Livro ‘O Inferno Somos Nós’ por Leandro Karnal e Monja Coen

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Vivemos dias difíceis, de vozes múltiplas que parecem nunca dialogar, ávidas que são para atacar e julgar. Em tempos adversos como o que vivemos, de crise, preconceito e intolerância, como transformar o ódio em compreensão do outro em suas diferenças? Como sair de um cenário de violência e construir uma cultura de paz? O historiador Leandro Karnal e a Monja Coen, fundadora da Comunidade Zen-budista do Brasil, conversam nesse livro sobre essas e outras questões, em diálogo inspirador. Os autores lembram que o medo pode estar na origem da violência e apontam como o conhecimento, de si e do outro, é capaz de produzir uma nova atitude na sociedade, menos agressiva e mais acolhedora. “Localizar o mal no outro é uma panaceia universal”, observa Leandro. Mas, talvez, o inferno não sejam os outros, como pensava o filósofo francês Jean-Paul Sartre, e sim nós mesmos.

Editora: Papirus Editora; 1ª edição (10 outubro 2018); Páginas: 112 páginas; ISBN-10: 8595550115; ISBN-13: 978-8595550117; ASIN: B07L5XFG12

Leia trecho do livro

Sumário

Prólogo
Cultura de violência e medo
Disciplina que liberta
“Essa maneira de pensar também existe”
Tolerância e limite Cultura de paz na prática
Respeito e autoconhecimento
Foco e resiliência Coerção e consenso
Uma síntese
Epílogo
Glossário
Notas
Sobre os autores
Outros livros dos autores
Redes sociais Créditos

Monja Coen

Fui convidada a dialogar com o professor Leandro Karnal, em seu escritório, em um domingo de manhã.[1] Tenho seguido suas apresentações no Jornal da Cultura, suas frases inspiradoras no Careca de Saber da Band e suas palestras que são postadas no YouTube e no Facebook. Sinto grande respeito e admiração por ele. Esse encontro, então, me deixou contente e apreensiva. Afinal, Leandro Karnal já declarou várias vezes que acorda às quatro da manhã para meditar e estudar. Eu, monja zen-budista, me sinto em falta diante dessa declaração. Deveria, como no mosteiro, acordar nesse horário para meditar e estudar, mas não o faço. Dou aulas, palestras até às dez horas da noite. Acabo abrindo o computador nesse horário e durmo tarde, depois da meia-noite, muitas vezes – maneira de me desculpar por não seguir o bom exemplo de dormir cedo e acordar cedo para meditar e estudar.

Ao me aproximar do edifício, encontro a porta aberta. Passo pela catraca, subo o elevador e a porta do escritório também está aberta. A equipe de gravação e a editora estão me aguardando com o professor Karnal, que me recebe sorrindo e se lembra de um encontro nosso, há anos, na Casa do Saber. As portas abertas, o sorriso, a lembrança me deixam mais à vontade, sabendo que vim aqui também para aprender com uma pessoa de grande cultura e inteligência. Depois de nos assentarmos – professor Karnal senta-se sempre muito ereto “pelos estudos de piano desde a infância”, esclareceu -, pedem-me que inicie e, quando eu falo, ele mantém os olhos baixos, como me dando permissão a ser quem sou, sem influências do seu olhar. A sala tem grandes janelas de vidro em três de suas paredes principais. Céu, pássaros e nós. Assim, iniciei.

