Em seu novo livro, Noam Chomsky alerta sobre as grandes ameaças à sobrevivência do planeta. Reconhecido como um dos principais intelectuais contemporâneos, defensor ferrenho da democracia e crítico da política externa dos Estados Unidos e do poder global das grandes corporações, Chomsky mostra-se preocupado com o futuro e explica detalhadamente o porquê. Segundo ele, os estados nacionais não têm mais a capacidade para controlar o futuro e preservar o planeta. Só movimentos populares vão conseguir acordos mundiais em defesa do clima e da paz. Como este livro foi originalmente escrito antes do coronavírus, oferecemos na edição brasileira um prefácio onde Chomsky comenta como a pandemia vai alterar a ordem política e econômica global...
Capa comum: 128 páginas Editora: Crítica; Edição: 1 (30 de junho de 2020) ISBN-13: 978-6555350296 Dimensões do produto: 14 x 1,3 x 21 cm
Clique na imagem para ler o livro
Leia trecho do livro
Coronavírus
O que está em jogo?
Entrevista concedida em 28 de março de 2020 ao canal oficial do YouTube do DiEM25 — Movimento Democracia na Europa 2025. O entrevistador é o filósofo e ativista político croata Sreeko Horvat.
SRECK0 HORVAT — Bem-vindos a mais um episódio de “O mundo depois do corona”. Estou muito feliz e honrado por este episódio, porque há um convidado especial juntando-se a nós hoje. E esse convidado especial é um herói não apenas meu, mas de muitas gerações. Infelizmente, nós dois estamos em autoisolamento. Ele é Noam Chomsky. Olá, Noam. Você poderia nos dizer onde você está em isolamento?
NOAM CHOMSKY — Bem, estou em Tucson, Arizona, em autoisolamento no momento.
HORVAT — Você nasceu em 1928 e escreveu seu primeiro ensaio, até onde eu sei, quando tinha apenas 10 anos de idade, que foi um ensaio sobre a Guerra Civil Espanhola. Você sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, Hiroshima, foi testemunha de eventos políticos e históricos muito importantes, da Guerra do Vietnã à crise do petróleo, até a queda do Muro de Berlim. Antes disso, você foi uma testemunha de Tchernóbil; depois, nos anos 1990, você testemunhou um momento histórico que levou ao n de setembro. Estou tentando realmente encurtar uma longa história que é a vida de alguém como você, mas o evento mais recente foi o colapso financeiro de 2007 e 2008. Nesse cenário de uma vida tão fecunda e de ser uma testemunha e também um ativo ator nos principais processos históricos, como você vê a atual crise de coronavírus? É um evento histórico sem precedentes, é algo que o surpreendeu? Como você vê isso?
CHOMSKY — Devo dizer que minhas primeiras lembranças, que me assombram agora, são da década de 1930. O artigo que você mencionou sobre a queda de Barcelona girava em torno de um tema principal, a propagação, aparentemente inexorável, da praga fascista por toda a Europa, e que fim isso teria. Bem tarde descobri, quando documentos internos foram divulgados, que o analista do governo dos EUA, na época e nos anos seguintes, esperava que a guerra ia terminar, que o fim da guerra estava próximo, que por fim a guerra acabaria com o mundo dividido em uma região dominada pelos EUA e uma região dominada pela Alemanha. Portanto, meus temores de infância não eram inteiramente disparatados. E essas lembranças voltam agora. Eu consigo me lembrar de que, quando criança, ouvindo pelo rádio os discursos de Hitler em Nuremberg, eu não conseguia entender as palavras, mas dava para compreender facilmente o estado de ânimo, a ameaça. Devo dizer que ouvir os comícios de Donald Trump hoje evoca aquela mesma sensação. Não que ele seja um fascista. Ele não tem tanta ideologia, é apenas um sociopata; não passa de um indivíduo preocupado consigo mesmo. Mas o clima geral e os medos são semelhantes, e a ideia de que o destino do país e do mundo está nas mãos de um bufão sociopata é espantosa. O coronavírus é bastante sério, mas vale lembrar que há um horror muito maior se aproximando. Estamos correndo para a beira do desastre, muito pior do que tudo o que já aconteceu na história da humanidade. E Donald Trump e seus lacaios estão na ponta, liderando a corrida para o abismo.
De fato, estamos diante de duas imensas ameaças. Uma é a crescente ameaça de guerra nuclear, que foi exacerbada pela ação de Trump, que reduziu a frangalhos o que restava do regime de controle de armas. E a outra é a crescente ameaça do aquecimento global. Ambas as ameaças podem ser enfrentadas, mas não há muito tempo. E o coronavírus é uma praga horrível que pode ter consequências terríveis. Mas haverá recuperação, ao passo que para as outras ameaças não há recuperação; é o fim. Se não lidarmos com elas, acabou.
