Livro ‘Garota em Pedaços’ por Kathleen Glasgow

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Best-seller do New York Times e sucesso no TikTok, Garota em pedaços é uma história sobre dor, superação e, acima de tudo, sobre se conhecer e encontrar o próprio caminho. Charlie Davis está em pedaços. Aos dezessete anos, ela já perdeu mais do que a maioria das pessoas perde em uma vida inteira. Charlie foi parar nas ruas para fugir da rotina de abusos e abandono que enfrentava em casa. Mas, apesar de buscar viver em seus próprios termos, a realidade na rua se mostra ainda mais violenta e cruel. Então, para tentar superar tudo o que passou, lidar com a perda trágica do pai e da melhor amiga e sabendo que precisa tratar do transtorno que a leva a se cortar, Charlie vê a saída em uma mudança radical: deixar a fria Minneapolis e seguir para a escaldante Tucson, cidade onde um grande amigo mora. Nesta nova tentativa de mudar de vida, Charlie arruma um emprego, um apartamento, volta a se dedicar à sua arte, e leva a vida como consegue…

Páginas: 444 páginas; Editora: Verus; 1ª edição (13 novembro 2023); ISBN-10: 655924220X; ISBN-13: 978-6559242207; ASIN: B0CJS2DLV8

Leia trecho do livro

Para minha mãe, M.E.,
e para minha irmã, Weasie

Livro 'Garota em Pedaços' de Kathleen Glasgow

UM

Livro 'Garota em Pedaços' de Kathleen Glasgow



Que história você tem para contar, raio de luar?

Livro 'Garota em Pedaços' de Kathleen Glasgow

ASSIM COMO UM FILHOTE DE FOCA DA GROENLÂNDIA, eu estou toda branca. Meus antebraços estão cobertos de ataduras e grossos como davas. Minhas coxas também estão bem cobertas; dá para ver a gaze branca embaixo do short que estou vestindo. A enfermeira Ava tirou-o da caixa de achados e perdidos atrás da estação de enfermagem e me deu. Como uma órfã, cheguei aqui sem roupas.

Como uma órfã, fui embrulhada em um lençol e deixada no gramado do Regions Hospital na geada e na neve gelada, com sangue escorrendo pelo lençol florido.

O segurança que me encontrou cheirava a cigarro mentolado e a café de máquina. Havia uma floresta encaracolada de cabelos brancos dentro das narinas dele.

Ele disse:

— Santa Mãe de Deus, garota, o que fizeram com você?

Minha mãe não foi me buscar.

Eu me lembro das estrelas naquela noite. Eram como sal no céu, como se alguém tivesse virado o saleiro em cima de um tecido muito escuro.

Isso teve importância para mim, essa beleza acidental. A última coisa que achei que veria antes de morrer na grama fria e molhada.

As GAROTAS AQUI, ELAS TENTAM ME FAZER FALAR. Querem saber: “Que história você tem para contar, raio de luar? Conte cada pedacinho, passarinho”. Ouço as histórias delas todos os dias no grupo de apoio, no almoço, na aula de artesanato, no café da manhã, no jantar, o tempo todo. Essas palavras que delas transbordam, essas lembranças sombrias, elas não conseguem segurar. As histórias as consomem, as viram do avesso. Elas não conseguem parar de falar.

Eu cortei todas as minhas palavras fora. Meu coração estava cheio demais delas.

DIVIDO QUARTO COM LOUISA. Louisa é mais velha e o cabelo dela parece um revolto oceano vermelho e dourado que cai por suas costas. Tem tanto cabelo que nem consegue segurar com tranças, coques ou elásticos. O cabelo dela tem cheiro de morango. Ela tem um cheiro melhor do que o de qualquer outra garota que eu já tenha conhecido. Eu poderia ficar sentindo o cheiro de Louisa para sempre.

Na minha primeira noite aqui, quando ela levantou a blusa para trocar de roupa e ir dormir, no momento anterior àquele cabelo absurdo cair em cima de seu corpo como uma capa protetora, eu vi, vi tudo, e inspirei alto.

Ela disse:

— Não tenha medo, pequenina.