Cultura de violência e medo

Monja Coen – Quando falamos sobre cultura de paz, um dos meus lamentos é que a história da humanidade conte pouco de respostas não violentas da humanidade aos conflitos. Os livros de história pouco tratam das pessoas que tiveram uma maneira de viver menos violenta. Que foram menos agressivas e mais acolhedoras. Discriminações, preconceitos, guerras, escravização, tortura, raiva sempre existiram entre nós, humanos. Manifestações de ódio não são uma novidade da nossa época. Assim como sempre existiram, também, grupos que pensam de forma diferente. O que acontece é que se dá muita visibilidade às violências e ao medo através dos meios de comunicação, da informática, da tecnologia. Ficamos sabendo imediatamente de tudo o que possa estar acontecendo em qualquer lugar do mundo. E a mídia parece muito interessada em mostrar o que não é bom. Daí, eu pergunto: Qual é a necessidade de manter a população amedrontada? Quais as vantagens disso? A quem interessa uma população que pensa: “O outro é perigoso, é o inimigo; arme-se, prepare-se para a luta”. Percebo isso no mundo hoje. Temos a mídia, que é facilitadora para que as pessoas fiquem assustadas e considerem prioridade o que não é benéfico: o crime, as guerras, as bombas, os conflitos, as várias formas de discriminação e preconceito e a corrupção. Esses seres atrelados aos crimes são os nossos atores principais na capa das revistas, dos jornais e nos canais de televisão. Ao mesmo tempo, há pessoas boníssimas, fazendo coisas maravilhosas, que aparecem tão pouco – isso quando aparecem. Houve uma inversão de valores – o prejudicial priorizado. Acredito que seja muito importante haver uma reinversão de valores, dando maior ênfase às coisas boas, para que possamos desenvolver uma cultura de paz. Cultura de cultivar – como cultivamos plantas, flores, frutos e alimentos – afetos. Cultivar a não violência ativa, como insistiu Mahatma Gandhi em sua vida, cultivar o cuidado, o respeito, a compreensão, a amorosidade. Precisamos, sim, alertar contra os malfeitos e os erros de compreensão humana, alertar contra os preconceitos e as discriminações, alertar contra as várias formas de violência. Mas é preciso também dar visibilidade ao que é benéfico, aos bons exemplos a serem seguidos. Por outro lado, lembro-me do psiquiatra José Angelo Gaiarsa, que falava algo interessante. Ele dizia que o mal tem tanta visibilidade porque o bem ainda prevalece. Se fazer o bem fosse uma raridade, estaria na primeira página do jornal. O mal ainda é uma raridade, o crime é algo raro, por isso chama tanta atenção. Mas nem todos assim o compreendem e vivem amedrontados ou estimulados a cometer crimes semelhantes aos divulgados com tanta intensidade.

Leandro Karnal – Devo dizer que é uma honra estar nesta manhã de domingo conversando com a senhora sobre esse assunto. E começo concordando com a primeira parte da sua fala, de que nós temos ódio e enfrentamento ao longo de toda a história. Eu diria até que, hoje, nós nos chocamos um pouco mais com massacres e genocídios, apesar de termos números maiores do que no passado – não só porque temos mais gente no mundo, mas porque nós temos métodos mais eficazes de morte. Os massacres e assassinatos sempre foram muito frequentes, em todas as épocas da história. A diferença, hoje, talvez esteja em duas novidades. A primeira é que temos mais informação sobre eles. Por exemplo, um choque entre tútsis e hutus em Ruanda,[2] na África, no século XII não seria do conhecimento nem de europeus, nem de americanos, nem de asiáticos. Hoje, nós somos não apenas informados imediatamente de um massacre, mas somos também ilustrados por filmes, debates e obras sobre essa violência. Os massacres, antes, eram locais; agora, se tornaram universais. A visibilidade da internet colocou em choque pessoas que antes não tinham contato. É o caso recente de um grande músico brasileiro, Chico Buarque, que até mesmo as redes sociais imaginavam que todos amassem. Tido como alguém que fazia músicas lindas, era um símbolo da cultura brasileira, mas, de repente, por posicionamentos políticos que iam contra a opinião de outras pessoas, ele se descobriu atacado na rua e nas redes. Descobriu-se, então, que o amor não era uma unanimidade em relação a ele. E a segunda novidade é que existe hoje também, por uma série de fatores, no Ocidente em particular, uma exacerbação do eu, da sua autoestima e da ideia de que “se eu penso assim, isso é o correto”. Entendo que sempre fomos orgulhosos, cheios de vaidade. Sempre fomos egoístas. Mas, agora, esse eu não tem mais limites. E ele entra em contato com outro eu a tal ponto que pode, por exemplo, alguém de dezesseis anos deixar um recado nas redes sociais da senhora, que estuda zen-budismo há boa parte da vida, dizendo: “Está tudo errado, eu penso diferente”. Não existe mais aquela ideia de que “bem, se ela estudou a vida toda, existe uma chance de que, talvez, conheça algo. E eu, que estudo há cinco minutos, talvez conheça menos”. Isso desapareceu. Desapareceu a autoridade, os discursos totalizadores, os discursos gerais -inclusive os religiosos e os políticos. E surge a imersão do eu, que sempre foi violento e que, agora, entra em contato um com o outro. E também acho muito boa a observação de que o mal, em si, é excepcional – ainda que seja banal, como diz Hannah Arendt. Estamos aqui, neste momento, trabalhando em um domingo, discutindo cultura de paz, e isso não será manchete de nenhum jornal amanhã. Mas se alguém for assaltado na rua, aqui em frente, essa será a manchete. De fato, o mal é menos discreto, é mais chamativo. E é muito boa a observação com base na obra do falecido Gaiarsa de que o bem é majoritário. Para existir um corrupto, para que um possa roubar, tem que haver muita gente depositando dinheiro no cofre. Se todos roubassem, o cofre estaria vazio. É preciso, portanto, que muita gente encha o cofre. Para cada assalto terrível e tão frequente que ocorre em uma cidade grande como São Paulo, há milhões de pessoas que foram trabalhar e voltaram para casa sem terem sido assaltadas. Mas o que estampa o jornal é o assalto. Não sou conspiracionista, mas acho que, talvez, exista um plano geral em que interessa muito o medo porque ele é a melhor forma de controlar as pessoas. Atrai-se mais gente para um grupo inspirando os horrores do inferno do que apresentando as delícias do paraíso. O medo é o primeiro dos quatro gigantes da alma, como diria Emílio Mira y Lépez,[3] é uma das coisas enormes da nossa capacidade de agir como os outros querem que a gente aja. Entregamos a liberdade se sentirmos que a nossa vida está em risco. Em um texto recente que li do médico Drauzio Varella sobre o sistema prisional, Prisioneiras,[4] o último volume de uma trilogia, ele diz que, na prisão, não é a liberdade que as pessoas debatem, mas a sobrevivência. Portanto, até mesmo o valor “liberdade” diminui quando o imperativo categórico chamado “sobrevivência” se sobrepõe. Preferimos sobreviver a ser livres. E preferimos sobreviver e ser livres a uma terceira coisa. Essas categorias, portanto, estão ligadas ao medo. Nós somos pessoas assustadas. E pessoas assustadas obedecem com facilidade. Desde a infância, aqui no Ocidente, os pais incutem o medo nos filhos, por exemplo, quando dizem: “Se você não se comportar, eu vou dá-lo para o velho do saco na rua”. Ou: “Se não se comportar, vou deixá-lo aí e você vai ficar sozinho”.

