Trecho do livro
O celular atravessou a janela desenhando um arco perfeito no ar até que a força da gravidade o fez despencar e eu corri para observar a sua trajetória em declínio. Talvez naquele segundo tenha batido o arrependimento de jogar meu único aparelho pelo nono andar do prédio, mas na hora que li a mensagem me pareceu a coisa mais sensata a fazer. A raiva foi extravasada com um grito para que todos os meus vizinhos escutassem, um sonoro:
— Foda-se!
No mesmo instante, Sabrina abriu a porta do apartamento e me flagrou num momento de total descontrole. Joguei-me de bunda no chão, batendo a cabeça contra a parede e fechando os olhos para não deixar que as lágrimas escapassem. Não adiantou nada, elas foram derramadas mesmo assim porque eu não conseguia controlar minhas emoções.
— O que está acontecendo, Lia?
Minha vida estava acontecendo, só isso. Porque eu vivia uma droga de comédia romântica, só que daquele tipo horroroso onde tudo dá errado para a mocinha. Tudo mesmo. O papo fantasioso de que uma mulher normal podia andar tranquilamente pela rua e esbarrar na alma gêmea — que por sinal teria um carro conversível, um sorriso perfeito, o queixo do Henry Cavill e a conta bancária de um sheik de Dubai — tomava a vida amorosa de qualquer uma muito complicada. Por que diabos os autores insistiam em fazer parecer tão fácil? Como se fosse muito simples encontrar o homem dos sonhos dando mole por aí, estando solteiro, sem ser cafajeste e que nos trate como as princesas que somos.
— Ei! Lia! — Minha irmã sacudiu meus ombros e eu abri os olhos para vê-la agachada diante de mim. — O que houve?
— Acabei de jogar meu iPhone pela janela.
Não era o modelo mais atual, mas eu ainda estava pagando a quinta parcela… de doze. Sabrina ficou de pé num piscar de olhos e se debruçou no parapeito como se realmente desse para conferir o que eu tinha acabado de dizer.
— Você ficou louca? — perguntou, afastando-se e me encarando com as mãos na cintura. — Sério, o que está acontecendo?
— O Rafael terminou comigo — confessei de uma vez só e depois suspirei, deixando as mãos caírem em meu colo. — Por mensagem. Mensagem, Bri. E ainda acho que logo em seguida ele me bloqueou, porque a foto dele no Whatsapp sumiu.
— Que filho da mãe! — Ela se sentou de frente para mim e puxou minhas mãos. — Sinto muito, nenê. Mas olha, você sabe que eu nunca gostei dele, não é? Tenho certeza que vai aparecer alguém muito melhor.
Estava demorando, o discurso que todo mundo escuta quando leva um pé na bunda e tudo bem, eu não me importaria de ouvir tais palavras motivadoras, se não fosse por um detalhe:
— Bri, eu fiz sexo com ele.
Minha irmã abriu a boca e congelou aquele movimento pelos segundos que se passaram, deixando toda a situação ainda mais triste. Seus olhos arregalados não aliviavam em nada a sensação abafada em meu peito, mas engoli o choro porque se desabasse agora, não ia parar de chorar tão cedo.
— Lia… — Ela me abraçou ao se inclinar e eu permiti que me consolasse.
— Que merda… Minha irmã era a certinha da família, nunca falava palavrão e para isso acontecer, era porque eu estava mesmo na merda. Sinceramente, eu não sabia qual era o meu problema e por que eu tinha nascido com esse dedo podre para escolher namorados. Estava considerando começar a me interessar por garotas para ver se minha vida amorosa dava uma repaginada. Do jeito que estava, não tinha como continuar.
Eu me achava bonita. Nada absurdamente deslumbrante, mas bonita sim. Tinha um rosto com traços delicados e olhos verdes, todo mundo que me conhecia dizia que eu pareceria com uma bonequinha… Se não fossem meus dois piercings no nariz, um no lábio e outros pelo corpo. No auge da minha adolescência, quando comecei a ficar caidinha por garotos do colégio, pensava que aos vinte e um anos estaria namorando o homem com quem me casaria. Mas então comecei a perceber que eu não precisava ser como as outras garotas e que teriam que gostar de mim do jeito que eu era, ou seja, nada convencional. Pelo menos, em isso que os livros que eu consumia me faziam pensar e talvez eu devesse considerar também atear fogo em todos eles.
Tudo mentira. Baboseira. Ilusão para idiotas como eu. Afinal, eu cheguei aos vinte e um, com um total de dois namoros fracassados e nenhuma previsão de casamento, nem pernas bambas, nem choque elétrico percorrendo meu corpo. Ah, e muito menos um homem com um mastro de vinte e um centímetros se declarando para mim e dizendo que minha Annabelle era a coisa mais linda que ele já tinha visto na vida. E por falar em Annabelle, eu quero dizer… ah, você sabe. Não precisamos tornar esse momento ainda mais constrangedor.
Àquela altura Sabrina me encarava como se eu fosse digna de pena. E eu devia mesmo ser.
— Que tal um chocolate quente? — perguntou, se levantando e me puxando junto. — Posso preparar em alguns minutinhos enquanto a gente conversa sobre isso.
— Está fazendo uns quarenta e cinco graus hoje — resmunguei, sentando-me no sofá. Não tinha energia para ficar de pé. — Acho que prefiro sorvete.
