamos vivendo, a voz do bom senso ergue o tom e se acha no direito de dizer que a filosofia é perfeitamente inútil, mania de vetustos professores distraídos que tropeçam no primeiro obstáculo: por que então devemos estudá-la, se não serve para nada?
Contudo, seria melhor observar os gregos antigos: pois, para eles — e nisso são muito mais modernos do que nós —, não deveria existir hiato entre especulação e vida. A seus olhos, a oposição entre teoria e práxis filosófica era realmente tênue. E a ambição principal do filósofo não era alinhavar sistemas, nem especular abstratamente: como disse no século III a.C. o platônico Polemon, era sobre as «coisas da vida» que deveríamos nos debruçar. A filosofia era então em primeiro lugar uma escolha, uma maneira de viver, e era de fato praticada nas escolas: e as escolas — que floresceram durante toda a época helenística, conhecendo um enorme sucesso em tempos semelhantes ao nosso sob muitos aspectos, tempos de transformação e de crises, e de busca ansiosa pela felicidade — não eram lugares onde se estudava e pronto. Eram verdadeiras comunidades, associações livres cujos discípulos se reuniam em torno de um mestre que não falava para construir instantaneamente estruturas conceituais mirabolantes, mas para formá-los.
Nas escolas, compartilhavam-se tempo e hábitos e vivia-se uma vida comum no respeito às normas e aos ensinamentos transmitidos pelo mestre. Em suas orientações gerais, nos seus princípios, como escreveu Pierre Hadot, «todas as escolas filosóficas da Antiguidade recusaram-se a considerar a atividade filosófica puramente intelectual, puramente teórica e formal, entendendo-a, ao contrário, como uma escolha que compreendia toda uma vida e o espírito em sua totalidade». A filosofia não era um puro exercício especulativo, mas um engajamento espiritual.
A filosofia das escolas era, acima de tudo, uma arte de viver; um treinamento severo destinado não apenas a estimular a inteligência do discípulo, mas a transformar a sua existência por meio de uma série de regras, de pensamento e de vida Tais regras dão forma a uma sabedoria que não se põe jamais como alternativa à felicidade; em vez disso, principalmente nas escolas nascidas no cerne do pensamento socrático, realiza-se justamente na vida feliz do sábio.
A felicidade dos antigos (εὐδαιμονία: composta por “eu” ‘bom’ e “daimōn” ‘espírito’) é um destino feliz que se nos constrói devido à justa postura do corpo e da mente; e é uma forma quase heroica de fidelidade a si mesmo, de dedicação à própria vocação natural — que é, justamente, a de ser feliz. É um exercício de liberdade, não apenas pelas ironias do destino, pela originalidade em relação à opinião dos outros ou pelas peças que a sorte nos prega, mas também e principalmente por nós mesmos; por causa do automatismo dos hábitos, das reações imediatas que nos transformam em fantoches à mercê de um sistema de crenças aceito irrefletidamente. Por isso, as regras das escolas estabelecem uma progressão de exercícios que exigem que quem as cumpre coloque continuamente em discussão a própria disposição interior — e, também, a exterior.
Tais escolas estão todas fechadas agora, e já há muito tempo. Séculos. Da vida inimaginável que se devia viver no Jardim de Epicuro, ou sob o pórtico pintado da Stoá, não nos resta nada além de fósseis esparsos, fragmentos de textos que superaram a passagem do tempo para nos trazer vestígios das vozes de mestres cujas imagens estão envoltas por uma aura lendária.