Monja Coen – Ou: “A Cuca vem pegar”…

Kamal – Exatamente. Nós assustamos o outro porque, assim, conseguimos a submissão. Sem o risco da nota em sala de aula, sem o risco da polícia, sem o medo da punição, o bem tende a não se sustentar – o que é uma visão pessimista do ser humano. Mas o medo é uma grande força da espécie humana. Com o medo, obtemos a união e conseguimos vencer resistências individuais. O medo é fundamental e está na base de quase todos os grandes preconceitos e ódios que cultivamos. Alguém com medo é alguém que aceita a autoridade.

Monja Coen – Talvez, por isso, se diga no zen-budismo que o maior presente que se pode dar a alguém é o não medo. E como se faz isso? Não tendo medo. É algo difícil. O símbolo de Kanon Bodisatva, que é o bodisatva[5] da compaixão, é esse, o não medo. E tirar o medo é complicado. Como você lembrou, desde que nascemos, já começam a nos alertar: “Cuidado com isto, cuidado com aquilo”. No budismo, trabalhamos muito com a ideia de libertação -libertar-se das ideias e dos conceitos que foram colocados em nós desde o útero materno, desde antes do nascimento, pela maneira como a mãe se portou durante a gravidez; libertar-se não só da parte genética que vem conosco, mas da parte que vai sendo adquirida dos relacionamentos na infância, na adolescência, de escolhas e não escolhas. Certa vez, assisti à palestra de um neurocientista, um estudioso da mente humana, dos neurônios, das ligações do cérebro, e ele comentou que nós temos somente 5% de livre-arbítrio. Achei isso bem interessante. Ele disse: “Professores e pais, não se assustem. Mas a sua capacidade de influenciar um ser humano é de 5%”. Esses 5% são muito importantes, porque fazem a diferença. Por mais que nós estejamos nessa cadeia de medo instituída desde antes do nascimento, durante toda a infância, a juventude, a maturidade e a velhice, podemos libertar e viver sem medo, sem ansiedades sobre o que será e como será, mas apreciando a fugacidade do momento.