Deitei ao comprido no sofá e fechei os olhos, puxando uma das almofadas para colocar embaixo da minha cabeça e tentar ficar um pouco mais confortável enquanto sofria. Não pense que eu faço o tipo mulher dramática que passa a vida se lamentando por tudo, não sou assim. Só estava muito decepcionada com o caminhar das coisas, com a inércia da minha vida amorosa, que pelo visto, não teria futuro nenhum. E não venha me dizer que eu sou muito nova ainda, que só tenho vinte e um anos. Eram vinte e um anos de decepções amorosas, uma atrás da outra.
— O que aconteceu com aquele discurso sobre esperar para transar e tal?
— Eu esperei! — respondi, quase voltando a choramingar. — Por três meses, Bri! O que mais queria que eu fizesse? Também não sou de ferro! Não vou esperar até o casamento para transar com alguém.
Também não sou ninfomaníaca, ok? Posso viver perfeitamente sem sexo, mas a partir do momento em que se tem um namorado e as coisas começam a esquentar, não dá para simplesmente fingir que não existe um fogo subindo pelo corpo.
Minha irmã gostava de sustentar a teoria idiota de que mulher que transa logo de cara não é valorizada e toda aquela ladainha que a gente conhece. Eu não concordava com seu ponto de vista, mas depois de ter perdido a virgindade com meu primeiro namorado, duas semanas depois que ele me pediu em namoro, para levar um pé na bunda após três dias, resolvi seguir o conselho dela. Fernando não só tinha tirado meu lacre, como também me traiu com uma vizinha nossa, a vaca da Laryssa.
Demorei a confiar novamente nos homens e me permitir estar mais uma vez em um relacionamento, mas aí conheci Rafael na noite de Ano Novo e pronto, ele me conquistou. Saímos algumas vezes e logo começamos a namorar, eu sempre escapando das investidas dele quando ficávamos a sós em seu quarto. Achei que três meses em um bom tempo para testar a paciência dele e ter a certeza de que estava comigo realmente porque me amava.
— Lia, por acaso, assim, só por acaso mesmo, você se fantasiou? — Sabrina estava parada na frente do fogão, mordendo
uma cenoura.
— Eu não uso fantasias, sabe muito bem disso. — Ficava irritada quando rotulavam meus looks especiais. — Usei uma roupinha mais dark… Nada muito exagerado.
— Ah, lia!
Eu me sentei no sofá e apertei a almofada entre os dedos, querendo que ela se transformasse no pescoço de Rafael. Minha irmã tapou o rosto com as mãos e quando voltou a me olhar, estava claro que tentava segurar o riso.
— O que você usou?
— Eu comprei um espartilho de couro e usei com uma meia-arrastão muito linda, Bri, com estampa de caveirinhas. mas não acho que tenha sido nada disso e sim o batom preto. O Rafael nunca curtiu aquele batom…
— Você foi transar de batom preto?
Sabrina apoiou as mãos no encosto de uma cadeira, deixando seu queixo quase cair no chão e me encarando como se eu fosse um monstro.
— Quer saber? Não interessa — respondi. — Podemos nos concentrar na parte em que meu coração foi dilacerado?
— Você o amava?
Boa pergunta. Eu gostava muito da companhia dele porque nossos gostos eram parecidos demais. A gente curtia os mesmos filmes e seriados, gostávamos de ler e eu adorava o fato de que ele não tinha vergonha de me levar para sair com seus amigos igualmente nerds. Eu me sentia à vontade com Rafael. Mas amor…
— Ainda não — respondi. — Mas…
— Então vai superar fácil. Sinto muito que tenha se entregado mais uma vez a quem não a merece, mas uma hora o cara certo vai aparecer — tranquilizou-me, sentando no braço do sofá e apertando minha mão. — Mas Lia, não vista suas roupas góticas na hora de ter um momento mais… íntimo… com alguém. É estranho.
— Estranho? — questionei, sentindo-me afrontada. — Estranho? O Rafael é estranho por natureza. Ele coleciona miniaturas do Pokémon e dorme numa cama de solteiro com lençol e fronha do Naruto. Aos vinte e quatro anos!
Minha irmã fez uma careta e eu me levantei, lembrando que precisava ir resgatar os pedaços do meu telefone, afinal, ainda podia aproveitar o chip. Se ele estivesse lá.
— Credo, Lia, você nunca me contou isso. Vocês transaram em cima do Naruto?
— Sim. — Fechei os olhos, decepcionada. — Mas sabe qual foi a pior parte? Eu estava quase chegando lá, quando o Bulbasaur caiu da prateleira e o Rafa levantou da cama para colocá-lo no lugar.
— Não! — Sabrina tapou a boca.
— Agora eu vou descer e tentar recolher meu orgulho que se jogou do nono andar.
Bati a porta e saí do apartamento para ir apertar o botão do elevador, mas quando ele chegou ao meu andar, vi minha inimiga número um sair do apartamento dela lá do outro lado do corredor. Chupei meu dedo do meio antes de mostrá-lo a ela e depois repeti o processo com a outra mão.
— Segura o elevador, Magnólia!
— Nunca.
Estuprei o botão para acelerar o fechamento das portas e sorri quando a caixa metálica começou a se mover apenas comigo dentro. Minha irmã, que era uma pessoa com um coração muito maior que o meu, dizia que eu precisava perdoar Laryssa, afinal, ela também tinha sido traída por Fernando com seis meses de namoro. Por mim, podia morrer na miséria e nunca mais gozar na vida, pois foi exatamente a praga que joguei em cima dela.