Um relato impressionante do envolvimento do poder público nos grandes esquemas de corrupção do país. No aniversário de cinco anos da Operação Lava Jato, Jorge Pontes e Márcio Anselmo, delegados que atuaram em diferentes momentos da Polícia Federal, narram, a partir de suas experiências pessoais e profissionais, como a corrupção se infiltrou nas instituições brasileiras, tornando-se sistêmica. A Lava Jato impactou o Brasil, abalando tanto a classe política quanto a empresarial. Ela levou à prisão importantes figuras públicas e revelou, de forma inédita, a abrangência da ilegalidade no sistema. Pela primeira vez, a população brasileira tomou conhecimento de como acontecem as negociatas por baixo dos panos nas altas-rodas do governo. Em Crime.gov , os autores descrevem uma nova modalidade de crime, que há décadas está entranhada nos três poderes mas que só recentemente passou a ser enxergada com clareza: o crime institucionalizado…
Editora: Objetiva; 1ª edição (29 março 2019) Páginas: 256 páginas; ISBN-10: 8547000763; ISBN-13: 978-8547000769; ASIN: B07N74RXM9
Leia trecho do livro
Para Lilibeth, minha inspiração
Jorge Pontes
Às minhas avós, Carmela (in memoriam)
e Orlanda (in memoriam)
Márcio Alselmo
Sumário
Prefácio: A naturalização das coisas erradas — Luis Roberto Barroso
1 A prisão de Marcelo Odebrecht
2. Do tráfico de drogas aos crimes ambientais
3. O embrião da Lava Jato
4. Os diferentes focos da Polícia Federal
5. Do crime organizado ao institucionalizado
6. Um dia incomum: a investigação sobre Lula
7. Capitalismo à brasileira
8. Joias, bicheiros e cheques frios — os desmandos estaduais
9. Os obstáculos ao trabalho da Polícia Federal
10. As indicações políticas
11. O atual papel da Polícia Federal
12. Proposições para o futuro
Posfácio- A história de um avião
Agradecimentos
Notas
Sobre os autores
Créditos
A naturalização das coisas erradas
O difícil desmonte do crime institucionalizado no Brasil
Luís Roberto Barroso
O livro que tenho o prazer de prefaciar foi escrito por delegados da Polícia Federal responsáveis por operações que mudaram a realidade brasileira no combate à corrupção. Ao concluir a leitura, o leitor terá tomado um banho de história recente do Brasil, e sairá com uma sensação que combina desalento e esperança. Desalento pela incorreção atavicamente entranhada nas elites dirigentes brasileiras. E esperança porque, quando se colocam as pessoas certas no lugar certo, o país se liberta de muitos dos estigmas do passado e avança na direção do destino que lhe cabe. A sensação de sermos cronicamente conduzidos pelos piores cede lugar à crença de que há bons em toda parte, e que tudo é uma questão de conseguirem prevalecer.
Jorge Pontes, carioca do Jardim Botânico, ingressou na PF no fim da década de 1990, iniciando sua atuação no combate ao tráfico de drogas na Amazônia. Ainda como agente, formou-se na academia do FBI, em Quântico, e especializou-se em justiça criminal pela Universidade de Virgínia. Como delegado, exerceu, entre outras funções, os cargos de superintendente em Pernambuco, de chefe da PF brasileira em Paris e de chefe da Interpol no Brasil. Foi ainda — e isso lhe é motivo de particular (e justificado) orgulho — o principal responsável pela instalação de delegacias especializadas na repressão aos crimes contra o meio ambiente no país. Márcio Anselmo, paranaense de Cambé, ingressou na PF no início dos anos 2000, e atuou na repressão ao tráfico de drogas, próximo à fronteira com o Paraguai. Dedicado à formação acadêmica, obteve o titulo de mestre em direito internacional econômico pela Universidade Católica de Brasilia e de doutor em direito internacional pela faculdade de direito da Universidade de São Paulo. Foi um dos principais responsáveis pela Operação Lava Jato, que desvelou o maior esquema de corrupção institucionalizada já visto no mundo. Jorge e Márcio fazem parte, apesar da diferença de idade, de uma mesma geração de policiais federais vocacionados e extremamente preparados tecnicamente, que estão promovendo uma revolução duradoura no país.
As histórias contadas neste livro são testemunho vivo de que o setor público não está necessariamente ligado a filas, atrasos, burocracia e ineficiência. E de que, com trabalho sério e persistência, é possível, mesmo dentro de estruturas públicas engessadas e burocráticas, promover significativas mudanças para um país melhor.