Eu não tive medo. Só nunca tinha visto uma garota com a pele igual à minha.

O NOSSO DIA É SEMPRE CHEIO. Nós acordamos às seis horas. Tomamos café morno ou suco aguado às seis e quarenta e cinco. Temos trinta minutos para passar cream cheese em um pão que parece papelão, colocar ovos pálidos na boca ou engolir aveia caroçuda. Às sete e quinze podemos tomar banho nos nossos quartos. Não tem portas no chuveiro e não sei de que são feitos os espelhos, mas não são de vidro, e o rosto fica enevoado e perdido, enquanto a gente escova os dentes ou penteia o cabelo. Se alguém quiser raspar as pernas, uma enfermeira ou assistente tem que estar presente, mas ninguém quer isso, e então nossas pernas são peludas como as dos garotos. Às oito e meia, vamos para o grupo de apoio, e é aí que todas as histórias jorram, as lágrimas vertem derramadas, algumas garotas gritam e outras grunhem. Eu só fico sentada, enquanto aquela menina mais velha horrível, Blue, a que tem dentes podres, todos os dias diz: “Vai falar hoje, Sue Silenciosa? Eu queria ouvir Sue Silenciosa hoje, você também não queria, Gasparzinho?”.

Gasparzinho manda ela parar. Gasparzinho nos manda respirar, fazer o movimento de sanfona esticando os braços bem para fora e puxando-os de volta para perto do corpo, e assim continuamente, para fora e para dentro, e não nos sentimos melhores quando apenas respiramos? O “momento das medicações” vem quando acaba o grupo, depois vem o “momento do silêncio”, em seguida o almoço, depois o “momento do artesanato”, o “momento individual”, que é quando você se senta com seu médico e chora mais um pouco, e, às cinco horas da tarde, tem o jantar: mais comida morna e mais Blue dizendo: “Você gosta de macarrão com queijo, Sue Silenciosa? Quando vai tirar essas ataduras, Sue?”. Em seguida, tem o “momento do entretenimento”. Quando acaba, vamos ao “momento telefonema”, com mais choro. Aí já são nove horas da noite, vem mais medicação, e depois é hora de ir para a cama. As garotas reclamam sem parar dos horários, da comida, do grupo de apoio, das medicações, de tudo, mas eu não me importo. Tem comida, uma cama e é quente. Estou aqui dentro e em segurança.

Meu nome não é Sue.

JEN S. SE CORTA FUNDO; cicatrizes pequenas sobem e descem por seus braços e pernas fazendo com que pareçam galhos. Ela usa shorts atléticos coloridos e é mais alta do que todo mundo, exceto Doc Dooley. Quica uma bola de basquete invisível pelo corredor bege. Joga em uma cesta invisível. Francie é uma almofada de alfinetes humana. Ela fura a pele com agulhas de tricô, gravetos, alfinetes, o que conseguir encontrar. Tem olhos zangados e cospe no chão. Sasha é uma garota gorda cheia de lágrimas: ela chora no grupo de apoio, chora nas refeições, chora no quarto. O líquido nunca acaba. Ela se corta de maneira simples: linhas vermelhas claras se cruzam pelos seus braços. Ela nunca faz cortes profundos. Isis se queima. Feridas circulares e cascudas pontilham os braços dela. Falaram alguma coisa no grupo de apoio sobre cordas, primos e um porão, mas me fechei para isso; aumentei minha música interior nessa hora. Blue é cheia de frescuras com sua dor. Ela tem um pouco de tudo: um pai mau, dentes de metanfetamina, queimaduras de cigarro, cortes com navalha. Linda/Katie/Cuddles usa vestidos de vovó. Seus chinelos fedem. Ela acumula pessoas demais dentro de si para eu conhecer todas. Suas cicatrizes são internas, junto com todas as suas personalidades. Não sei por que ela está com a gente, mas está. Ela passa purê de batata na cara, no jantar. Às vezes, vomita sem motivo. Mesmo quando está totalmente parada, dá para perceber que há um mundo acontecendo dentro do corpo dela, e não necessariamente de coisas boas.

Conheci gente como Linda/Katie/Cuddles lá fora. Fico longe dela.


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