Se a infância foi difícil por nos depararmos com autoridades fisicamente maiores do que nós, se a juventude dependeu tanto e tanto da aprovação dos nossos pares, se a maturidade nos fez mais independentes, entretanto ainda dependentes da aprovação social, familiar, a velhice também é muito assustadora. Estou com 70 anos e já começo a ver as perspectivas de deficiências que podem acontecer com qualquer um de nós. O corpo fica mais frágil… A possibilidade de depender de alguém, por exemplo, para se locomover ou ir ao banheiro, parece meio assustadora. O medo faz parte de um processo de não estar presente no que está acontecendo e não vivenciar aquilo assim como é. Ainda posso me movimentar bem e não dependo de outras pessoas para sobreviver. A perspectiva de um futuro, que poderá nunca acontecer, é uma probabilidade apenas, e não a realidade. Refletindo assim, o medo da velhice evapora. É preciso estar presente no que acontece e manter a capacidade de percepção clara da realidade para saber quando o medo é necessário. Pois o medo é precioso também, ele nos impede de sermos feridos ou mortos, tanto pelas feras, quando vivíamos na floresta, quanto pelos perigos urbanos. Ele nos impede de sucumbir, talvez. As pessoas comentam comigo: “Querem puxar meu tapete. Estou muito aflito no meu trabalho, porque querem tomar o meu lugar”. E eu respondo: “Mas você está percebendo isso. No momento em que percebe, há alternativas: ou pula de lado e o tapete sai e você fica em pé, ou você cai e se levanta”. Hoje, muitas empresas em fusão despedem alguns, contratam outros. Profissionais com as mesmas capacitações ficam muito assustados, “porque vão pegar o meu lugar” ou “vão me despedir”. Mas ninguém pode pegar o seu lugar, porque o seu lugar é seu. E se ele não é aqui, será em outra empresa. Em um momento de transição como esse, quem conseguir manter a calma e fazer o seu melhor garantirá a sua vaga. Quem, através do medo, fica assustado, deixa de produzir de acordo com a sua capacidade e acaba sendo descartado. O que você escolhe? Essa é a pergunta que faço nas empresas. E é preciso apreciar o local em que se trabalha, se vive e se convive.

Karnal – Há dez anos, quando a convidei para uma palestra em uma instituição, a senhora anunciava ter 60 anos e se alegrava porque, em culturas tribais, seria o momento de tocar tambor. Hoje, a senhora tem 70. Há dez anos, eu tinha 44. Portanto, é muito bom e muito intenso ouvir sobre os medos. Pois a maioria das pessoas que mora em uma cidade grande não está presa em uma cadeia, mas, sim, em muitas cadeias. E é possível que o tempo de um prisioneiro seja um pouco mais dele do que o tempo de um empresário, por exemplo. Não estou idealizando a prisão, mas, talvez, um prisioneiro, apesar de ter horário de refeição, seja mais dono do tempo, tenha mais tempo para estar com ele mesmo. O meu grande herói, Hamlet, diz: “Eu poderia ser livre em uma casca de noz”.[6] É a ideia de que a consciência não depende do ambiente. Claro que existe certo idealismo na separação entre local e consciência de liberdade. Porém, demanda certa sabedoria perceber que o príncipe de Shakespeare está correto. Eu posso ser livre na casca de noz e, obviamente, estar atacado de total claustrofobia em um palácio.