A CORRUPÇÃO NO BRASIL ATUAL
A corrupção no Brasil não foi produto de falhas individuais ou pequenas fraquezas humanas. O que se viu foi uma corrupção estrutural e sistêmica, com um espantoso arco de alianças que incluiu empresas privadas, estatais, empresários, servidores públicos, partidos políticos (de todas as cores), membros do Executivo e do Legislativo. Foram esquemas profissionais de arrecadação e de distribuição de dinheiro público desviado. Como tenho dito, é impossível não sentir vergonha do que aconteceu entre nós. Esses esquemas se transformaram no modo natural de se fazer política e negócios no país. A corrupção generalizada, no topo da pirâmide política, foi produto de um pacto oligárquico celebrado por parte da classe política, parte da classe empresarial e parte da burocracia estatal para saque do Estado e, em última análise, da sociedade e do povo. O Estado brasileiro é um Estado apropriado privadamente.
Nos últimos tempos, houve uma expressiva reação da sociedade, que despertou de longa letargia. Aonde se vai no Brasil hoje se vê uma imensa demanda por integridade, por idealismo e por patriotismo. E essa é a energia que muda paradigmas e empurra a história. A reação da sociedade impulsionou importantes mudanças de atitude que alcançaram as instituições, a legislação e a jurisprudência. Merecem destaque a possibilidade de execução da pena após condenação em segundo grau, o fim do modelo mafioso de financiamento eleitoral por empresas que vigorava entre nós e a restrição drástica ao foro privilegiado. Todos esses avanços tiveram opositores radicais. Nós não somos atrasados por acaso. Somos atrasados porque o atraso é bem defendido.
É um equívoco supor que a corrupção não é um crime violento. Corrupção mata. Mata na fila do sus, na falta de leitos, na falta de medicamentos. Mata nas estradas que não têm manutenção adequada. A corrupção destrói vidas que não são educadas adequadamente, em razão da ausência de escolas, deficiências de estruturas e equipamentos. O fato de o corrupto não ver nos olhos as vítimas que provoca não o torna menos perigoso. A crença de que a corrupção não é um crime grave criou um ambiente geral de leniência e de impunidade que nos trouxe até aqui, a esse quadro sombrio em que recessão, corrupção e criminalidade elevadíssima nos atrasam na história, nos retêm como um país de renda média, que não consegue furar o cerco.
As consequências da impunidade são um país no qual (1) altos dirigentes ajustam propinas dentro dos palácios de onde deveriam governar com probidade; (2) governadores transformam a sede de governo em centros de arrecadação e distribuição de dinheiro desviado; (3) parlamentares cobram vantagens indevidas para aprovarem desonerações; (4) membros de comissões parlamentares de inquérito achacam pessoas e empresas para não as submeterem a constrangimentos e humilhações públicas; (5) dirigentes de instituições financeiras públicas cobram para si percentuais dos empréstimos que liberam; (6) dirigentes de fundos de pensão de empresas estatais fazem investimentos ruinosos para os seus beneficiários em troca de vantagens indevidas.
O enfrentamento à corrupção não precisa de punitivismo ou de vingadores mascarados. Nem Robespierre nem Savonarola. Basta aplicar a lei com seriedade, sem o compadrio tradicional da formação nacional, que acredita que alguns estão fora e acima da lei. Mas é preciso derrotar os parceiros dissimulados da corrupção, que se ocultam por trás de um estranho fenômeno: o garantismo à brasileira. Em outras partes do mundo, garantismo significa direito de defesa, devido processo legal, julgamento justo e, em alguns lugares — mas não todos —, direito a recurso para o segundo grau de jurisdição.
Entre nós, todavia, há os que sustentam uma versão distorcida de garantismo, significando direito adquirido à impunidade, com um processo penal que não funcione, não termine e que jamais alcance qualquer pessoa que ganhe mais do que alguns salários mínimos. Os garantistas tupiniquins prendem, sem piedade, jovens pobres e primários com qualquer quantidade de drogas, mas liberam, com discursos libertários e tonitruantes, corruptos que sequer devolveram o dinheiro desviado e mantêm suas contas clandestinas no exterior.
O Brasil ocupa a 105ª posição no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, no ano de 2018. Somos a quarta maior democracia do mundo, uma das dez maiores economias do planeta, mas estamos entre os piores em matéria de integridade governamental. Menos de 1% dos presos no sistema penitenciário lá estão por crimes de colarinho-branco. São números constrangedores. Porém, a sociedade brasileira já mudou, e nada será como antes. Estamos andando na direção certa, ainda que não na velocidade desejada. É trabalho para mais de uma geração, mas precisa começar em algum momento. A leitura do livro de Jorge Pontes e Márcio Anselmo não deixa dúvidas: a hora é essa; o lugar é aqui.
O LIVRO
O livro Crime.gov serve como um didático curso intensivo sobre o funcionamento da criminalidade política no Brasil. A descrição de como se dá o ciclo vicioso de perpetuação no poder para a extração de benefícios privados é vívida. Por meio de fraude de licitações ou de superfaturamento de contratos com as empresas financiadoras de campanha, o dinheiro é desviado do erário e lubrifica a estrutura da corrupção: enriquece políticos, seus indicados nos gabinetes estatais e os próprios empresários; aumenta os lucros das empresas e refinancia as futuras campanhas políticas.