Hoje as escolas os estudam, e a filologia nos oferece instrumentos inestimáveis para indagarmos seus segredos, auscultar os documentos que restam, reconstruir por meio de conjecturas o que se fez invisível. Podemos estudá-los, podemos discutir as contradições no seio das várias doutrinas, procurar as raízes de normas e tabus; podemos cravar os olhos nos testemunhos como Tales cravava os olhos no céu e na lua. Ou podemos olhar para cima também nós e pensar que a luz daquela estrela que vemos agora devia já estar em viagem para nos encontrar enquanto Sócrates, perto de morrer, falava da criada trácia, e até mesmo quando Pitágoras proibia energicamente seus discípulos de tocar em carne ou em favas. Podemos pensar que existiram de verdade tais mestres de filosofia e seus alunos, e que eram homens (e, de vez em quando, muito raramente, mulheres) como nós. E se eles forjaram usos e costumes a partir das regras das escolas que frequentavam, se empreenderam rigorosos exercícios espirituais em busca de alcançar a felicidade de que ainda — e sempre — falamos tanto, se aprenderam a viver a partir de seus mestres, por que hoje, distantes quase anos-luz, não podemos realizar essa tentativa também nós? Que desperdício seria desprezar aquele patrimônio de sabedoria prática! Ainda bem que ninguém nos proíbe de fazer matrícula em algumas dessas escolas, as que mais nos atraem, em um exercício de alegre diletantismo, em um experimento existencial e filosófico livre de pretensões filológicas, mas sério, a seu modo, como é sério tudo aquilo que nos impulsiona a revolver perspectivas, embaralhar as cartas, inverter pontos de referência.
E se também terminarmos no poço, de pernas para o ar, paciência. Ouviremos os passantes rirem; e a quem nos disser que a filosofia não serve para nada, responderemos que, ao contrário, serve sim, e como, para aprender a viver. E quem sabe riremos também nós, às gargalhadas, como aconteceu com o filósofo estoico Crísipo de Solis, que literalmente morreu de tanto rir enquanto via seu burro comer figos e tomar vinho.
CONHECE-TE A TI MESMO
Quando é noite, olho as luzes acesas nas casas dos outros. Na frente tem o quarto de dois menininhos, irmãos que brigam e lutam enquadrados pela janela; às vezes, em vez disso, fazem as tarefas nas escrivaninhas, mas dura sempre pouco, porque logo começam a se estapear de novo. À direita do quarto deles, a janela seguinte é de uma sala de estar; grandes estantes nas paredes, luminárias de chão, muitos quadros, uma Ficus benjamina que precisaria ser regada: a cada noite eu conto uma folha a menos, agora ela está quase nua. Em cima da sala há uma cozinha, é o lar de um casal de velhinhos; a luz fria e clara demais reflete nos móveis espartanos, de rádica, que parecem estar vivendo naquela cozinha já há uns bons anos. Jantam às dezenove e trinta, todo santo dia, e ele fica de costas para a janela; ela o serve e, quando terminam, por volta das dezenove e cinquenta, é ele quem lava a louça. Ela permanece sentada à mesa e sabe-se lá o que contam um ao outro. Pela primeira vez me pego pensando que, da casa em frente, também eles — os irmãos, a mãe deles que acende a luz da sala de estar, os velhinhos — podem ver as minhas janelas iluminadas; mas será a última noite que verão esta casa como é agora, como sempre foi desde que moro aqui.
Amanhã os livros da estante terão desaparecido, engolidos pelas caixas de papelão que já estão na entrada, só esperando para serem preenchidas. Nesta casa muito amada, onde conheço o lugar de cada coisa porque fui eu que pensei nele e o encontrei, de repente me sinto como se estivesse dentro de um teatro, sozinha — o outro ator foi embora; a ultimíssima apresentação de um espetáculo que foi aos palcos durante dez anos, sem nenhum espectador.
Tenho pouco mais de uma semana para deixar a casa.
Li isso em algum lugar, sabe-se lá onde (até achei que fosse um exagero): as mudanças seriam, junto com lutos e divórcios, os momentos mais traumáticos na vida de uma pessoa. Acontecimentos psicossociais estressantes, dizia o artigo; podem causar cansaço, ansiedade, depressão. Eu tinha achado graça e dito a mim mesma, pousando a revista na mesinha: quanta história! Que mal faria uma mudancinha?, eu pensava, satisfeita como um gato aconchegado diante de um aquecedor.