Monja Coen – A liberdade que pode acontecer em um presídio – ou em qualquer local – só começa quando não há mais nada a perder, nada a defender e a proteger, nem mesmo a própria vida; quando o apenas sobreviver a cada momento é o objetivo fundamental. Esquecemos, no dia a dia, que somos mortais. Estamos sempre defendendo e protegendo posições, papéis, personagens e objetos materiais. Quando tudo isso deixa de ser o essencial, o que sobra? A ideia comum de liberdade é não haver um presídio, é não haver grades, barreiras, paredes imensas e alguém controlando a porta com trancas e chaves. Mas quantas pessoas nos controlam com chaves invisíveis, vão abrindo e fechando portas a seu gosto, e nós nos permitimos aprisionar? Nós nos deixamos aprisionar, por medo, por conveniência. Se em um determinado momento consideramos essa prisão confortável, com o tempo ela se torna incômoda e procuramos a liberdade, queremos ter as chaves dessas portas. Ou nem chaves – portas sem chaves. Paredes flexíveis, janelas abertas onde dentro e fora se confundem e se harmonizam. Aliás, eu quero muito agradecer, porque cheguei aqui e a porta da rua estava aberta. Quando cheguei aqui em seu escritório, professor, a porta também estava aberta. E essa é uma maneira muito agradecer, porque cheguei aqui e a porta da rua estava aberta. Quando cheguei aqui em seu escritório, professor, a porta também estava aberta. E essa é uma maneira muito terna de receber alguém. Quando chegamos em algum lugar e nos deparamos com uma porta fechada que o outro demora para abrir, temos a sensação de que não somos muito bem-vindos. Encontrar a porta aberta aqui foi muito terno para mim. E isso me fez lembrar de outra ternura que recebi, quando visitei a lama[7] que hoje é uma das professoras responsáveis pelo templo budista de Três Coroas, no Rio Grande do Sul. Ela tinha sido esposa do Chagdud Rinpoche, que havia morrido. Fui visitá-la e ela me disse: “Estou esperando você há dois dias. Que alegria esperá-la!”. Não é gostoso? Deu-me o lugar de honra da sala, onde sentaria seu falecido marido, e me serviu com alegria e respeito.

Eu também me senti assim sobre me encontrar com você. Eu fiquei esperando por este encontro com alegria e com certo temor também. Apesar de tê-lo ouvido muitas vezes, em vários programas, acho que sempre ficamos um pouco apreensivos antes de um encontro. Mas, afinal, somos apenas dois seres humanos conversando. Cada um com seu ponto de vista, suas expectativas, seu conhecimento, suas experiências. Você tem uma larga experiência acadêmica e também de vida, práticas vivenciais. Vim com a alegria de poder refletir com base em suas colocações.

Disciplina que liberta

Karnal – Para aqueles, maioria no Brasil, que não conhecem a tradição budista, a pergunta seria: como, na prática, entregar ao outro o dom de não ter medo? Isto é, como teoria e ideal. Como produzir o não medo, que é a base de uma cultura de paz? Como um pai, um professor, uma autoridade podem estimular o não medo, que é uma condição da existência da cultura de paz, já que ela, tema da nossa conversa, se opõe à cultura do medo? Como, na prática, eu introduzo em alguém a noção do não medo?

Monja Coen – A minha prática principal é a meditação que chamamos no budismo de zazen: za é sentar e zen é meditar. Para que serve? Para conhecer a si mesmo. E conhecer a si mesmo vai um pouco além da nossa historinha pessoal. A ideia é conhecer o que é a mente humana, conhecer como nós funcionamos como seres humanos. Observar a própria mente e, ao mesmo tempo, perceber que ela não está separada nem de nada nem de ninguém. Que nós fazemos parte de uma trama, de uma teia de inter-relacionamentos, e que nada existe por si só. Eu posso pensar no meu corpo intelectualmente, como se o meu cérebro estivesse separado dele. Mas o meu cérebro funciona nesse organismo vivo, e tudo vai se manifestar no corpo. Quando começo a perceber como tudo isso funciona e qual é o mecanismo do medo em mim, de onde ele surge e como se manifesta no meu corpo, passo a dar mais atenção à minha respiração. Esse é um exercício prático para que as pessoas possam entrar em contato com aquilo que alguns vão chamar de sua “essência verdadeira”, o seu “eu verdadeiro”. Se bem que eu acredito que tudo é o “eu verdadeiro” se manifestando. Inclusive o medo e a ausência de conhecimento, e não só a sabedoria e a verdade, são também o “eu verdadeiro” se manifestando. Mas, como observar em profundidade para perceber se é necessário ou não esse estado de alerta extra que o medo provoca? O estado de fechar-se ou segurar-se, de fugir ou enfrentar, de aceitar ou rejeitar? Sempre a dualidade nos toma de surpresa e ficamos entre ser ou não ser, mas podemos ir além da mente dual.

Uma contração muscular acontece no corpo, o diafragma fica pressionado, a pessoa não respira direito. Essas são características não só do medo, mas de qualquer uma das emoções que não são benéficas ao nosso sistema psicofísico. As emoções de alegria e contentamento são mais relaxadas. Já as outras emoções tensionam o corpo e a mente-coração.

