Uma releitura corajosa e atual da trajetória de Circe, a poderosa – e incompreendida – feiticeira da Odisseia de Homero #1 do The New York Times, ganhador do Goodreads Awards de a melhor fantasia de 2018 Na casa do grande Hélio, divindade do Sol e o mais poderoso da raça dos titãs, nasce uma menina. Circe é uma garotinha estranha: não parece ter herdado uma fração sequer do enorme poder de seu pai, muito menos da beleza estonteante de sua mãe, a ninfa Perseis. Deslocada entre deuses e seus pares, os titãs, Circe procura companhia no mundo dos homens, onde enfim descobre possuir o poder da feitiçaria, sendo capaz de transformar...
Editora: Planeta Minotauro; 2ª edição (18 dezembro 2020) Capa comum: 16 páginas ISBN-10: 6555352353 ISBN-13: 978-6555352351 Dimensões: 16 x 2 x 23 cm
Leia trecho do livro
Capítulo 1
Quando nasci, o nome para o que eu era não existia. Chamavam-me de ninfa, supondo que eu seria como minha mãe e tias e milhares de primas. Menores entre as deusas menores, nossos poderes eram tão modestos que mal asseguravam nossa eternidade. Falávamos com peixes e nutríamos flores, extraíamos gotas das nuvens ou sal das ondas. Essa palavra, ninfa, marcava a extensão e a amplitude de nosso futuro. Em nossa língua, significa não apenas deusa, mas também noiva.
Minha mãe era uma delas, uma náiade, guardiã de fontes e riachos. Ela atraiu o olhar de meu pai quando ele visitou os salões do pai dela, Oceano. Hélio e Oceano frequentemente partilhavam da mesa um do outro naqueles tempos. Eram primos, iguais em idade, embora não parecessem. Meu pai brilhava tão forte quanto bronze recém-forjado, enquanto Oceano nascera com olhos reumáticos e uma barba branca que descia até o colo. Mas ambos eram titãs, e preferiam a companhia um do outro aos guinchos daqueles novos deuses no Olimpo, que não tinham visto a criação do mundo.
O palácio de Oceano era uma maravilha, instalado profundamente na terra. Seus salões com altas abóbadas eram revestidos de ouro, com os pisos de pedra alisados por séculos de pés divinos. Por todo cômodo corria o som baixo do rio de Oceano, a fonte das águas doces do mundo, tão escuro que era impossível dizer onde ele acabava e onde começava o leito de rochas. Em suas margens cresciam gramíneas e flores cinza delicadas, além de um sem-número de rebentos de Oceano, náiades e ninfas e deuses fluviais. Luzidios como lontras, risonhos, com o rosto vívido no ar fosco, eles passavam cálices dourados entre si e brincavam de luta, fazendo jogos de amor. Em meio a eles, superando toda aquela beleza imaculada, sentava-se minha mãe.
Seu cabelo era de um castanho caloroso, cada mecha tão lustrosa que parecia aquecida por dentro. Ela teria sentido o olhar de meu pai, tão quente quanto as baforadas de uma fogueira. Posso vê-la arrumando o vestido de modo que caia do jeito certo sobre os ombros. Posso vê-la molhando os dedos rutilantes na água. Eu a vi fazer mil truques como esses mil vezes. Meu pai sempre caía neles. Ele acreditava que a ordem natural do mundo era agradá-lo.
— Quem é aquela? — meu pai perguntou a Oceano.
Oceano já tinha muitos netos com os olhos dourados de meu pai, e ficou contente em imaginar outros.
— Minha filha, Perseis. É sua, se a quiser.
No dia seguinte, meu pai a encontrou ao lado de sua lagoa no mundo superior. Era um lugar lindo, repleto de narcisos de bulbos gordos entrelaçados com galhos de carvalho. Não havia lama, nenhum sapo pegajoso, apenas pedras limpas e redondas que davam lugar à grama. Até meu pai, que não ligava para as sutilezas das artes das ninfas, o admirou.