Então eis que me encontro aqui, a medir minha vida em volume de caixas de papelão: não há mais nada de exagerado nas conclusões daquela pesquisa, na lista esfíngica de episódios desconcertantes, que eu havia subestimado e quase esquecido.
Sou feliz?, pergunto a mim mesma enquanto tiro um quadro da parede e me lembro de quando colocamos o prego, rindo e brigando só de brincadeira porque havíamos errado as medidas. Sou feliz?, pergunto-me ainda, e parece uma pergunta estúpida em um momento assim. A vida em frangalhos, a casa que, com tanta paciência, tentamos tornar parecida com a casa que tínhamos na cabeça, desmontada agora de pedacinho em pedacinho — é claro que estou tudo, menos feliz. Mas, como acontece muitas vezes quando nos perguntamos algo e respondemos precipitadamente, a primeira resposta não é nunca a verdadeira. Ou melhor: não a única.
Estou desesperada, como qualquer pessoa que é abandonada sem mais nem menos, depois de dez anos de amor — além de tudo, com a incumbência de se mudar porque o aluguel de repente ficou caro demais. Essa mudança é uma violência; apesar disso, alguma coisa está acontecendo em mim. É um rasgo, mas como o de um céu de papel machê que se rasga em um teatrinho de fantoche: atrás do cenário eu vejo o céu, o de verdade.
Pela primeira vez depois de muito tempo, reencontro a sensação amarga da liberdade, enquanto tudo desaba e se dispersa. Talvez seja o momento para pensar em uma maneira de ser feliz.
Qualquer um que tenha vivido, uma vez na vida, a experiência inebriante da mudança, sabe: começa-se sempre pelos livros. Aos olhos dos empacotadores, que estão ali prestes a carregar meses, anos, décadas inteiras de vida no refúgio provisório das caixas de papelão, a biblioteca, com as suas enganadoras filas compactas de paralelepípedos regulares, parece uma radiante miragem. Nos raros (mas não impossíveis) casos de bom humor na mudança, a biblioteca é a imagem perfeita, a ilustração concreta daquilo que o inconsciente otimista vai repetindo desde quando decidiu, ou descobriu, que precisava mudar de casa: vai ser fácil. Antes que você perceba estará tudo embalado. Mesmo nos momentos em que prevalecem niilismo, desânimo, preguiça, ansiedade diante das caixas, a biblioteca parecerá uma tábua de salvação: se embalar as outras coisas da casa sugere contorcionismos e desafios à la Tetris, a biblioteca é o exercício fácil, a parte veloz a ser encarada como um aquecimento para as tarefas ingratas que virão em seguida.
Claro, é um erro. As bibliotecas obedecem a misteriosas leis entrópicas, segundo as quais os livros se multiplicam mal entram nas caixas. Mas a mudança começa sempre por elas; e talvez não só porque pareça mais fácil assim. O fato é que esvaziar uma biblioteca é como tornar-se de improviso arqueólogo de si mesmo. A cada nova estante levanta-se o pó de meses, semanas, anos, tardes — fases da vida que desde sabe-se lá quanto tempo não voltavam aos pensamentos e às recordações. Mas, tomando na mão os livros, o passado vem à tona de súbito, de imediato, intacto como uma relíquia.
Biografia do autor: LARIA GASPARI, filósofa e escritora,estudou Filosofia na Escola NormalSuperior de Pisa e é doutora pelaUniversidade de Paris I PanthéonSorbonne. Em 2015, publicou seu primeiro romance na Itália, Etica dell’acquario, e em 2018, Ragioni e sentimenti,um conto filosófico sobre o amor.É colaboradora de várias revistas eministra cursos de escrita criativa naScuola Holden.