Mente-coração, em japonês, é um caractere chinês, lido shin, que significa o espírito, a essência. Acredito em trabalhar simultaneamente o corpo físico – respiração consciente, relaxamento de áreas contraídas, tensionadas -com ideias, pensamentos, filosofias, maneiras de olhar a realidade que podem ser transformadas. Por exemplo, a ótica de uma sociedade de violência, uma sociedade de um contra o outro pode se tornar a de convivência mais colaborativa e cooperativa. Estava outro dia em Salvador e, em um canal de televisão educativa, vários professores falando em espanhol – não sei distinguir de qual país eram – comentavam o que eles chamavam de educação proibida. Explicavam que o nosso sistema educacional havia sido criado na Prússia e estava ligado ao exército, por isso ensinamos crianças, desde a infância, a competir pela nota, pela posição na sala em vez de colaborar com os outros. Exigimos o silêncio e a ordem. Ameaçamos com sala da diretoria, notas baixas, expulsão. Isso cria o medo. “Se eu não tirar a nota na prova, a escola vai mandar relatório para o meu pai. E eu tenho que saber todas essas matérias! Mas algumas não me interessam de maneira nenhuma, não tenho aptidão nenhuma para elas.” O exemplo que esses professores deram foi de que Salvador Dali gostava de desenhar. Nas aulas, ele só fazia isso. E os professores dele ficavam muito bravos porque o menino não prestava atenção no assunto da aula, não se interessava pelas matérias, apenas desenhava. Finalmente, os pais acolheram o fato de que o menino poderia ser um artista, e essa aceitação fez dele um grande mestre, deu significância à sua vida, à sua manifestação no mundo. Portanto, quando falamos da cultura de violência e do medo, ela está também envolvida na questão da didática atual, nos métodos pedagógicos, na maneira como o sistema educacional está sendo mantido. Para mim, mais importante que edifícios são educadores capazes de provocar o interesse pela pesquisa, pelo estudo, pelo desenvolvimento físico-motor, intelectual, cognitivo. Como dizia Paulo Freire, “ensinar a ler a realidade”.

Karnal – Nosso sistema escolar tem como modelo a escola prussiana porque, em determinado momento da história, quando a Prússia venceu a França na guerra de 1870, espalhou-se por toda a Europa que a vitória de Berlim no campo de batalha era a vitória do mestre-escola alemão, que havia formado soldados disciplinados. Nós entendemos, então, em história da educação, que carteiras ordenadas, alunos em silêncio, produtivos e uniformizados preparam dois tipos de cidadão: o trabalhador da fábrica e o cidadão-soldado. Ele é esse medo vitorioso, portanto. As escolas deveriam ser “adestradoras” de cidadãos a serviço da pátria e da produção. O local de produzir curiosidade, dúvidas, inquietações e afetividades que seguiriam pela vida toda torna-se um misto de fábrica-prisão-quartel. Emerge também uma violência escolar sem precedentes que nos acompanha até hoje.

Karnal – Nosso sistema escolar tem como modelo a escola prussiana porque, em determinado momento da história, quando a Prússia venceu a França na guerra de 1870, espalhou-se por toda a Europa que a vitória de Berlim no campo de batalha era a vitória do mestre-escola alemão,
que havia formado soldados disciplinados. Nós entendemos, então, em história da educação, que carteiras ordenadas, alunos em silêncio, produtivos e uniformizados preparam dois tipos de cidadão: o trabalhador da fábrica e o cidadão-soldado. Ele é esse medo vitorioso, portanto. As escolas deveriam ser “adestradoras” de cidadãos a serviço da pátria e da produção. O local de produzir curiosidade, dúvidas, inquietações e afetividades que seguiriam pela vida toda torna-se um misto de fábrica-prisão-quartel. Emerge também uma violência escolar sem precedentes que nos acompanha até hoje.