As lembranças da minha infância estão voltando para me assombrar, mas em uma dimensão diferente. Você pode ter uma ideia de onde o mundo realmente está se olhar para o início de janeiro deste ano. Como talvez você saiba, todos os anos o Relógio do Juízo Final é ajustado, com o ponteiro dos minutos definido a uma certa distância da meia-noite, o que significa a extinção. Mas, desde que Trump foi eleito, o ponteiro dos minutos está se aproximando cada vez mais da meia-noite. No ano passado, foi adiantado para dois minutos para a meia-noite. Nunca esteve tão peito do desastre definitivo. Este ano, os analistas dispensaram os minutos e começaram a posicionar o ponteiro do relógio em segundos: cem segundos para a meia-noite. É o mais peito que já estivemos da extinção.
Eles citam três coisas: a ameaça da guerra nuclear, a ameaça do aquecimento global e a deterioração da democracia — que não parece exatamente fazer parte da discussão aqui, mas faz, porque a democracia em funcionamento é a única grande esperança que temos para superar a crise — a democracia de verdade, na qual o povo assume o controle de seu destino. Se isso não acontecer, estamos condenados. Se deixarmos nosso destino nas mãos de palhaços sociopatas, é o nosso fim. E estamos chegando peito disso. Trump é o pior, por causa do poderio dos EUA, que é esmagador. Falamos sobre o declínio dos EUA, mas basta você dar uma olhada para o mundo, e você não vê isso. Quando os EUA impõem sanções, sanções devastadoras e assassinas — e são o único país que pode fazer isso —, então todos têm que obedecer. A Europa pode não gostar das ações contra o Irã — na verdade, pode até odiar —, mas todos os países têm que obedecer, devem obedecer ao “mestre”, ou então são expulsos do sistema financeiro internacional. Isso não é uma lei da natureza, é uma decisão da Europa subordinar-se ao “mestre” em Washington. Outros países nem sequer têm escolha.
Voltando ao coronavírus, um dos aspectos mais repugnantes e cruéis da pandemia é o uso, perfeitamente deliberado, de sanções para maximizar a dor. O Irã está em uma zona de enormes problemas internos. O que é agravado pelo opressivo estrangulamento das mais rigorosas sanções, que são estipuladas de caso pensado, abertamente para fazer os iranianos sofrerem, e sofrerem amargamente agora. Cuba vem sofrendo com as sanções e a guerra terrorista por parte dos EUA praticamente desde o momento em que conquistou a independência. Mas é surpreendente que os cubanos tenham sobrevivido. Eles se mantiveram resilientes, e um dos elementos mais irônicos da atual crise de coronavírus é que Cuba está ajudando a Europa. Quero dizer: isso é tão chocante que você nem sequer sabe como descrever. Que a Alemanha não possa ajudar a Grécia, mas Cuba pode ajudar países europeus. Se você parar para pensar no que isso significa, todas as palavras falham, assim como quando você vê milhares de pessoas morrendo no Mediterrâneo, fugindo de uma região devastada há séculos pela Europa e sendo enviadas para a morte no Mediterrâneo. Você não sabe que palavras usar para descrever isso. A crise civilizacional do Ocidente, neste momento, é devastadora e com efeito traz à tona memórias de infância de ouvir Hitler vociferando no rádio para multidões estridentes nos comícios de Dortmund e Nuremberg. Tudo isso faz você parar para pensar e se perguntar se esta espécie é sequer viável.
HORVAT — Você mencionou a crise da democracia. Neste momento, acho que nos encontramos também em uma situação historicamente sem precedentes, no sentido de que quase 2 bilhões de pessoas estão de uma ou de outra forma confinados em casa, seja em isolamento, autoisolamento ou quarentena. Quase 2 bilhões de pessoas no mundo estão em casa, se tiverem sorte o bastante para ter uma casa. Ao mesmo tempo, o que podemos testemunhar é que a Europa, mas também outros países, fechou suas fronteiras não apenas internas, mas também externas. Há um estado de exceção em todos os países, toque de recolher, o Exército nas ruas. E o que eu quero perguntar a você, como linguista, é sobre a linguagem que está circulando agora. Se você ouvir não apenas Donald Trump, se você ouvir [Emmanuel] Macron [presidente da França] e também alguns outros políticos europeus, ouvirá que eles falam constantemente sobre “guerra”. E até mesmo a mídia fala sobre médicos que estão na primeira “linha de frente”, e o vírus é chamado de “inimigo”. O que também me lembrou um livro de Victor Klemperer [1881-1960], Lingua tertii imperii (A linguagem do Terceiro Reich), que é um livro sobre a linguagem do Terceiro Reich e sobre o modo como, por meio da linguagem, a ideologia [nazista] foi imposta. Então, no seu ponto de vista, o que esse discurso sobre a “guerra” nos diz, e por que eles apresentam um vírus como “inimigo”? É apenas para legitimar o novo estado de exceção, ou há algo mais profundo nesse discurso?