Diferenciando-a da já tradicional criminalidade do colarinho-branco, os autores denominam essa forma de criminalidade de “crime institucionalizado” — um sistema de fraudes variado, altamente lucrativo, que se entranha no núcleo do poder e nas estruturas públicas oficiais. São violações protagonizadas por pessoas investidas de autoridade formal, que se valem das prerrogativas de seus cargos não apenas para cometer os delitos, mas também para criar uma rede de proteção contra sua investigação e persecução penal. Diferentemente do modus operandi das organizações criminosas tradicionais, o crime institucionalizado não atua à margem da lei, mas “dentro dela”.
Para demonstrar seus argumentos, os autores se valem da experiência acumulada em sua atuação concreta, mas não só. Respaldado por obras sociológicas de referência, mas desprovido do exagero de jargões jurídicos ou policiais, o livro é leve e agradável. Por meio de uma visão privilegiada das operações policiais, os autores traçam um quadro tristemente realista das articulações de poderosos, até recentemente intocáveis, para se manter ao largo da lei, como a realização de campanhas de contrainformação na mídia, a ingerência na indicação de delegados em postos-chave da PF, a utilização de “vazamentos institucionais” para conhecer de antemão as operações policiais, as tentativas de interromper investigações em curso e de influenciar juízes etc. Com percepção sofisticada e linguagem cortante, assinalam os autores:
A noção de que a coisa pública, em vez de ser “de todos”, é “de ninguém” traz implícita a lógica de que é menos grave se apropriar dela.
São esquemas sem distinção ideológica, pois operam em governos de direita e de esquerda.
Ao contrário da organização criminosa “convencional”, o crime institucionalizado não está atrelado a atividades escancaradamente ilegais, como o tráfico de drogas, de armas, a prostituição, o tráfico de pessoas ou o jogo ilegal. […] Está entranhado, na verdade, na plataforma oficial. E uma atividade infinitamente mais lucrativa e segura do que qualquer negócio ilegal convencional.
Não escapou à crítica severa dos autores a parte de responsabilidade que cabe às instituições judiciais, que até pouco tempo consideravam a criminalidade de colarinho-branco, inclusive a corrupção, delitos de pouca gravidade. E, em relação aos tribunais superiores, não deixam de detectar como laços políticos, pessoais e de classe criam uma esfera de proteção para delinquentes bem-postos no mundo empresarial ou político. A situação começa aos poucos a se transformar, mas ainda não escapa do diagnóstico severo e dos temores manifestados pelos autores:
O mais importante é evitar que as instâncias superiores da Justiça funcionem como a equipe de socorro das organizações político-empresariais que tanto sangraram os cofres públicos durante décadas. É essa a batalha que será travada ainda por muitos anos nos próprios tribunais. Se as últimas camadas da Justiça, como o STJ e o STF, estiverem mais comprometidas com a manutenção de poder dessas oligarquias do que com o país, o Brasil ainda corre o risco de ver por terra todo o esforço dos últimos anos.
Também no tema relativo às drogas, os autores enfrentam o senso comum e defendem uma imprescindível mudança de estratégia no tratamento da matéria. Com ousadia e eloquência, sem se renderem aos preconceitos que dominam esse debate, antecipam o que será óbvio no futuro:
Num debate que ganha cada vez mais espaço e importância na sociedade, por vários motivos, é importante retomar a discussão de uma paulatina descriminalização das drogas no Brasil. A guerra às substâncias entorpecentes, da forma como é realizada por nossa legislação antidrogas, tem se mostrado ineficaz, e resulta em diversos efeitos negativos: aprofunda a formação de guetos e redutos de violência em áreas de concentração populacional de baixa renda; potencializa a criminalidade de rua; gera dezenas de delitos de suporte, incluindo o tráfico de armas e a corrupção policial; sufoca o sistema penitenciário com dezenas de milhares de presos jovens, condenados por cometerem pequenos atos ilícitos previstos na lei. E, não menos importante, essa guerra desfoca a PF de sua mais relevante missão: combater com efetividade, e utilizando-se de todos os seus recursos, a grande corrupção.
Os autores não se contentam em desnudar a existência dos problemas que apontam, em áreas diversas. Assim é que, no capítulo final, propõem soluções concretas para o seu enfrentamento, que vão desde mecanismos mais eficientes de investigação, passando pela concessão de maior autonomia à PF, até alterações legislativas contra a impunidade. Alguém poderá divergir, pontualmente, de uma ou outra proposta, num mundo que é plural e comporta múltiplos pontos de observação, mas, no geral, Jorge Pontes e Márcio Anselmo estão do lado certo da história, defendendo suas ideias com talento e coragem.