Monja Coen – Quando nós temos um sistema escolar que é violento por não acolher, não ouvir a verdadeira necessidade dos alunos e por querer encaixá-los em um programa e em um sistema em que nem todos se encaixam, como transformá-lo em um sistema menos rígido, mas ao mesmo tempo com ordem e disciplina? A proposta de uma cultura de paz é de uma revolução muito grande, uma grande transformação individual e social. Porque é necessário modificar todo um sistema educacional, dentro de escolas, universidades, as famílias… Quando digo “famílias”, não são apenas pai, mãe e filhos. Família são pessoas que convivem em um mesmo ambiente e o compartilham. São pessoas que se respeitam e se cuidam, que compartilham alimentos, sonhos e realidades. Hoje, necessariamente, não são o mesmo pai, a mesma mãe com a mesma criança. Atualmente, a família monocelular, com pai biológico, mãe biológica e filhos biológicos, está ficando rara. Casamentos terminam, pessoas se casam novamente. A criança nem sempre convive com o pai biológico e algumas nem mesmo com a mãe biológica. Há adoções e amigos ou parentes que, temporariamente -alguns, para sempre -, se tornam os responsáveis pelos mais jovens. Muitas mulheres se tornaram as provedoras. As funções e os deveres se modificaram e estão se modificando. Talvez nem tenham mudado tanto, mas tornaram-se mais transparentes e públicos. Portanto, todo o conceito de família, de posições dentro dela, das empresas e das escolas precisa ser revisado, para melhorar a maneira de estar e de conviver no mundo.

A minha pergunta, então, também é esta: como é que pais, que foram criados nesta comunidade, nesta sociedade violenta, agressiva, medrosa, podem transmitir o não medo para os filhos, se não vivenciam ou não vivenciaram isso? Como podem os professores – e aqui eu me refiro especialmente àqueles dos níveis mais elementares, que formam a estrutura básica de um ser humano e, portanto, deveriam ser os mais bem capacitados e mais bem remunerados e, no entanto, são os que têm salários inferiores e menos tempo para capacitação – ensinar o não medo? Se a mamãe, o papai, a vovó, o vovô, ou seja, quem cuida e o professor ou a professora dizem para uma criança: “Não tenha medo”, mas estão eles próprios morrendo de medo, só podem transmitir o que sentem. E é isso que eles transmitem: o medo. Porque só se pode transmitir a própria realidade, a própria experiência, a própria emoção. Palavras tentam mascarar algo, mas não conseguem. Crianças e adolescentes são capazes de ler o corpo, o tom de voz, o que está sendo realmente comunicado e que nem sempre são as palavras.

Carnal – Venho de uma tradição germânica e religiosa, em que a ideia de disciplina é liberdade. Ou seja, quando disciplinamos o tempo, quando nos organizamos, produzimos liberdade de tempo e eficácia. Nessa lógica, se produzirmos bastante, não sentiremos medo porque teremos resultados. Não teremos medo da prova, porque estudamos muito. Não teremos medo da crise, porque guardamos muito dinheiro. Não teremos medo da doença até um limite, porque pagamos um bom plano de saúde e comemos aquilo que a medicina nos manda comer. É uma maneira de enfrentar o medo, embora me pareça que a nossa sociedade foi formada com um sentimento contrário a esse. Nós nos disciplinamos exatamente para não ter medo. Só que a cada nova instância, a cada novo patamar de segurança – e aí voltamos de certa forma ao budismo – surge uma nova necessidade. Se possuímos a nossa casa, na qual temos liberdade de ser, vamos precisar de segurança para essa casa. E, se temos essa segurança, será necessário trabalhar mais, porque ela vai demandar mais dinheiro. Se temos a saúde preservada pelo plano de saúde, alguma doença pode não estar prevista nele, de modo que vamos precisar de um plano que inclua mais um novo tipo de doença. Dentro dessa disciplina prussiana, penso que as pessoas são eficazes. E grande parte da tradição oriental em todos os campos, e também no budismo, é a disciplina do corpo, inclusive da percepção. O que é uma disciplina libertadora e não uma disciplina aprisionadora? O que faz com que os exercícios zen sejam libertadores, apesar de serem metódicos, sistemáticos e, muitas vezes, dolorosos? Monja, uma questão que me inquieta: o que vem a ser essa disciplina que liberta e não que aprisiona?

Monja Coen – A palavra zen vem da índia antiga. É uma corruptela de dhyana ou jhana, a que os chineses, por onomatopeia, diziam ch’an e para a qual criaram um caractere que os japoneses chamam de zen. Nas práticas budistas, zen significa meditar. Só que meditar, em português, é um verbo transitivo e exige um objeto: “Medite sobre isso, medite sobre aquilo…”. Até usamos essa expressão para crianças, como se fosse um processo educacional: “Você fez uma coisa errada. Vá meditar sobre o que você fez”. Isso não é o que nós, budistas, fazemos. Zen… continua…


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