CHOMSKY — Bem, neste caso, creio eu, claro que há a retórica, mas acho que não é exagerada. Tem algum significado. O significado é que, se queremos lidar com a crise, temos que mudar para algo como mobilização de tempo de guerra. Peguemos um país rico, como os Estados Unidos, que têm os recursos para superar os aspectos econômicos imediatos. A mobilização para a Segunda Guerra Mundial levou o país a uma dívida muitíssimo maior do que a que se contempla hoje, no que diz respeito à economia, e foi uma mobilização muito bem-sucedida, praticamente quadruplicou a produção industrial dos EUA, acabou com a Depressão. Deixou o país afundado em uma dívida enorme, mas com capacidade de crescer. Isso é menos do que precisamos, provavelmente não nessa escala. Não que estejamos em uma guerra mundial, mas precisamos da mentalidade de uma mobilização social para tentar superar a crise de curto prazo, que é grave. A extensão da gravidade [não sabemos].
Além disso, podemos lembrar a epidemia de gripe suína em 2009, que se originou nos EUA. Duzentas mil pessoas morreram em todo o mundo no primeiro ano. O mundo se recuperou. Nos EUA, a recuperação não foi difícil. É um país rico. Mas o que acontece em lugares como Índia, África e América Latina, em que a pobreza é terrível, com vastas favelas onde as pessoas não podem ser isoladas e morrerão de fome? Em um mundo civilizado, os países ricos estariam dando assistência aos países necessitados, em vez de estrangulá-los, que é o que estamos fazendo, principalmente na Índia, mas também em grande parte do mundo. Se essa crise pode ser superada em um país como a Índia, eu não sei. Tenha em mente que, com as tendências atuais, se elas persistirem, o sul da Ásia será inabitável em algumas décadas. A temperatura atingiu 50 graus no Rajastão neste verão e está aumentando. A situação da água agora pode ficar ainda pior; existem duas potências nucleares e elas vão lutar por restringir o já reduzido suprimento de água. Quero dizer, o coronavírus é muito sério, não podemos subestimá-lo, mas temos que nos lembrar de que é uma fração, uma pequena fração das grandes crises que estão por vir. Elas podem até não desestruturar a vida na mesma medida que o coronavírus está fazendo hoje, mas tirarão a vida dos eixos, a ponto de tornar a espécie incapaz de sobreviver, e não em um futuro muito distante.
Portanto, temos muitos problemas para enfrentar: problemas imediatos como o coronavírus, que é sério e precisa ser resolvido; e problemas muito maiores, infinitamente maiores, também são iminentes.
Agora há a crise civilizacional. Temos o tempo disponível para possivelmente pensar em um lado bom do coronavírus, pois ele poderia levar as pessoas a pensar sobre que tipo de mundo queremos. Queremos o tipo de mundo que resulta nisto?
E devemos pensar nas origens dessa crise. Por que está havendo uma crise de coronavírus? É um colossal fracasso do mercado exacerbado pela selvagem intensificação neoliberal de profundos problemas socioeconômicos. Já se sabia havia muito tempo que as pandemias são muito prováveis, e já existia o entendimento de que provavelmente haveria uma pandemia de coronavírus, com pequenas modificações da epidemia de SARS, ocorrida quinze anos atrás. Naquela época, o problema foi superado, os vírus foram identificados, sequenciados, vacinas poderiam ter sido disponibilizadas. Laboratórios em todo o mundo poderiam estar trabalhando desde aquele momento no desenvolvimento de proteção para potenciais pandemias de coronavírus. Por que não fizeram isso? Os sinais do mercado estavam errados. As empresas farmacêuticas para as quais entregamos nosso destino sustentam tiranias privadas, corporações que não prestam contas ao público — neste caso, a Big Pharma, os grandes laboratórios farmacêuticos multinacionais. Para eles, é melhor produzir novos cremes para o corpo, é mais lucrativo do que encontrar uma vacina que proteja as pessoas da destruição total.
Teria sido possível para o governo intervir, voltando à mobilização de tempo de guerra. Foi o que aconteceu com a poliomielite; na época, lembro muito bem, era uma ameaça aterrorizante, e foi encerrada pela descoberta da vacina Salk, por uma instituição governamental criada e financiada pelo governo [de Franklin] Roosevelt. Nada de patentes, disponível para todos. Isso poderia ter sido feito desta vez, mas a praga neoliberal impediu.
Estamos vivendo sob uma ideologia, pela qual os economistas têm uma boa dose de responsabilidade, embora isso venha do setor corporativo. Uma ideologia tipificada por Ronald Reagan, lendo o roteiro que lhe foi entregue por seus mestres corporativos, com o sorriso radiante, dizendo: “O governo é o problema, vamos nos livrar do governo” — o que significa: “Vamos entregar as decisões a tiranias privadas, que não são obrigadas a prestar contas à opinião pública”. Do outro lado do Atlântico, Margaret Thatcher [primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990] estava nos instruindo de que “não existe sociedade”, apenas indivíduos jogados no mercado para sobreviver de alguma forma, e, além disso, não há alternativa. O mundo está sofrendo sob esse regime há anos. E agora chegamos a um ponto em que as coisas que poderiam ser feitas, a exemplo da intervenção direta do governo, são bloqueadas por conta de razões ideológicas oriundas da praga neoliberal. Na verdade, tornou-se ainda mais explícita e sem margem para ambiguidades em outubro de 2019. Houve uma simulação em larga escala, uma simulação de alto nível nos Estados Unidos, no âmbito da possível pandemia desse tipo. Nada foi feito.