Minha mãe sabia que ele estava vindo. Ela podia ser frágil, mas era engenhosa e tinha a mente como uma enguia de dentes afiados. Via por onde passava o caminho ao poder para alguém como ela, e não era parindo bastardos e rolando à margem de rios. Quando ele se pôs diante dela, em toda a sua glória, ela riu dele. Deitar-me com você? Por que deveria?
Meu pai, é claro, poderia ter tomado o que queria. Mas Hélio se gabava por todas as mulheres irem avidamente à sua cama, tanto escravas como divindades. Seus altares ardiam com a prova, oferendas de mães de barriga redonda e seus subprodutos felizes.
— É casamento — ela disse — ou nada. E, se for casamento, não tenha dúvida: pode ter quantas garotas quiser no campo, mas não trará nenhuma para casa, pois somente eu terei poder em seus salões.
Condições, restrições. Essas coisas eram novidade para meu pai, e os deuses amavam a novidade mais que tudo.
— Uma barganha — ele disse, e deu-lhe um colar para selar o acordo, feito por suas próprias mãos, do qual pendiam contas do âmbar mais raro. Mais tarde, quando eu nasci, ele deu a ela um segundo colar, e outro para cada um dos meus três irmãos. Não sei o que ela prezava mais: as contas luminosas em si ou a inveja de suas irmãs quando as usava. Acho que ela teria continuado a colecioná-las por toda a eternidade, até que pendessem do seu pescoço como um jugo de boi, se os altos deuses não a tivessem impedido. Àquela altura, eles tinham descoberto o que nós quatro éramos. Você pode ter outros filhos, disseram a ela, mas não com ele. Porém, outros maridos não davam contas de âmbar. Foi a única vez que eu a vi chorar.
Quando nasci, uma tia — vou poupá-lo, leitor, do seu nome, pois meu conto é cheio de tias — me lavou e enrolou em panos. Outra cuidou de minha mãe, pintando o vermelho de volta em seus lábios e escovando seu cabelo com pentes de marfim. Uma terceira foi abrir a porta para meu pai.
— Uma menina — minha mãe disse a ele, torcendo o nariz.
Mas meu pai não se importava em ter filhas que tinham um temperamento doce e eram douradas como o primeiro óleo prensado de azeitonas. Homens e deuses pagavam caro pela chance de procriar do sangue delas, e dizia-se que as posses de meu pai rivalizavam com as do rei dos deuses. Ele apoiou a mão na minha cabeça em bênção.
— Ela fará um belo casamento — ele disse.
— Quão belo? — minha mãe quis saber. Podia ser um consolo, se eu pudesse ser trocada por algo melhor. Meu pai considerou, tocando os cachos do meu cabelo, examinando meus olhos e o talhe das minhas bochechas.
— Um príncipe, creio.
— Um príncipe? — minha mãe perguntou. — Está falando de um mortal?
O asco estava claro em seu rosto. Uma vez, quando eu era jovem, perguntei como eram os mortais. Meu pai disse: Podemos dizer que são formados como nós, mas apenas do jeito como a minhoca é formada como a baleia. Minha mãe tinha sido mais direta: são como bolsas selvagens de pele podre.
— Certamente ela vai se casar com um filho de Zeus — minha mãe insistiu. Ela já se imaginava em banquetes no Olimpo, sentada à direita da rainha Hera.
— Não. O cabelo dela é listrado como um lince. E seu queixo é agudo, de um modo não muito agradável.
Minha mãe não discutiu mais. Como todos, ela conhecia as histórias do temperamento de Hélio quando era contrariado. Por mais dourado que brilhe, não se esqueça do seu fogo.
Ela se ergueu. Sua barriga tinha sumido, sua cintura se tornado fina novamente, suas faces estavam revigoradas e com um rubor virginal. Todo nosso povo se recupera rapidamente, mas ela era ainda mais rápida, uma das filhas de Oceano, que atiravam seus bebês ao mundo como se expelem ovas ao mar.
— Venha — ela disse. — Vamos fazer um melhor.